sábado, junho 05, 2010

Catarses Limenhas: O Capitão do Tempo


O bairro de Miraflores sempre ilustrou uma região de Lima que, para a literatura e às artes, jamais fora excepcionalmente útil. No entanto, contrariando o ar de futilidade exalado pelo bairro e pelas figuras caricatas dos cartões postais de três pesos, centenas de novelinhas radiofônicas eram lá inspiradas; talvez pela insistência das famílias de classe média, como os Vargas, talvez por não haver absolutamente nada desejável às penas dos escribas estrangeiros que fugisse daquelas redondezas.

Eu, embora tenha me desertado da função de filho solteiro e dependente dos pais há algum tempo, lembro-me bem de um episódio que lá se sucedeu na turbulenta década de cinqüenta, depois que Ana Lucia, desajeitada, deu-se com a mesa de centro para arremessar nosso relógio a cinco metros de distância - na tentativa árdua (e frustrada) de substituir suas finadas pilhas: caso típico de uma esposa insatisfeita com o modelo do objeto em questão, tendo em vista que eu o escolhi em uma dessas liquidações de bairro, nas quais cada item recebe seu preço mediante as condições do tempo de uma província chinesa qualquer.

Jamais soube decerto seu verdadeiro nome, creio que por somar tempo demais para recordá-lo, mas também suspeito de que 'O Capitão do Tempo' nunca tivera um para ensinar às crianças que tanto se divertiam com sua casaca cáqui misteriosa. Era um latino robusto, com feições geométricas sérias e amante de um chapéu-coco, para o qual criava milhares de diferentes funções e tratava como um ourives o faz ao ouro. Reservava uma voz de timbre manso que pouco usava publicamente, além de uma conversa lenta, comedida, acompanhada de um linguajar peculiar do interior do Peru, uma graça. Ostentava também uma paciência sobre-humana para suportar o estresse das aglomerações que se faziam ver quando passava próximo à rua San Martin, - os garotos de lá eram definitivamente insuportáveis - fato que logo tratei ser indiferença ou qualquer coisa que o possibilitasse sair daquela esfera ensurdecedora de perguntas e toques indiscriminados. A atração maior de Miraflores, o homem era um mercador de relógios, os quais mostravam-se parte integrante dos títulos sociais utilizados naquela época, isto é, uma verdadeira piada.

Contudo o Capitão, pelo que vejo agora, não era iletrado e tampouco tolo, pois lembro-me que o sujeito foi capaz de associar a vaidade dos miraflorenses ao volume de vendas provocado pela intensa disputa por modelos caros e extravagantes; inclusive, não se distanciava mais que alguns poucos quarteirões dali, sobretudo às sextas-feiras, quando as praças e parques reluziam com as jóias de família, as cores berrantes dos vestidos das damas serpenteavam entre a multidão e os políticos - sob a pompa - acariciavam os burgueses iludidos com promessas infundadas. E foi em um curioso passeio destes, no Parque Santa Helena, minha mãe deixou que eu acompanhasse os moleques da Avenida Treze para jogarmos gude. No entanto, entre eles, eu era o menos habilidoso nas jogatinas infantis, bem como o mais desinteressado nas competições entre a moça de traços indígenas e postura masculina, Carmem, e o argetino biruta, de nome Pedro. Assim, a cada erro grotesco cometido, minha vez de participar se extinguia mais e mais, obrigando-me tão logo a fugir do grupo de jovenzinhos envolvidos na tradição da época - com razão, eu acho.

Curiosamente, na entrada do parque oposta à principal, trajando um sobretudo ocre surrado e uma calça de linho do que pude ler "Mani" num bordado industrial de alto relevo, O Capitão do Tempo me concedeu todos os motivos para segui-lo na tentativa (simples) de vender dúzias de Timex e garantir suas próximas dezesseis refeições. Coloquei-me, então, a uma distância considerável e preguei os olhos em algo estranho que se destacava na cena, enquanto o homem, aliado a um exímio cavalheirismo, oferecia para um casal inquieto de idosos os produtos mais variados. Um objeto cúbico envelhecido com uma seta frenética a girar descansava no interior de sua indumentária. Espantei-me de súbito; afinal, jamais tinha visto tal coisa antes, mas resisti por curiosidade detrás do carvalho centenário ali plantado pelos vizinhos de meu bisavô. Creio que percebendo o descuido, porém sem tirar a atenção de seus valiosos clientes, o sujeito recolocou sobre a "coisa" a porção do casaco que cobriria o cubo misterioso. Frio. Calculista.

O trajeto do mercador se extendia a localidades aleatórias e a clientes muito bem selecionados, quando um garoto de uns quatro anos, que permitia a todos verem sua amígdala dilatada, chamou-lhe a atenção, fê-lo parar.

_ Eu quero ficar, mamãe, ficar no parque ! No parque ! - gritava, ora agitando as pernas , ora contendo a lágrimas com os braços rechonchudos.

A mãe, severa, rebatia categoricamente, dizendo que o tempo do passeio se esgotara em definitivo e que aquele "teatro" se converteria em chibatadas quando chegassem em casa; o menino arregalava os olhos nestas horas, parecendo imaginar as consequências.

O relojoeiro assistia à cena com a paciência de um monge tibetano, mas vez ou outra tamborilava o misterioso objeto com os grossos dedos da mão esquerda, ao passo que mordiscava com os caninos os lábios inferiores. Num golpe de misericórdia, a mãe tomou a criança ruidosa pelos braços violentamente e ameaçou proibi-lo de brincar durante todo o mês, valendo lembrar que somavam seis dias do novo período, isto é, vinte e quatro dias de diversão cativa - pobre coitado. O Capitão do Tempo, enfim, encarou sua relíquia, após sacá-la do bolso, com certa expressão de fúria - neste momento eu fui incapaz de manter-me oculto pelas árvores do parque - e realizou giros sucessivos no ponteiro da engenhoca, como se retrocedesse as horas. Cessou. A mãe mantinha o vasto repertório de injúrias e eu, com ar de riso devido à expectativa criada pelo homem à minha frente, a observá-lo com atenção. Nada mudara; absolutamente tudo respeitava o sentido imaculado das engrenagens naturais do tempo. De repente, então, exclamou o relojoeiro:

_ A senhora, por acaso, se dispôs a verificar se o horário combinado chegou ?!

Riu-se a mãe sem alterar o trajeto, pois era mais um dos habitantes do bairro que acreditava ser maluco o comerciante das horas; arrancou discretamente da bolsa um objeto dourado e talvez maior que a cabeça de seu filho. Pôs-se a observá-lo, franziu a testa, assustou-se; dos passos lentos fez galope, e partiu em direção à saída, com o filho sendo arrastado pelo gramado.
Não obstante, mirei também o meu miúdo mostrador, procurando algum vestígio da sandice d'O Capitão. Estava lá, com seus ponteiros incertos, voltando, indo, graduando o palco da incerteza cronológica.
O homem que julguei desconhecedor de minha presença virou-se depois de perder de vista a família fugaz e ensaiou um sorriso sapeca para mim, o qual recebi com um olhar jurídico de brincadeira sem graça: "Como alguém que reajusta relógios a rigor do pensamento pode se ocupar com coisas tão triviais?"

Agora penso que 'Capitão do Tempo' pode ser o nome que o relojoeiro ensinara às crianças de Miraflores, por ser exatamente este seu ofício maior.

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