sexta-feira, abril 01, 2011

Porcos em um tempo sem escala.





Eram sem dúvidas os pés mais lindos que eu já vira antes. Os dedinhos sanfonados e de pontas ruborizadas dobravam-se contra a sandália e ocultavam o rosa quase invisível das unhas lixadas com fabuloso esmero de alma vaidosa. Das pernas lisas e sem muita cor, e isso eu não escondia ver, uma seiva de ninfa-mulher escorria, pingava e respingava nas minhas pestanas, descobrindo intencionalmente um joelho que ela parecia exibir pretensiosa para a minha virgem e desesperada caneta de bolso. Desenhei, meio tremido, meio abstrato, sua inquietude voraz, pois que o confinamento a deixava com idéias desordenadas, e vez ou outra golpeava o ornamento do vestido que obrigava-a a devolver a alça aos felizes ombros sardentos de aquarelas outonais do cinema.

Olhando assim, de longe (de perto), a tira de tecido raro que circundava irregular os quadris só alimentava a atmosfera de pureza que emanava das amarras, das medidas, dos "cliques", do suspensório desatado e dos elásticos tensionados. Meus dentes rangiam - era toda ela uma unidade de segredos, e eu, ali, numa diagonal tímida feito Pinóquio que, não por mentir estória alguma, mas por fingir compor o infinito de bonecos de Gepeto, descrevia-a e projetava-a por capricho anônimo; e sentia espiar, fantasiar e silenciar.

O vestido despia nas costas constelações de milhões de pintinhas róseas, das quais eu inventava serem centenas de diferentes conformações. Elas remetiam despudoradas a Sagitário, Cruzeiro do Sul e Ursa Maior, mas, invariavelmente, viravam Três Marias que, fugazes, desapareciam no zíper discreto da saia e eu imaginava brincarem sapecas lá onde meus olhos não tangiam. Eram sem dúvidas as costas mais lindas que eu já vira antes. Eram espelhos sem imagem; eram confusão e caos; e ao mesmo tempo paz; e ao mesmo tempo horror; e ao mesmo tempo meus pesadelos - que não eram poucos.

Na boca, rápido e preciso, o bastão vermelho e feroz corria de um lado a outro. Meneava e marcava alegre os lábios miúdos, entreriscando os dentes alvíssimos, e me manchando de alvo e maçã, para que sua misericordiosa e delgada flecha atravessasse, indolor, feito Cupido e feito acaso, e me fizesse escravo.

Para ela, a moça do cotidiano, não que não houvesse fotografia e holofotes, pois havia de sobra lentes para olhar e olhar seus tenros seios, os dedos dos pés, os ângulos da face e a boca rubi - para os quais meus pensamentos orbitavam regular e diariamente como mosquitos à lamparina; contudo sua voz eu não capturava: era inaudível. Quando ruído breve lhe saía para agradecer a um idoso uma gentileza ou pedir licença a um transeunte de maxilar mais grosseiro que o meu, ouvia-se tudo: lamentações, suspiros, gritos, gemidos, seus chorinhos,minhas fortunas, e até os flertes bobos e inacabados que memorizava. Porque a moça do cotidiano era toda essa crise, toda essa ebulição dos astros do café da esquina, da escola primária e do sinal fechado. A moça do cotidiano era rainha do intelecto, do best-seller interminável de cinco tostões furados e o que há por trás dos temíveis óculos escuros. É meu ego, o meu clamor. É, sem dúvidas, a moça mais bela e mais horrenda que eu já vira antes; pois não existe e porque a inventei na mais fria e desimportante noite de março ou abril.





N.A.: o desenho pertence ao artista Alisson Affonso que, indiretamente, cedeu a imagem.

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