quinta-feira, julho 15, 2010

Catarses Limenhas: O gume da rosa.

Andrea - ostentadora de uma beleza inócua aborrecedora - sobrepunha a gama inexaurível de adjetivos do ambiente com exímia destreza, os quais abrangiam ruídos ensurdecedores, personagens anônimos do cotidiano, um gosto amargo de poeira liberada pelos automóveis, além de uma suspensão indissolúvel de vapores atmosféricos, os quais, inconscientemente, aos habitantes da cidade prenunciavam a temporada anual de tempestades ininterruptas.

O que de fato levava aquela mocinha de membros finos e declarada fragilidade a se destacar no jogo urbano de cores vivas e dinamismo repulsivo é exatamente a desarmonia entre a melodia do espaço e de seu coração, capaz de, naquele momento, ressoar uma escala decrescente só de aproximar o pensamento de seu drama irreparável - também causador do pranto contido e das marcas violentas no braço alvo, agora nem tão alvo assim. Os transeuntes que cruzavam as vias adjacentes à avenida onde se encontrava Andrea eram claramente consumidos pela razão competitiva, e, portanto, a cena de horror protagonizada pela expressão de tristeza da moça era assistida apenas pela selva de concreto e a escassa arborização do trecho - árvores nuas, sem cor alguma, a exibir seus galhos tortuosos como se em uma apresentação de contorcionistas orientais infantes. Eram ipês cinqüentenários, importados dos trópicos meridionais na época do prefeito Castañeda e, por não ser setembro, o tom roque dos troncos rugosos maculava a paisagem indiscriminadamente.

Toda aquela composição inóspita da circunstância fomentava pouco a pouco o mau humor de Andrea, principalmente após a chegada de uma nuvem enegrecida, com ar triunfal, além de um estrondo oco e vagaroso: um trovão. A cada seis ou sete minutos levava à boca com mãos trêmulas um isqueiro incolor e um cigarro barato (possivelmente boliviano, não importava). Sorvia com vigor toda a fumaça possível, na tentativa insana de não exalar qualquer vapor e aproveitar-se de todos os males concentrados naquele corpúsculo aparentemente inofensivo e nobre. Ela temia, com o prenúncio torrencial, perder o êxtase de possuir uma brasa aos lábios, pois que a nuvem densa não parecia abrir mão da trajetória retilínea de cobrir Lima com um "aguacê junino" - como diriam os arequipenhos pessimistas da redondeza.

A umidade do ar era máxima; o espetáculo da precipitação já poderia iniciar-se, e Andrea - imersa na observação de um grilo a chocar-se desesperadamente contra o meio fio - preparava seus músculos para uma maratona até a casa de seus pais - não os via a três semanas. Suas vestes imundas, sem estampas e de um castanho escuro discreto ondulavam no ritmo agressivo da ventania, quase apagando o cigarro cuja ponta era esmagada por seus lábios magros, esbranquiçados.

Andrea Lossio somava dezessete primaveras vividas, e aquele dia exatamente pusera abaixo todo o acúmulo de sorrisos que a acompanhava até então. Não carregava bolsa ou sacolas, porém sua mão direita ocupava-se de um instrumento plástico que para ela lançava no ar um odor ácido, quente e volátil de urina. A moça inspirava insistentemente a fim de se convencer de que o único cheiro preponderante no espaço era de seus tragos perpétuos - mas não era. Por entre as unhas geometricamente recortadas via-se gotículas amareladas de quando foi ao sanitário público excretar sobre o indicador cuja resposta imediata foi um pesaroso 'Sim'.

Já havia iniciado sua caminhada em direção ao subúrbio limenho quando as primeiras gotículas acertaram em cheio a ponta de seu nariz, que era comprido e alongado na extremidade, como se moldado antes do nascimento - lindo. No trajeto, seu ventre ruidoso revirava constantemente, como se a alma, o objeto, o resultado de tamanha desgraça houvesse sido inserido definitivamente em seu útero. Ela se inchava enquanto sugava o alcatrão de San Martín. Andrea queria explodir, e para isso esmagava sua barriga e se golpeava enquanto corria por entre os postes luminosos. A chuva se intensificara, agora com um tom choroso que na mente da moça era um coral de prematuros. Com todo aquele desequilíbrio moral, retornou ao local onde se prostrara outrora, fixou-se ali e encharcou o cabelo, que logo gotejou debilmente em sua testa pálida.

Ao passo que a chuva se infiltrava nas frestas da sapatilha ou no cós da calça, os ferimentos na virilha e no pubes dilaceravam sua feminilidade; sentia na memória mais uma vez as agressões no rosto, nos membros e exclamava repetidas vezes: "Merda."

E Andrea cheirava feito um porco, cheirava feito merda. E haja chuva para imaculá-la.

3 comentários:

  1. :O chocante. Prende o leitor de maneira brilhante, e há clara melhora nos seus textos. Até mesmo os detalhes, tão citados anteriormente, estão tomando uma forma mais grandiosa dentro do texto. E a reviravolta encontrada ao final da postagem foi simplesmente incrível. :O!

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  2. Fiquei completamente absorto na sua maneira de descrever tanto cenário quanto os sentimentos da personagem.Genial!

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  3. ''Andrea Lossio somava dezessete primaveras vividas'' Aulas da Betânia ... texto muito legal -EXPLENDIDOo-

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