domingo, outubro 10, 2010

Havana - Parte II


Era sem dúvida um evento perturbador de se assistir continuamente; porém eu, sem pestanejar, apertava os olhos e mirava desavergonhado a silhueta à minha frente, destemido. Os dedos aracnoformes e pálidos dela desmentiam num ciclo doentio a ordem dos cabelos densos para em seguida repartir, mais uma vez, em blocos eqüitativos, os pesados cachos marrom-amarelados que pendiam até o limite das costelas magras e salientes; os longos fios que se moviam deixavam à mostra a agudíssima ponta de sua orelha, que me faziam estremecer debaixo dos cobertores calorentos da casa de minha mãe. Essa era a única lembrança de Beatriz que eu preservava desde o dia em que ela me entregou as chaves do apartamento e sorriu, dizendo: "Quero ver até quanto tempo suportará meus fantasmas, Andrei, só quero ver." Provavelmente eu não captara corretamente a mensagem que ela quisera transmitir, ou talvez tenha sido um comentário provocativo, sem importância, como uma frase de efeito que inquieta a mente, tornando a reflexão uma auto-flagelação desnecessária. Mas suspeito que ela o disse sem intenções mesmo, como que para preencher o silêncio, o vácuo que se instalara entre nós desde que depositei minhas malas no cubículo escuro e seboso de Miramar.

É bem verdade que eu a conhecia desde muito tempo, sim, inclusive sua personalidade era tão previsível que as brigas tornaram-se raríssimas, quase inexistentes, uma vez que eu as evitava com o intuito de não perder o teto que ela me cedera com tanta generosidade. Eu não a via fazia muito tempo, pois, desde que sua família deixou a cidade em que morávamos para trabalhar em Havana, Beatriz deixou também a escola, local onde nos falamos pela primeira vez. Coincidentemente, quando fui para a universidade estudar Direito, encontrei-me com ela nas vias do laboratório de Farmácia. Conversamos brevemente e aproveitei para marcar um almoço após as aulas do turno da manhã - foi aí que me livrei daquela república repleta de malucos e ideários, todavia esse é um assunto sobre o qual evito falar.

Nossa amizade, contudo, jamais fora das mais estáveis, confesso. Lembro-me de um caso específico em que eu preparava o café e ela chegou de mansinho, meio que choramingando. Interpelei-a imediatamente para saber que diabos a fazia chorar, mas mais que isso: o que a fazia chegar às seis da manhã em casa. O sol perpassava as persianas, como sempre fazia a essa altura e distribuía o amanhecer a começar pelo quarto que eu ocupava. O cheiro forte de meu café sem açúcar poluía o ambiente e mergulhava numa nostalgia sem igual minhas recordações da meninice. Quando dei por mim, não mais dava-lhe atenção, mas, distraída e tagarela, Beatriz não notou minha desatenção.

A polícia não tolerava em hipótese alguma pessoas perambulando às madrugadas nas ruas escuras de Havana, e, na melhor das hipóteses, ela poderia ser presa por um gentil vigia. Bia deu inúmeras voltas para se explicar e não atingiu ponto algum que esclarecesse sua empreitada noturna, mas vi em seus olhos a culpa e a apreensão passiva de me encarar nos olhos. Eu, reduto de justiça e retidão e ela, quebrantável como os porcelanatos indianos.

"Não mais acontecerá, Andrei, fui descuidada, sim, porém estava segura na casa de Ana María." - escorados na guarnição da janela da fachada, seus quadris serviam de base para seu hábito de balançar a ponto de cair na calçada - meu drama diário e infinito. Eu não conhecia a mencionada Ana María, mas quando Beatriz fugiu para o quarto com o pretexto de tomar um banho que durasse horas tomei nas mãos sua bolsa para encontrar algum vestígio que identificasse seu paradeiro.

Quando deslizei o zíper incolor da bolsa esverdeada e contemplei seu conteúdo, uma vertigem colossal me subiu à cabeça. Vi o quarto escurecer, o teto surgir à minha frente com a lâmpada tremeluzente, além das tantas coisas que caíram da mesa vindas da bolsa. Uma arma, uma arma de fogo com aspecto rústico e raspagens na cabo pesou na tábua corrida do rol de entrada; a típica parafernália feminina de embelezamento trepidou e papéis, muitos papéis, os quais o ângulo em que eu estava não permitia ver, chocaram-se num embaralhamento agressivo. Desviei espantado o olhar para o portal de onde possivelmente Beatriz viria, contudo, para minha tamanha infelicidade, seus dedinhos dos pés, úmidos e inquietos, já testemunhavam a consequência de minha curiosidade. Ainda enrolada numa toalha carcomida pelos insetos do armário, ela adiantou-se para pegar os papéis, sem me fitar um só momento. Reuniu-os sem muito critério e os colocou na gaveta dos talheres, fato que me causou enorme confusão.

Ainda sob os efeitos da queda, consegui acompanhá-la reunindo o que havia caído ao chão e iniciando um monólogo desconexo sobre segredos e perigo iminente. Bia ergueu-me com enorme esforço pelas axilas e me sentou na cadeira encostada entre o balcão da cozinha e a divisória da parte social do apartamento. Empunhou a arma com voz infantil e brincou, apontando e sacundido na minha direção: "Bang, bang, bang, caubói". Torpe, sorri, e ela, já vestida, pergunto-me como e com que facilidade, bradou longe lá do quarto - "Tenho coisas a fazer agora. Retorno ao final da tarde. Cuida-te!" - Faltou-me tempo para me opôr à sua saída, pois as chaves, cerradas na fechadura, dobravam anunciando que ela já terminava o primeiro lance de escadas.

Meio recuperado, meio lerdo, corri à gaveta que guardava os talheres de cabo plástico e abri-a. Fotos e anotações, mais fotos e anotações. Eram homens de face conhecida e as fotografias, tiradas sem qualidade e cuidado alguns. Minha memória não cuidava de reconhecê-los. Eram... eram... eram políticos ! Mas que diabos aquelas coisas faziam na bolsa de Beatriz ? Logo ela, tão alheia a essas questões, e, droga, que maldita arma era aquela ?
Quando fui até a balaustrada em que ela gostava de se balançar, não a vi mais. Agora, tinha de esperar seu retorno.

Fui à mesa para ler o jornal, liguei o toca-discos com um bolero datado da adolescência de minha mãe e deixei minhas pestanas praticarem o tradicional ósculo.

3 comentários:

  1. Há! Serei eu o primeiro a comentar? Não sei, Athur ou Calvin, não sei mais, ficou muito bom espero que me surpreenda novamente no III, e não demore! =P

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  2. Tenho me convencido de seu potencial absurdamente incomum para qualquer tipo de atividade que resolva desempenhar.
    Como sempre, parabéns, extraordinário!
    E, não me pense inclinado por, além do gosto pelo gênero, ser cosanguíneo.
    haha

    3 logo!

    \o

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  3. Exímios textos aguardo o próximo da trilogia de Havana se fruir espero que seja afável como este mais ‘'toca-discos’’ isso já se acabou a ensejos atrás.
    Gostei do texto ;D
    vc postou 10-10-2010 dia do meu niverrrrrrrrrrrrrrrrrr

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