domingo, agosto 29, 2010

Havana - Parte I




Como que de um súbito emergir de águas inóspitas, envenenadas, levantei com vigor a cabeça, sonolento, e vi a manchete do jornal de ontem em letras garrafais anunciando qualquer assassinato ou ostentação política; era dia vinte e nove de agosto e ao fundo minha vitrola arranhava o fim do disco que supus ter começado a tocar na noite passada - o ruído reverberava nas paredes de gesso e circulavam a casa, perturbando cada centímetro do meu santuário de silêncio e calmaria. O sol tomava conta da casa e formava uma onda de calor infernal, a qual fez brotar das minhas axilas uma dobra úmida na camisa com um cheiro salgado e um tanto familiar. Olhei ao redor com uma estranheza de forasteiro e agarrei a garrafa de café na minha frente para completar minha xícara anil de asa quebrada - culpa de uma visita inesperada de minha mãe, que se interpôs na organização da casa e instituiu um padrão de limpeza e ordem frágil demais para um homem acabrunhado como eu.

Lá fora, felizmente, o domingo dava seu ar de vazio, e as ruas, enfim, cediam espaço para o espetáculo dos pássaros urbanos: o pardal lusitano, faminto, levava sua família para colher os restos da feira matinal de ortifruti e convidava o bem-te-vi para compartilhar o banquete com sua ninhada de inverno. O joão de barro, tímido feito só ele, se agarrava ao talo magro de um alface escurecido e não invadia o espaço dos donos do lugar. Era recatado. Eu, sentado à mesa, festejava a ocasião em que os únicos presentes fossem maestros de uma melodia calma e suave, que não abusavam dos tímpanos acostumados a belas sinfonias, orquestras e sarais de beleza indefinível aos quais me convidavam sempre. Levantei-me com preguiça da cadeira e segui para o tocador de discos; era um presente de uma moça gentil do andar de cima, que trocou seu aparato por algo mais sofisticado (lê-se ruidoso).

Talvez por ter adormecido de modo desajeitado, estalaram-se minhas vértebras e uma série de dores locais surgiram quando me levantei. Senti-me velho, impotente, fraco. Quando desloquei a agulha para o suporte que a recebia para interromper o som aborrecedor, três toques secos na porta me viraram o pescoço.

__ Senhor Andrei ? - uma voz cujo timbre eloquente e efusivo chegou aos meus ouvidos gritou detrás da porta.

Adiantei-me até lá e o vi pelo "olho mágico": era uma sujeito miúdo, com uma barba rala, mal recortada, e um filete de sangue lhe saía do maxilar arredondado - supus que estivesse com pressa para me visitar. O moço continha por um triz os olhos exorbitantes negros e suas vestes pareciam-se com um uniforme, a julgar também pela maleta desbotada que quase arrastava no chão. O homem pareceu notar minha presença e acenou do outro lado como se me visse nitidamente.

__ Sou eu. O que queres ? - recusei-me a ser cortês, embora a figura do homem me parecesse inofensiva. Afinal, há algum tempo atrás, tive uma vizinha surpreendida por ladrões desse mesmo modo.

__ Vim apresentar-lhe uma proposta, e acho que o assunto lhe interessa profundamente. - eu ainda o observava e sua expressão de contentamento não saía do rosto.

__ Não desejo nada por ora, obrigado. - acordei mal humorado, mas a razão de tudo isso era a situação desconfortável na qual minhas finanças se encontravam.

Ele sinalizou consentimento com a cabeça, embora eu desejasse desesperadamente ocupar meu tempo com suas insistências, e girou em cento e oitenta graus para dar de encontro com a porta da frente. Lá morava o tipo de vizinho que eu mais apreciava, - silencioso, discreto, frio e contrário a formalidades constrangedoras - uma dádiva ! Deduzi, portanto, que o próximo a receber a tal "proposta" seria o próprio Ignácio Castro, mas o homenzinho escorregou a mão vazia pelo suporte engordurado da escadaria do prédio e seguiu com barulhos periódicos dos sapatos envernizados ecoando e um assobio agudo de um musical que demorei horas para recordar o nome. Depois de desaparecerem os ruídos que fazia o estranho, corri à janela para vê-lo deixar a rua; vi-o, então, numa perspectiva diferente, e de sua mala um panfleto se desprendeu; levando tempo para cair ao chão numa dança angustiante .

Julguei que havia sido proposital o fato, conveniente demais, mas ainda assim não me preocupei com as vestimentas inapropiadas que usava e desci ansioso para ler o documento. Cheguei à rua e não percebi sequer os pássaros de momentos antes - sumiram. Curvei-me para apanhar o papel com receio de encontrar-me com seu dono, e logo o pus dentro do bolso do pijama, desajeitado, para evitar suspeitas de algum transeunte que por ventura ali estivesse. Tratava-se, pois, de um quadrado branco mínimo e, subindo as escadas, desta vez de volta ao apartamento, tirei-o para ler. Era, na verdade, um bilhete borrado a caneta, de escrita apressada, que dizia: "Traga-me os manuscritos de Andrei." Quando li três, quatro, cinco, dez vezes, um vazio súbito tomou lugar de minhas entranhas e sibilei inaudivelmente: "Como ele...".

2 comentários:

  1. Inspirações limenhas trocadas pelo socialismo, céus. O: Muito bom, o que antes eu via como uma ou outra mão descritiva do Llosa agora se forma num jeito particular e tão bom de ler! Um dia, quem sabe, isso tudo se torne incrível com o que tanto peço: continuações.

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  2. É, acho que agora vc está encontrando o seu caminho (me faltou a palavra, queria dizer aquilo que os garimpeiros procuram, quando estão estão procurando ouro. Talvez "veio" ou algo assim). Gostei de ver a simplificação da estrutura e da forma, o que eu acho que só serve pra valorizar a história de fato, a essência daquilo que se diz. Acho que é assim mesmo, como na música, temos que complicar um pouquinho no início pra descobrir depois o valor da simplicidade. Tudo se resume em ter ou não uma boa história pra contar.

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