quarta-feira, agosto 24, 2011

Cartas ao nosso anonimato.





18-07-86 - Hospital



Querida,


hoje eu resolvi deixar tudo assim, disperso, incoerente, caótico. Como de fato não vivo dia por dia com intensidade alguma, não importa se o dezesseis está antes do três ou se julho - no meu calendário - antecede maio. As coisas não precisam de uma cronologia adequada; deixa-se ir assim, sem pudor, e dane-se. É, tudo o que eu mais desejo é dizer isso para o mundo. A minha amargura é tamanha que mesmo as palavras simples me doem ao sair: obrigado, perdão e com licença se aposentaram há tempos do meu vocabulário. Me comunico em urros mal-humorados e ai de quem não entender.

Tudo está virado. Logo eu, tão falante, tão seguro! Por enquanto, só a vida em ficção, nosso amor platônico e aquele filme do Coppola que põem pra passar aqui têm me feito completo. Apostei em estrelas de mentira, em sóis distantes demais e perdi. Foi a beleza sedutora que me enganou, não você.


Saiba que não é questão de suicídio, desistência ou falta de vontade. Já não há mais motivos e eu não vejo utilidade nessas fugas permanentes. Ainda mais na idade em que estou, sinto-me em absoluto sono, cansaço e invalidez - não tenho energia para cartas de despedida e tiros no peito como o biruta do Vargas. Poderia ser um cadáver, que não saberia. Poderia ser um defunto e todos me abraçariam, trariam flores e me olhariam como homem digno. E falo isso porque a morte traz dignidade junto das desgraças: "Oh, puxa, André foi um homem e tanto!"; "Ah, que falta nos fará o Papa!" e por aí vai. A morte, por assim dizer, banaliza o coração pulsante e ri de qualquer um que ouse desafiá-la. Mas também traz boas coisas, apesar de meu limite há séculos já ter ido para o espaço e não ter como resgatá-lo dessa órbita inalcançável.


Agora percebo como é fugaz a nossa importância. Um tiro seco em peito aberto que me abriu os olhos para a concretude desconjuntada do mundo. Estar aqui ou deixar meu corpo desfalecer feito quebra-cabeça é uma ambigüidade abusada. Estando presente, já era pura ausência e - preto no branco - minha ausência não era notada. Grande coisa essa morbidez sádica. De toda maneira, tinha de estar lá, sempre postado como bom homem.



Eu realmente não sei o que devo fazer. Era, segundo minha lei, para tudo estar em seu devido lugar, pois, assim, a hesitação de deixar esse espaço e essas verdades não viria à tona. A certeza de criar e destruir é o que move os homens; e me move também. Ter a decência de me fazer como for - quadrado, retângulo ou linha - e, se insatisfeito estiver, botar-me em qualquer saco plástico e recomeçar até que alguém recicle: isso é viver com as chances e os azares. Contudo, essa prática é pouco corrente entre os meus e o fato é que lixo não retorna para a superfície; sedimenta e morre enviesado em seus próprios percalços até sumir; quando some. Mas não dá. Ser finito e irrecuperável é o humano. E eu, sem minha bússola, não sou nada mais que um itinerante. Minha dificuldade, para fins de comprovação, é ser comum e alimentar essa colônia mal sucedida de formiguinhas bem adestradas. Minha indigestão começa ao respirar o produto do trabalho alheio e ter a quem fazer considerações; ter de agradecer de olhos baixos e respeitosos as enfermeiras mal pagas e os cuidadores preguiçosos até que seus egos fartos inflem e me espremam contra as paredes elásticas até que essas se arrebentem.


Pois vá, minha querida Anônima. Trabalhe, ganhe, doe, lute. Seu pó, para sua infelicidade, não terá essas etiquetas, mas asseguro-lhe que – se sair daqui com o sorriso estampado e o termo de alta - isso não a impedirá de ser pó. Um pó de gente, que não fala nem se apresenta. Só descansa. Descansa suas conquistas e revive seus fracassos. Deixa-os borbulhando na memória dos teus e depois de digerido se torna vaguidão. Pois assim, fracasso por fracasso, tudo se molda como deve ser - infértil e fétido até que definha e os vermes da idéia vêm se alimentar. Roem cada camada e adentram pouco a pouco o arcabouço da intimidade. Te ferem e maculam até que não importe a vaidade para você tapar com as mãos o que te enrubesce as bochechas gordas. E assim é a dinâmica polvorosa que passa desapercebida nos nossos dias.


Disse-me um senhor daqui do hospital que o homem não foi feito para derrota. Tsc, quanta petulância. Talvez esse homem que pôs tanto significado numa frase de efeito não tenha enfrentado essas cadeiras dos infernos e a dor dessas agulhas filhas da puta que me picam de segundo em segundo. É assim o dia inteiro, meu bem, remédio atrás de remédio, e analgésicos que não acabam mais.


E é assim também que o dia termina: não há mais nada a se fazer. Eu não me suporto como antes, minha pele está horrível e minha voz já não disfarça as dores contidas. Os olhos marejados começam a gotejar no assoalho e, na minha pouca roupa, já vejo meus ossos cutucando a costura velha a ponto de rasgarem-lhe aos pedaços. E enquanto isso, tenho de ficar de olhos fechados, porque o trem passa rápido e ruidoso acima de nós. Imagino daqui de longe uns meninos olhando maravihados pela janela, uns adultos dormindo um sono perturbado. Sacoleiros, escritores e desempregados disputando um espaço na estação. Roqueiros de bermuda, com camisetas suadas, concorrem a prioridade com grávidas que estão a um passo de explodir em quem estiver por perto. Jornais populistas resumem o fim de semana na segunda-feira de futebol e menininhas vaidosas retocam o batom vermelho em lábios ressecados. Suas unhas, mal feitas; o chão, podre e imundo; e o ar, cianótico feito só, me sufocando e instilando veneno. Todos juntos para me compor estatelado nesse leito fedido. Os hospitais, sem dúvidas, são moradas provisórias daqueles cujo destino é o inferno; como que um aperitivo de toda a podridão e os excessos sulfurosos que lá se encontram. Os bons homens, esses de vida exemplar e conduta impecável, certamente morreram sós em camas aquecidas ou nos braços e afagos das esposas - foram felizes para o ‘céu’.


Acontece que aqui é ordem atrás de ordem: "Feche a porta, não tente entrar." Acelere de novo a maca: lá vamos nós. A claridade e as ferragens entrecortando o silêncio fazem a trilha sonora. Isso aqui nunca foi santuário de coisa alguma. E de novo: "Feche a porta; não tente sair, senhor. Na próxima estação tem cabos e fios de alta tensão. Será um instante breve: um choque. Se acabou sua viagem: fique atrás da linha amarela ou dentro do saco preto. Lá atrás."


Dê seu adeus e, se não tiver, dê a partida e lá vamos nós outra vez.

Já me cansei de mandar cartas à prefeitura para desviar a linha férrea que passa aqui atrás da minha ala de internação. Se não chegam até o gabinete do todo-poderoso, terei de ficar reclamando contigo por meio de quinze parágrafos e tal.


Tenho que dormir agora por causa do jejum restrito dos exames de amanhã. Tomara que sirvam aquelas bisnagas na hora do lanche porque suspeito que a sopa esteja estragada desde o final de semana. Se cuida e até sexta-feira.


Com amor, de seu eterno André.





A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog http://porleonardo.blogspot.com/.

5 comentários:

  1. é... chega uma hora que a amargura ultrapassa de tal maneira os limites da dor que ganha o espaço amplo do total desinteresse, nem mesmo a morte consegue ocupar o ponto central equidistante... é incrível como os seus textos embebedam certos sentimentos meus (que se escondem profundamente em algumas trabéculas de mim) eles me recordam desses abismos ahuahuahuaahu; 'poderia ser um cadáver que não saberia', acho que é aí que eu me amarro às importâncias fugazes... que de tão velozes quase deixo escapar...
    é que eu 'apostei em estrelas de mentira, em sóis distantes demais e perdi.'
    parabéns pelo texto, como sempre, genial. :)

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  2. Muito bem feito o texto, a vontade que dá é de sair grifando um punhado das frases escritas. Em geral admiro muito seus textos, mas sempre tenho aqueles filhos-preferidos, como em toda obra de autores. E esse é mais um deles. E, particularmente, o que achei mais interessante é que não precisamos estar à beira da morte para entender o sofrimento do personagem. Isso é fantástico. :3

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  3. Muito bem escrito, como sempre. Gostei particularmente dele imaginando as coisas que poderiam estar acontecendo.
    Fantástico Arthur \o

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  4. A melhor parte de ler suas histórias, é tentar decifrar cada fragmento e entender que até mesmo nos seus mais insanos devaneios há um sentido por trás.

    Wii.

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