sábado, maio 15, 2010

O engenheiro, o cronista e o amante.

Já bradava com certo vigor o relógio da Praça Central das Luzes, quando a meia-noite se fora e uma nova hora se inaugurava no dia nascente. Esse clamor mecânico foi determinante para a fuga do jovem, vez que havia vivido centenas de experiências um tanto quanto anormais para o cotidiano limitado a postilas e livros das mais variadas ciências. A fuga, como convém ser explanado, fez com que chegasse em casa com andar de falsa embriaguez, além de uma camisa alva em recortes de amarrotamento, uma calça até então intacta e um tênis consideravelmente sujo em relação aos demais que se apresentaram na cerimônia do Engenheiro. Vamos aos desdobramentos.

Deu-se lá pelas nove da noite um compromisso imediato, irrecusável, o qual serviria talvez de distração para minha mente ocupada por prismas e cores primárias indistintas: uma colação de grau. Trata-se de uma celebração ambígüa e controversa a colação, pois, a ser sincero, a euforia maior reside apenas na sensação do aluno de distanciar-se das penitências acadêmicas, ao passo que familiares e amigos provocam ruídos ensurdecedores de uma alegria artificial e efusiva, fazendo uso de faixas, apitos, confetes e serpentinas - inclusive me ocorreu um acesso de fúria quando uma destas se chocou contra minha cabeça e provocou risinhos aos autores do crime: malditos.

Pus-me em uma indumentária parcialmente adequada ao evento: uma camisa social vítima de branqueadores químicos, uma calça escura para o contraste agressivo e um tênis à aleatoriedade a que submeto meu dia-a-dia dos calçados. É claro que não me sentia um verdadeiro galã de novelas latinas (mesmo sendo bregas e um tanto estranhos), mas dirigi-me ao carro conduzido por meu pai, o qual mostrava-se elegante e suficientemente preparado para um prolongamento noturno; eu, tolo, a uma ou duas ovações e um retorno murcho para casa. Enfim, chegamos ao local do evento, logo após procurar por uma vaga de estacionamento por quase doze minutos. O Engenheiro, com seu nome já exposto à multidão ansiosa pelos discursos extensos e redundantes, vestia uma roupa capaz de chamar a atenção até mesmo de um cego distraído, e despertou-me dó do pobre homem. Neste momento também senti certa vaidade por estar vestindo algo simples, discreto e sutil, mas não deixei de ler nos olhos do formando a sincera alegria de desertar o exército da razão e equações. Pensei prontamente: "Que seja, sento-me."

Os ciclos de homenagens a patronos, padrinhos, paraninfos e pára-quedas iam se estendendo ao infinito, quando me espetou, touro após golpe desferido por toureiro, um magnetismo voluntário à inspiração - afinal, havia prometido a uma leitora que me esforçaria por criar algo atraente - porém envergonhei-me de sobressalto: o Engenheiro já começara a saltar de felicidade após receber da diretora da instituição um diploma, bem como a registrar com políticos oportunistas fotos de foco horrendo e fotógrafos de igual categoria. Minha mente se ausentara daquele recinto caloroso. As palmas, as conversas e o frenesi ali instalados cediam lugar ao absoluto silêncio das idéias, e o texto, este texto, se construía em isômeros mil em minha imaginação poderosa e desordenada. Havia, portanto, abandonado minha função ao ir à colação de grau para receber uma pancada forte na cabeça proveniente de uma roda de saltos comemorativos de uma família agressiva ao lado, e, por consequência, para piorar minha condição, o Engenheiro já estava em terra firme sendo abraçado por minha sempre atenta avó e cumprimentado formalmente pelos demais familiares. Chegou até mim com uma leve distorção na face, que tão logo interpretei por estranheza, mas ignorou e acolheu-me em um abraço compreensivo porém não recebido com igual afeto, pois ele arrebatara ao espaço a conclusão da valiosa publicação.
Não o amaldiçoei de todo, uma vez que o incorreto na circunstância era o ser que lhe escreve, mas entristeci-me no momento, apesar de que não houve tempo hábil para chorar mágoas, pois que o fim da "animada" celebração fora declarado.

Em substituição do retorno para casa, tão esperado por mim e pelo sr. Teclado, meu pai sugeriu uma confraternização que fez-me torcer o nariz de desânimo e aos outros convidados, urrarem de alegria. O fato de ter me comportado de maneira egoísta na colação ainda me perturbava durante o trajeto para o 'bar', mas o conto fervia em minhas entranhas, sobretudo as frases de efeito e as descrições mais rebuscadas. Ah!, como era bom planejar e fugir à histeria do ambiente e dar voz ao caldeirão de verdades... no entanto, este meu aspecto cronista era tão canalha quanto um marido infiel ou uma esposa negligente. Semi-desprezível, até.

Tão logo me aproximava do parágrafo anterior quando despertei com toques frenéticos no vidro, e deparei-me com uma tia gesticulando com braveza para que eu deixasse o carro. Distraí-me mais uma vez, e meus companheiros não hesitaram em deixar-me para trás; depois soube que a mesma tia só se ocupou de chamar por mim por notar que havia esquecido a bolsa de maquiagens no porta-luvas do veículo. Meus passos se faziam automáticos em direção à entrada do restaurante, o qual trazia características modernistas fajutas, isto é, uma sacada mal projetada, uma tentativa falha de construir um palco e um cantor de voz semelhante à de Djavan, porém mesclada à de Herbert Viana ou qualquer coisa do gênero - não me recordo ao certo.

Quando surgi pelas escadas, acompanhado de meu andar tímido, os presentes, que não se mostravam tristes ou tímidos como meus pés, berraram meu nome com vigor e, junto desse instante, doze badaladas certeiras no relógio da Praça Central das Luzes se faziam ouvir como nunca na cidade-domitório. Sentei-me após acenar para os mais próximos, isto é, os familiares, pois na dada ocasião até o garçom ousou me cortejar à mesa e me servir um refrigerante de cola. Agradeci-o com cavalheirismo, e o texto fixou-se ali: acabara.
É claro que não me encaixava naquela circunstância com naturalidade, leitor que zomba e ri, tampouco era meu desejo fazê-lo, mas observo agora que eu era como um viajante no tempo em um jogo dos sete erros, porém eu convergia todos os sete, como uma desventura épica.

Meu refrigerante já se encontrava na metade do recipiente, quando perdi-me nas armadilhas de um amante-cronista ao criar engenhosidades com a ficção: eu anseava por criar, desmontar, remontar e inventar, o que por consequência originou Camila Osório, uma dama inexistente, de mentira, fruto de um amor real que se mostra um pouco desconfortável com minha forma semi-formal de conversar, mas acha interessante, vez que se sente atraída por coisas "diferentes".

Todavia "Camila" é um assunto sobre o qual não pude ainda pensar, e meus esforços se concentrarão unicamente nos traços de seu perfil psicológico e também físico. E para aqueles mais atentos que ficaram curiosos por saber como se fez minha fuga, o que me resta dizer é que custou-me muito criar um motivo lógico para pagarem-me um taxi até minha casa, envolvendo matemática e argumentos infundáveis que somados ao álcool se mostram perfeitamente coerentes.

3 comentários:

  1. Creio que já está se tornando um estilo seu descrever as pequenas (grandes) tragédias do cotidiano de um jeito cômico e sarcástico, que é muito agradável de ler. Textos como esse têm um senso crítico forte e direto, com uma pitada de humor que fala baixinho no texto, mas que faz o nosso pensante rir de uma maneira deliciosa... E no fim, você ainda lustra uma lasquinha de sonho e fragilidade.
    A junção de críticas, humor e sentimentos é a mistura que mais me agrada.

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  2. Seus textos estão cada vez mais levando o leitor, por meio da estruturação das frases e maneira como as palavras até mesmo nos atingem, à nos sentirmos quase "dentro" do próprio texto. >< Muito bom, Arthur. i.i

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  3. Como sempre, mais um texto escrito com maestria.
    Como a Amanada disse um comentario acima, seu estilo para escrever as pequenas grandes tragedias é realmente cool. Seria demais pedir um conto que envolva uma garota?

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