quarta-feira, abril 21, 2010

O parnaso desafiador.


O esforço herculano de se criar a mais bela e perfeita ordem poética, e de encantar a dama-corte com métrica, lirismo e rimas admiráveis, fez da trindade parnasiana o símbolo nacional da pompa e vaidade inerentes à literatura. O nome do ícone, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac - Olavo Bilac aos minimalistas -, não sugestiona por completo a razão pela qual evidencio o "Príncipe dos poetas" aqui, sobretudo por caracterizar falta grave no cumprimento da lei neoliberal que prevê um modelo intenso de incondicional e enérgica concorrência, tal qual dita o modelo capitalista. Mas sigamos com o aristocrata das letras, pois este já se mostra impaciente e um tanto aborrecido.

Era costume bárbaro da época - transição dos séculos XIX e XX - haver entre os nobres escritores uma espécie de rivalidade abstrata. Aquele que saisse vitorioso dos desafios adquiria a principal fonte de propulsão sócio-política dos personagens da época, isto é, se o indivíduo publicasse a obra de maior valor crítico era imediatamente condecorado com a projeção mídica e os louros da glória pública. Com nosso querido amigo Bilac a realidade do tinteiro não foi diferente. Envolveu-se em centenas de batalhas "sangrentas", conquistou prêmios, modestas recompensas, invejáveis títulos, e tão logo mostrou-se co-autor de um movimento gerador das mais intensas discussões intelectuais: o Parnasianismo.

Contudo, ao visualizar a expressão deformada de espanto das faces que me lêem atentas, considero coerente o questionamento do leitor ao levantar a problemática: "Mas que diabos está dizendo? Fugiu ao foco, aposentou a ferramenta reflexiva, filosofia não mais há, degenerou as boas frases..." - mas alto lá, detentor de orbes amuados, deixe que me explique em seguimento do enredo.

Das ocorrências mais comuns em território fluminense, aquela que causava maior sublevação entre os habitantes era o surgimento de forasteiros de aparência hostil e sinistra. Eles logo se retiravam após duas ou três noites em hotéis de alta classe dos bairros meridionais da capital, e levavam todos a crer em movimentações bancárias de porte colossal. Porém nenhum ser que se mostrava amante da vida ousava se aproximar daquelas figuras obscuras e cheias de mistério, exceto um, aliás, uma, e era Amélia de Oliveira, irmã de um certo poeta e amor palpitante do "Príncipe".
O estrangeiro do qual Amélia se aproximara havia chegado à cidade há pouquíssimos dias, e alegou à dama que um inconveniente ocorrera e suas economias se haviam desaparecido. Ela se dispôs prontamente a auxiliá-lo na busca por um abrigo, pois em sua casa estava sujeita a reprovações do irmão, sempre bem-humorado, e do pai, que, apesar de nem sempre se encontrar na cidade, mantinha olhos indiretos sobre a moça.

Desenhando os mais variados caminhos a fim de reconhecer algum generoso conhecido que cedesse teto ao mais novo amigo, Amélia passava pela principal via da metrópole quando divisou um sobrado intimidador e seissentista - dezoito janelas que sorriam aos admiradores nas ruas, duas portas avermelhadas que separavam a saída dos empregados e pintura de alvidez recente. Esta vista engatilhou a lembrança de um baile que a moça um dia fora, embora lhe falhasse a razão da comemoração e o vestido de gala usado para valsar com bons partidos. Resolveu bater à porta e arrancou do companheiro um grito de dor após puxar seu pulso com ansiedade.

_ Sr. Olavo ! Há alguém em casa ? - toc, toc; sua mão doera como nunca - Sr. Olav-- !

Um homem de postura ereta, retidão de espírito e nariz adunco aparecera no vão da pesada porta. Apresentava traços caricatos, ora finos, ora grossos, um par de lentes arredondadas e olhar pesaroso, cansado. Levou a mão à cabeça e desferiu com movimento suave um golpe em seu chapéu de côco, o qual caiu na palma de sua mão com igual rapidez:

_ Olá, D. Amélia, que trazes tu aqui a essa hora do dia com sujeito desconhecido em sua companhia ? - Bilac se aproveitava do descuido do estranho para analisá-lo por completo: vestimenta de alfaiate, sapatos lustrados, bengala inglesa e chapéu arredondado. Um símbolo de requinte e nobreza. Contudo nosso Príncipe sentia uma violenta corrosão transitar por todas as suas vísceras, bradando hinos de amor. Um ciúme ácido, amargo e indiscreto o desconfortava.

A dama de enfeitados cabelos ensaiou responder à pergunta de Olavo com uma flexão vagarosa dos lábios, quando, interrompida com um toque denso de seu cortejador, silenciou-se para ouvir o monólogo diplomático:

_ Boa tarde, Sr. Bilac, sou Carlos Inácio Unaí Mendes , crítico literário, cronista, romancista e poeta. Resido atualmente em São Paulo e represento o núcleo de imprensa jornalística do tablóide Brasiliense; gostaria de lhe apresentar algumas obras e de passar a tarde em sua companhia, pois tenho completa noção de sua autoridade cultural perante a nação.

O poeta se assemelhava a uma estátua após o último verbete do sujeito desconhecido. Seu último ato, involuntário inclusive, foi o de arriscar um "sim" em baixo tom de voz, virar as costas aos visitantes e chocar a porta contra a armação que datava de dois séculos atrás. Ele conhecia até bem demais Carlos Inácio, e este homem, embora desconhecesse o fato, foi a razão de centenas de noites insones e tentativas secretas de superação bordando versos simétricos, aluviando rimas, garimpando técnicas e arquitetando estilos.

O Senhor Bilac, como era também chamado pelos moradores das redondezas, escolheu um horário deveras incoerente para adentrar seu escritório úmido e empregnado pelo cheiro intoxicante do trabalho das traças. Sentou-se calmamente na cadeira confeccionada por seu avô, ainda a pensar na reação dos visitantes que deixara na porta de sua enorme fortaleza. Aquele móvel no qual se sentava resguardava a memória de suas primeiras empreitadas literárias: as cartas de amor, os bilhetes de aviso e até mesmo o requerimento para os inconvenientes que o perseguiam na época do colégio. O corpo desfacelando aos miúdos, dirigiu-se ao armário rústico e tomou para si o tinteiro junto à pena; retornou à mesa e, com um leve suspiro, pousou a pena que ainda teve tempo suficiente para gotejar e manchar o papiro amarelado e de qualidade questionável. O Príncipe ignorou seu descuido para pôr, sob uma invejável caligrafia, os dizeres "O Parnaso Desafiador", com um dedicatória provocadora no envelope preparado ao correio, uma vez que o texto seria dirigido ao Sr. Unaí Mendes.

No espaço dedicado à data, Olavo precisou de uma recordação. Olhou para o calendário torto da parede e divisou a concretização da dicotomia da Vingança: o dia, domingo, e o correio não viria buscar nada que ele se propusesse a criar.

3 comentários:

  1. Extremamente diferente da maneira como seus textos são geralmente escritos, mas não necessariamente ruim, mesmo não sendo um dos que me despertou maior apreço. Mas, sendo imparcial, esse fato se deve também à escolha do assunto, que não foi dos que me geram maior interesse. De qualquer forma, bom à sua maneira.

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  2. "(...) completa noção de sua autoridade cultural perante a nação." Fardo grande... Eu sinto uma pontada de inveja das escolas literárias que existiram porque, independente do que defendiam, havia uma coesão entre os artistas que eu infelizmente não vejo hoje em dia. Ao chamar minha geração de "contemporânea" (nome extremamente vago, já que tudo que é contemporâneo é fugaz) apenas mascaram de uma forma deveras ornamentada a falta de um projeto artístico. Admiro os poetas-arquitetos do parnasianismo, mas minha veia poética se aflorou apenas na infância/pré-adolescência. De qualquer modo, bom texto.

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  3. Gostei do texto, ainda porque simpatizo com Olavo Bilac.
    Ficou muito bom o texto Caro Arthur ^^

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