segunda-feira, abril 25, 2011

O Salto - Parte I




Com a passagem de uma revoada de maritacas ao pé de minha janela, despreguei as pálpebras com certa dificuldade, depois que feixes esguios de sol golpearam sem clemência minha íris esverdeada. Afinal, ontem, depois de uma garrafa de whisky consumida no intervalo entre oito da noite e duas da manhã nem me lembro de como foi minha ida ao leito. Meu corpo doía de sobremaneira; mexia os dedos dos pés com ansiedade por debaixo do cobertor alvo e leve feito pluma, tentando detectar o local onde as várias alfinetadas me coagiam a afundar a nuca no travesseiro aquecido e gemer de dor. Ouvia ao longe um ritmado tilintar metálico de panelas - talvez fosse Dolores, a servente, cuidando do que restou de minha tentativa falha de preparar um risoto; ou mesmo um cão faminto que houvesse descoberto a falha na minha cerca viva que dava para o riacho do Caetano e agora cuidava de procurar por migalhas do jantar para esconder as saliências de suas costelas agudas. Não seria o primeiro.

Inclinei a cabeça para meu lado esquerdo com a sensação de estar partindo o pescoço ao meio.
Queria saber de meu antigo rádio-relógio quanto tempo havia desperdiçado adormecido como um vampiro, porém não vi senão seu fio comprido que saía da tomada próxima ao criado e alguns caquinhos plásticos espalhados: "Quebrou, droga". Uma substância amarelada fazia dos meus cílios uma massa única e obstrutiva para a visão, um acúmulo que me enojava absolutamente. O ruído que antes se fazia lá fora iniciara repentinamente uma peregrinação pela casa, passando pela cozinha, sala, e, de acordo com a projeção mental que tinha da chácara, irromperia em segundos o corredor até se chocar contra minha porta. Se Dolores me conhecesse bem, leria o aviso de "Não Perturbe" - presente da loja de departamentos que me forneceu o jogo de cama, mesa e banho - que pendia tosco e engordurado na maçaneta metálica. Leria e se afastaria sem pestanejar, e eliminei logo a possibilidade de ser um animal faminto, pois que a organização e senso rítmico do que supus ser uma colher de pau e minha frigideira húngara confirmava que detrás da porta havia um ser humano com objetivos totalmente desconhecidos. Cessou. Um silêncio, um zunido se seguiu. Estremeci de excitação e suspense, aguardando a identificação do autor da barulheira infernal. A essa altura já havia me contorcido na direção da porta e arrastado metade do manto para o chão, fato que fez meus pés descobrirem-se e uma onda de arrepios percorrer meu corpo nu. Divisei, enfim, um giro moroso na maçaneta - que trazia as engrenagens da armação rangendo como moendas de cana: "Ieeec". Minha porta tinha desenhos curvilíneos randômicos, os quais caracterizavam um movimento colonialista europeu conceitual demais para o meu gosto, e aquele diabo de maçaneta, que prometi substituir por um que combinasse de fato com o monolito de mogno, tornava a peça um horror, embora o aço fosse símbolo indubitável da mais alta nobreza da época. Besteira.

O ângulo que se formava entre a porta e seu molde, a cada pequeno instante, ia tornando-se mais obtuso à medida que uma mão pequena e pálida a pressionava com esforço. Pude até mesmo ouvir o som desajeitado do indivíduo tentando conduzir a frigideira de meu maior apreço até postar-se paralelamente com a parede trás de mim e pousar os objetos no chão delicadamente, isto é, sem querer fazer barulho algum, como se eu não o visse. Era um menino que devia somar lá seus sete ou oito anos, a julgar pela estatura mediana e o rosto infantil intacto. Os cabelos, que me lembravam sorvete de creme, sinalizavam certo descuido, anti-higiene, e as roupas, tingidas pela terra avermelhada do solo interiorano paulista, apresentavam rasgos e furos em toda parte. Sua face ruborizada evidenciava a presença de sardas pequenas, agrupadas nas bochechas magras que desciam em cascata a partir dos malares agudos e regulares. Nas mãos, unhas enormes e imundas de terra me fizeram ensaiar uma careta imediata, porém um outro fato me chamou deveras a atenção: o vazio com que o guri olhava à frente, sem me notar, ignorando a respiração ofegante e meus olhos arregalados. Eram de uma cor de gelo, e também congelados; não orbitavam nem se dirigiam a direção alguma, inertes, meio que mortos. "Cego?" - com a voz branda e baixa questionei. "Não. - ele deixou assim pesar a palavra, a voz fina e estridente - sei que o senhor é um velho, tem cabelos brancos e as bochechas de um beberrão."

Jamais vi crianças com bons olhos, sobretudo aquelas atrevidas e mal criadas, e aquele diabrete deixou-me irado de verdade, pois velho eu não era (isso nunca!). Tinha boa saúde, somava lá meus quarenta anos e havia pouco que Celeste me deixara para compor o outro plano.

Diante do comentário grosseiro do menino, desviei a atenção e vi por trás de sua nuca, ao final do corredor, Dolores com um sorriso de satisfação no rosto. Ela lavava no tanque dúzias de lençóis e panos amarelados das minhas noitadas insensatas, dos quais eu jamais compreendia o uso. Após encerrar essa tarefa, alçou a mão ao varal, - ele servia, anos atrás, para que Ana e Lígia se divertissem nas brincadeiras infantis - e tomou nas mãos minhas vestes recém-lavadas. Sacudiu uma ou duas vezes a camisa branca, colocou-a nos ombros e rumou para meu cômodo com aquele bom humor infinito, intangível, aborrecedor. Sempre considerei mordomia demais a insistência da moça em me trazer o que vestir, principalmente por ser ela quem escolhia o conjunto do dia, dado o hábito de dormir nu que eu preservava desde a meninice. "Bom dia, sr. Borges, posso abrir as cortinas agora ?" - a voz de Dolores ressoava pelo quarto como o badalar do relógio da sala; e sua presença preenchia a escuridão onde eu me acabrunhava diariamente: era luz. "Sim, sim, abra, - respondi - mas cuidado com os cacos do rádio. Ele se espatifou essa noite sem que eu percebesse."

Antes de abaixar-se a fim de colher os fragmentos da minha "obra de arte" - como diria mamãe sobre um mal feito -, Dolores tomou a mão do menino e analisou-a com os olhos de rapina. Deixou-os perscrutarem toda a extensão daquela imundície - que não era exagerada - e lá ficou resignada, procurando no âmago do instinto alguma razão para advertir o moleque. De imediato, o que consegui ver no meu estado de pós embriaguez e torpor foi o semblante doce e maternal da servente transmutar-se, oculto pela densidade da penumbra verde-ácida, em rugas e sulcos faciais que jamais percebi estarem ali. A harpia em que ela havia se tornado colocou-se em postura de ataque e liberou numa descarga de fúria as garras mais afiadas na frágil prole que reagiu com um ganido risível e um galope que fez cantarem as tábuas bicentenárias de meu avô bicentenário. Das mãos do garoto, um carnaval de papéis manchados de suor e caneta azul foram vacilando no pesado ar até caírem acompanhados da minha atenção e de uma Dolores estática, que voltou como que de um transe ao trabalho de catar a sujeira que fiz e de recolher a frigideira que virara tambor.

"O que é isso, Dolores?" - minha curiosidade fulminante pareceu atingi-la em cheio. "Nada, nada, ele é só um moleque perturbado, 'seu Borges', vai entender" - o tom de voz choroso e hesitante denunciou as intenções da senhora de braços flácidos e volumosos que agora mostravam-se mais claros que a pele acre e os dedos gordos sem anéis.
"Estou falando do que estava na mão do menino, ora !" - quando me vi, estava gritando raivoso e a empregada compenetrada na tarefa doméstica se encolhia como se açoitada por alguém ou por algo.
"Não é nada com que se preocupar. É coisa da mama; quer dizer, coisa minha."

Depois de dizer isso, suspirou alto, esfregou os olhos com o antebraço e exclamou: "Sandro ! Venha aqui agora, diabo !". Deixou o quarto passando pelo corredor e arrastou-se para a área de serviços a fim de apoiar o ventre volumoso no tanque velho e imundo. Pra variar.

A saída da senhora me deixou num verdadeiro impasse. Minha voz não a alcançava e tampouco teria fôlego para gritar. Dolores esqueceu-se de me trocar e agora não posso ir à cozinha pegar minhas torradas com canela e beber minha xícara de café forte. É preferível voltar a dormir até que ela dê por minha ausência. Culpa do maldito moleque atrevido. E daquele papel picado nojento.

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