sábado, junho 11, 2011

Parcimônia.






Era absoluto castigo vê-la perfurar o vento com aquela marcha pesada, rápida e tensa. Mostrando a raiva contida nos dentes enrijecidos e no ar de moça desatenta para o dia que a observava e suplicava atenção, Rosa era a gravidade e o próprio centro de tudo: era plena. No hall sustentado por colunas de isopor reciclado - confeccionada pelo laborioso síndico artista plástico -, roía as unhas até sangrar a carne, aguardando que o elevador de trezentos e tantos anos descesse do décimo quarto e viesse buscá-la para chegar ao terceiro.



Blam ! Abriu a porta do apartamento e logo bateu-a trás de si - dando aquele efeito heróico de saloons dos filmes de faroeste; estava entreaberta. Esperou que as pupilas se acostumassem àquele breu característico dos primeiros andares e inspirou lentamente os odores da sua morada como que querendo detectar o invasor traiçoeiro e parasítico das suas intimidades: farejava Sandro, o homem exalando aquele perfume cetônico nojento que ela mesma dera de presente. Custara pouco, sim, a essência, coisa das lojas de quinze pesos - para menos -, mas que valera o jantar a pão francês, os tocos de vela de citronela e o gás que acabara enquanto pré-aqueciam o forno antes do parabéns.

Fora ali, no santuário desorganizado e de paredes leitosas, que construiu seu mundo, suas lembranças sonoras, sua carga mais torturante de corações partidos e boleros sem par. Prescrutou com os olhos imensos a sombra e a silhueta de seu domínio, deixando o vento vindo da janela sem grades borboletear os cabelos desgrenhados a fim de sustentar sua pose de desleixo caprichado, vaidoso, ou qualquer coisa que as mulheres fazem para ficarem mais bonitas 'sem querer'. Rosa não o vira lá senão seu cheiro pairando feito pequenas plumas, digo, feito pequenas bolhas de sabão no ar. Se saísse para tentar achá-lo, não seria surpresa dar com o moço, a garrafa de cerveja quente e um mundaréu de cigarros apagados em torno e pela metade na escada imunda. Era um contraste de pura desgraça o saco de ossos, o trapo ignóbil que se tornou seu amor de instantes, de quase nada, dos minutos fugazes de inconsciência e tédio. Seu amor luxurioso e sujo, mas amor. Amor que, agora quiescente, lhe fervia os lábios desnudos e ruborizava a face desgostosa com sua podridão de ser. O que antes lhe era uma perfeita terapia, um afago aos dias difíceis pelos quais passava quase que 367 dias ao ano, transmutou em pesadelo e a assombrava com as lamúrias da carteira vazia e dos beijos que não mais recebia. Ela ? Beijar aquela boca porca de botecos sem higiene ? Beijar aquelas putas baratas, infectadas com o terror das ruas frias, com o vírus da besta, com o toque da carne ? Jamais !

Nem sequer lhe lançaria palavra. Só o olhar, que sua mãe ensinara ser mais pesado. Também, dizer-lhe que sentia-se incompleta, decepcionada... quanto eufemismo ! Ao único que sabia da sua condição, um bichano magricela e de educação dubitável, sobrou-lhe um veneno na tigela de atum que o levou para o outro lado do véu em minutos. Morreu agonizando, miando perdão pelos crimes não cometidos; e Rosa, que não se deu sequer ao trabalho de enterrá-lo no terreno baldio ao lado da construção cinquentenária, enrolou-o num jornal qualquer da semana anterior e o lançou com toda a indelicadeza que cuidava esconder na caçamba amarela e enferrujada da rua Tristán. Mal sabia ela que enfrentaria por dias a fio o cheiro da carne putrefata e dos vermes asqueirosos roendo o bichano, transformando-o em mosca, em sapo, em cobra e de novo em verme. O lixeiro só passava às quartas, quando passava; e era manhã de sexta quando o bicho se despediu com o coquetel do kit de química que roubara da dispensa de sua mãe. Isso tudo se somava à fúria de encarar aquele Sandro-quase-cadáver cuja saliva turva escorria débil no canto da boca. Estava lá, naquele pouco resolvido corredor onde a poeira encontrava ambiente propício para se estabelecer, reproduzir e colonizar. Lá, onde os esquecidos e desmoralizados achavam seu refúgio. Lá, onde o homem da sua vida renunciou seu posto para adorar as muitas rainhas que ninguém coroou. Mas ela, que nunca fora aristocrata de coração algum, resistia pouco a pouco, petit a petit, a abrir a boca, ignorar os bons ensinamentos de sua mãe e libertar seus mais petulantes demônios. Vomitaria sua dor inteira ali mesmo, cuspiria sua alma até que contaminasse a última célula de Sandro com o rancor mais sádico que escondia naquele sorriso doente de boa menina adestrada a resignar-se a tudo. Deixaria-o saborear, em seus instantes de lucidez, que eram raros, a dor e seu gosto amargo. Porque as coisas - dizia ela aos desavisados - são rápidas, se desprendem fácil e logo morrem. Renascem da frustração, fecundam o arrependimento e voltam a apodrecer.


Seu peito farto inflou um pouco mais na penumbra e a indisposição do estômago ajudou-a a regurgitar as palavras mais severas que lhe passaram à cabeça:

__ Verme asqueiroso, medíocre, não me apareça mais aqui ou lhe expulso feito cão arruaceiro ! Seu parasita ! Aproveitador ! - o manancial de lágrimas de Rosa já secara há um tempo e, embora quisesse pôr um pouco de sentimento naqueles insultos carregados de sotaque portenho tão suaves, tão previsíveis, o que lhe saiu foi uma voz trêmula que se aproximou de um gaguejo até engraçado.

Sentimento não havia de fato, se quiseres saber. Morrera com o intemperismo, lixiviado pelas lágrimas que não conteve e pelas tantas garrafas baratas de bebidas irreconhecíveis. Se fosse conhaque, tinha gosto de melancolia; se fosse gim, tinha sabor de fracasso; ou os dois. E, dê por onde dê, não era dela o fardo maior - pois superara sua tolice sem saber como ou porquê - mas dele, a quem dedicou seu frasco de melhor perfume, o vestido reservado para a mais aguardada festa de mentira e a maquiagem mais demorada que cansou até mesmo a penteadeira, cuja luz enfrequecera no dito dia. Era dessas lembranças que vinha a reação latente do coração já frágil, que pulsava manso em seu esforço comedido, econômico.


Rosa, prostrada ali - olhando-o gargalhar zombeteiro da sua tentativa de trazê-lo de volta aos braços aprazíveis onde tanto o acalentou - deixou rolar o último fragmento líquido do amor que ela desconhecia a origem.


__ Que suma, então, mulher ! Que feche-me a porta ! Que se entregue a outros tanto patifes aos quais está acostumada ! - Sandro ralhou para ecoar nos quatorze ramos daquela árvore de concreto.


A moça soube que havia dito isso quando ele terminou o discurso soltando um pigarreio alto; e testemunhou, embora não distinguisse palavra-carnívora por palavra-presa, a despedida fria de Sandro, que ainda dava risinhos por dentro para não deixar cair o cigarro Camel light que sempre fumava pelos cantos.


Aquela era a parte em que ela daria as costas para o moço e seguiria para casa atrás de seu café gelado e um livro seboso de um autor qualquer. Porém Rosa esquecera-se lá: não virou-se de costas, não soltou a pesada porta de metal e sequer desviou o olhar. Estava praticando o que sua mãe tanto prestou a ensinar: fulminar o olhar denso, imutável, inerte até a tortura ser deveras insuportável. Tinha de queimar-lhe a carne, até que ele voltasse. Mas isso servia para os ideais de sentimento, para as coisas verdadeiras que constam nos livros de Kawabata:

__ Que feche-me a porta ! Que feche-me a p-- ! - Sandro fez ecoar novamente seus berros naquele organismo séssil, mas dessa vez o som não chegou ao alto da escada: a porta fechara com um seco 'click' e a penumbra anoiteceu, acompanhando o compasso da melodia dos pratos quebrando no andar de cima.

2 comentários:

  1. Maravilhoso, como sempre. Talvez ter fechado a porta com um seco click fosse mesmo o ato mais "parcimonioso" a ser feito, digo no sentido de poupar mais frustrações fecundas.

    ResponderExcluir
  2. Paulo Biologia
    O parasito do marido dela estava espalhando seu hálito de bêbado pela casa, templo onde ela guardava as coisas mais importantes pra ela. Seu hálito espalhava-se como bactérias se espalham pelo substrato, decompondo e corroendo tudo. A agonia dentro dela era tanta que ela preferiu matar seu gato, seu confidente, a contamina-lo com sua agonia que ela mesma não suportava. O cheiro de defunto do seu confidente já morto mistura-se com o cheiro do seu marido e ela decide mostrar o seu desprezo vomitando na frente do seu marido. Não entendí a parte dos pratos quebrando. Será que o marido dela estava tão entediado com a saída dela que resolveu quebrar os pratos? Ou será que no apartamento do outro andar outra mulher estava desmoronando?

    Eu gostei da forma dela de se envaidecer usando seus cabelos e o vento. Pena ela ter recebido o bafo de um bêbado ao invés de um beijo.

    ResponderExcluir