sábado, outubro 22, 2011

Ser eles.


Era como que um sentimento de não caber em mim. Uma necessidade de expandir minha existência aos níveis mais críticos e poder extrapolar a individualidade que deus nos impôs sabe-se lá com que propósito. A bem da verdade, eu não era suficiente para aqueles braços finos, o corpo esguio e a tez falsamente perolada. Eu era um desperdício naqueles traços repetitivos, sólidos e imutáveis. Eu desejava outras faces, outra formas, outras fortunas.

Minha vontade maior era prescrutar o íntimo das mentes, perversas ou serenas, e provar da fonte os segredos mais intempestivos de cada ser humano. Fazer-me saber dos temores, dos pudores e dos limites; controlar os passos e mudar destinos; fazer, por assim dizer, a vida à minha semelhança e deleitar do desespero que é perder-se na inconsequência de outro alguém.

Minha vontade era aproximar-me do sexualismo dos familiares, poder ouvir suas preces inauditas e as maldições infundadas que a inveja traz. Queria guardar de cada um seu amor próprio, suas carícias de frente ao espelho e a admiração a olhos vivos das geometrias dos corpos desnudos. Eu anseava provar dos toques, inventar paixões e alavancar adultérios. Pôr as damas nos cabarés e as putas em minha casa; ora jantar com cães, ora passear encoleirado a eles numa travessa movimentada de Buenos Aires.

Eu queria mesmo era ter tempo para ser o mundo; mudar de país, mudar os papéis, ser um escultor falido, médico e bombeiro; ter uma doença crônica, uma identidade nova, uma conta gorda nas Bahamas e pilotar um iate nos fins de semana. Queria viver às migalhas, abraçar um bom litro de cachaça e queimar a garganta com um alívio tão instintivo quanto pode ser o sono. Queria pisar descalço as grandes avenidas, viver de agricultura ou vender bugigangas a quem houvesse de achar ali qualquer importância.

Minha vontade era de amar todos os idiomas, misturá-los ao acaso e com eles fazer discursos de aniversário ininteligíveis. Eu queria poder amar muitos, quiçá todos, pois assim por todos seria também amado e no mundo não faltaria sentimento à mais baixa, suja e demente das criaturas. Queria ser aquele a pedir desculpas, mas também o orgulhoso, pedante e inculto. Queria trazer de volta aos meus dias a infância, e tão logo ela me aborrecesse, experimentaria a velhice que tanto me contém hoje. E ai do hipócrita que erguer-se num púlpito para condenar-me bruxo, pois já estive em sua mente e dela sei que saem impulsos luxuriosos e a fera acorrentada do ser humano temperado à mais falsa civilidade.

Eu queria que nossa existência fosse uma permuta constante, que nos permitisse experiências novas a cada manhã; que nos colocasse a mesa do café em uma casa nova, com um patriarca autoritário e uma irmã viciada; o jantar com um cineasta russo mal humorado e o desjejum ao lado de um filósofo contemporâneo surdo.

Eu queria poder ter uma arma, um pote de cocaína e um fundo de ajuda e caridade.

Eu queria ser eles. E só isso me bastaria as ideias.

Eu queria ser. E só. Mas as leis que regem nossa humilde existência nos limitam a um único caminho; e o meu despontou no fim, lá longe onde deus descansa.

Um comentário:

  1. Ansiava por um ler um texto novo seu com os olhos quase secos. É. Neste meio tempo andei voltando meus olhos a uns escritores que estavam me fazendo falta; foi uma viagem no tempo porque eles marcaram fortemente uma certa época da minha vida (a qual hoje eu encharco com saudosismo). Disse isso por que, hoje mesmo, me bateu uma saudade enorme do Álvaro de Campos e daquele intimismo agudo com que ele trata sobre mim - pode parecer pretensão, mas eu sou constantemente alagada pelo sentimento de que ele escrevia aquelas coisas tratando da Gisele. (?)
    Se eu não fosse a pessoa que sou, impulsivamente clicaria em ‘postar comentário’ e bradaria ferozmente: “ENCONTREIMEUTEXTOPREFERIDOBJS!”, entretanto, como estou culminada a ser isto, essa pessoa que (quase)sempre guarda o primeiro pensamento, contive-me.Você já sabe das suas características que eu admiro enquanto escritor e acho que não é preciso reiterá-las todas as vezes que eu passar por aqui. Gostei muito, mesmo, principalmente porque me remeteu ao intimismo que eu estava precisando hoje, como o Álvaro – e não me referindo a qualquer intenção previamente concebida – o Arthur desse texto escreveu muito sobre mim e sobre os exatos sentimentos que me têm chacoalhado a cabeça até a náusea nos últimos dias. E, é, para eu ser eles me falta tudo isso ai, exceto a parte de amar todos os idiomas, rs.
    E para não parecer que sou lunática, veja o que me disse o Álvaro: “vivi, estudei, amei e até cri e hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.”

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