terça-feira, novembro 22, 2011

Meu Lema.



Estava muito claro que aqueles resmungos indiretos eram todos para mim. Giselda balbuciava uns trocentos maldizeres e lançava aquele olhar torto na minha direção para ver como eu reagia à sua cerimônia de querer me inclinar às suas vontades. Usava de todas as estratégias juvenis – e enquanto ateava fogo no quarto, rolava também a calçada e se jogava nua do vigésimo andar: um verdadeiro festival de falsas ameaças. Eu, macaco velho que sou, por mais compaixão que mentisse com olhos protraídos de atenção e vida, não fazia valer as pirraças daquela quase-dama projetada para carnavais nos quais talvez nem vivo estarei. Não, não, comigo o buraco é mais embaixo, e esse tal partido de feminismo por conveniência não se acolhe bem na minha consciência; em verdade, nunca se acolheu, nem mesmo quando era uma criança subordinada e desacreditada dos motivos que a televisão a cores tinha pra nós.


Meu pai, que era bom exemplo dessa máxima, sustentou até seu último suspiro aquela mania boba de ordenar que minha mãe “fizesse isso” ou “arrumasse aquilo”; e era só pelo prazer descartável de tê-la nas rédeas, presa à sua corte, que seu ego gerava natimorta qualquer esperança de que algum dia gestos de amor fossem dominantes no nosso sobrado na desperdiçada Alameda das Acácias, número 3. Tudo isso para manter viva, como sempre fora com meus avós, bisavós e outros vós, a tradição do patriarca absoluto – palavra que para eles era sinônimo de monarca e que por vezes esbarrava nos ofícios de tal.


E foi nesse reinado de Luís não sei das quantas que passou tempo suficiente para que o respeito de toda a família recaísse sobre sua pouco expressiva existência e se diluísse no partir de Sebastião de Sant’anna, no dia 15 de fevereiro de 94: sem chuva, sem flores, sem música e sem qualquer significância de dia póstumo - nada. De fato, concordo que não existem bons dias para morrer, ou sequer um dia certo para abandonar tudo e entregar-se para o Divino, mas o pilar da integridade familiar que antes era teso e inabalável tombou e foi enterrado junto de papai no gélido granito da marmoraria do Lucinho, e de lá, até os dias de hoje, não saiu mais.


Minha irmã, engajada daqui e de lá com uns intelectuais desvairados, enviesou para as tônicas da arte e da preguiça e perdeu-se com ela mesma num apartamento do subúrbio de um subúrbio brasileiro; Clarisse, minha esposa, reatou um amor duvidoso com a capital e refez as malas para Lima; e Sandra, a governanta que me trocou as fraldas e serviu-me o jantar do casamento, se mandou para os confins da terra com meu cunhado Oswaldo, de casamento marcado com Ana Beatriz; um grande filho da puta.


Sei o que dirá, mas só sei porque por aqui não há quem não diga. É um familiazinha medíocre os Sant’anna, gentinha que não vale a merda que põe no prato, um bando de sem vergonhas aninhados na mesma casa... Vá, eu compreendo, ora ! Essa mesma franqueza de falar o que dá na bucha é que faz as boas maneiras das donzelas de Fundo Céu - é o normal nessas bandas de cá ! E Giselda estava lá, quimérica, tentando fazer da história dos meus antepassados um registro superficial e transponível. Até que eu explicasse a carga que repousava nos meus ombros e os olhos do meu pai lá no infinito projetando memórias de minha infância, decerto ela me deixaria para recorrer aos seus outros. E eu sabia, desde muito tempo, que não eram poucos.


Cá pra nós, uns até me acompanhavam como amigos no bilhar, críquete e golfe australiano, e de tanto relatarem suas más criações ao lado da tal ‘moça do Santiago’ – pai bebum e já finado da minha moçinha – relacionei logo a Giselda e matei a charada que discordava da minha inocência quase adolescente de pureza ia até os dezenove.

___ Vamos, Ricardo, vamos de uma vez ! Se aceitar meu pedido prometo não lhe pedir mais nada que ataque seu bolso ou sua dignidade. Não sei se você me entendeu bem: eu disse Caribe !


Entusiasmada com seu próprio ar de locutora, ela sabia que jogava bem. Essas promessas que unem “nunca” ou “sempre” a uma concessão qualquer são sem dúvidas as mais vantajosas; e essa, apesar dos pesares, mexeu com minhas estribeiras. E, não sei como, ela sabia das minhas finanças. Sabia tintim por tintim de cada trambique, seja com os vendedores de coca na fronteira ou com a validação dos cassinos; o baralho, os impostos e meus negócios caribenhos pendentes: absolutamente tudo. E, não satisfeita, chantageava com maldade para me arrancar toda espécie de regalia. Sapatos caros, máquinas fotográficas, jóias, brinquinhos de ouro e uns outros cacarecos moderninhos que eu não sabia bem pra quê. Também, não ousava jogar a culpa em ninguém que não em mim. Cada espirro, cada palavra, cada gesto, por menor formalismo que parecessem conter, foram minhas criações, tinha meu dedo ali de um jeito ou de outro. E Giselda, minha criatura esculpida num exemplo de mundo perverso, tinha a quem puxar. Ela era o retrato mais fiel, a ilustração mais exata do que havia de verdadeiro nos recheios humanos – era a verdade em ferida aberta simplesmente.


___ Eu já disse que isso não dará em nada, Giselda. Além do quê, nesse período não há quase turista algum ! Meu bem, os tempos mudaram ! Mudaram pra valer. – eu tentei ser cordial, fiz minhas caras de coitado, ofereci uma dose de whisky e tentei um cafuné que ela pouco apreciou empurrando meu punho com uma raiva dissimulada ou uma esquiva. Foi fatal.


___ Pois fique então com tuas putas, Ricardo! Leve-as com você para conhecer o mundo, gaste tudo com aquelas sanguessugas e depois pague-as para largarem-no como um coitado num hotel asqueroso com uma xícara de café e sem um tostão furado no bolso. Se é a elas que você demonstra gratidão, deixe como está.


Vi essa cena como encarei Lígia nos olhos em sua adolescência difícil. Foi, das minhas filhas, a mais hermética e sentimental, a que mais intensamente marcou-me na pele. Era vulgar, melindrosa e decidida demais para estar no tempo e na posição em que estava. E partiu só, como tinha de ser. Dela, não tive mais notícias; talvez tivesse trocado seu nome, pintado o cabelo ou feito um rosto novo. E eu senti naquele dia, que de todos os seres humanos eu era o mais impotente; que para permanecer sozinho eu só precisei amar o indivíduo ao qual dei parte da vida. Ou melhor: de quem cuidei, a quem protegi eu só recebi silêncio e indiferença.


E vi essa cena reproduzir-se tal qual na fatídica noite de setembro. Minha moçinha fazia o papel de Lígia, e eu, um tanto menos grisalho que agora, assistia a tudo meio apavorado na noite em que por fim decretaram minha solidão - sem minha assinatura, meu consentimento, meu aval.


Giselda, em cima do mesmo banquinho de madeira em que minha mãe nos punha todos de castigo, colhia do armário todos os vestidos que comprei, todos os colares, todos os livros, todas as cartas e presentinhos... Colocava-os um a um numa mala maior que ela própria, sem o menor sinal de pressa - arrumando com esmero suas coisinhas - como que fazendo-me remoer sua partida lentamente. Parecia apreciar o veneno penetrando aos poucos, célula a célula: ácido, corrosivo, torturante.


Eu fingia desconhecer, mas estava claro que era a sensação de estar só encharcando-me mais uma vez. Em verdade, eu dava à luz o remorso de uma geração inteira. Sentia pesar em mim o monstro infinito que é o cárcere de si próprio sobre a consciência. Assistia inerte a vida transitar nas memórias e no semblante decepcionado de meu pai, que por sua vez azedava por desgosto ao ver-me retirar do paletó dois bilhetes com o logotipo da empresa de táxi aéreo. Naquele instante, eu desperdiçava todos os esforços de seis mil homens por uma coisa simples: medo. E entregava definitivamente as rédeas àquele projeto de mulher. Mas mal sabia ela que lá nas "ilhas bonitas" eu não era tão querido assim como pensava.


___ Faça suas malas, meu amor. Partimos pela manhã.


4 comentários:

  1. Texto conciso, intenso e, impetuoso, eu diria, em muitas frases que facilmente figurariam o meu quadro de citações favoritas; e, só para exemplificar o que estou dizendo resolvi colher uma muito forte: “Sentia pesar em mim o monstro infinito que é o cárcere de si próprio sobre a consciência.”
    Você sabe da minha veneração pelo Fernando Pessoa, em Álvaro de Campos, e o olhar íntimo e desgostoso dos escritos dele paira exatamente sobre frases como essa, do seu texto. Poderia abstrair e sugar algumas várias interpretações do título Meu Lema – se me permite, todavia, a que mais me atinge agora é a idéia de solidão decretada (não escolhida), aquele sentimento que adentra, verdadeiramente, as vestes da impotência e das fraquezas e dobra, até mesmo os mais fortes, aos caprichos dos desejos.
    Penso que eu posso te prometer, com a garantia da palavra de gente honrosa, qualquer prêmio que me seja plenamente inacessível caso você consiga a audácia de me decepcionar com um texto seu - na certeza de que não serei vencida. Incrível, não quero ser petulante nos meus elogios, mas, você ganha a cada publicação a devoção das minhas aspirações literárias.

    “Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme; não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.” (A. Campos)

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  2. Ah ! E, encare o meu conciso apenas enquanto 'preciso', rs!

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  3. Começou bem o mês de Novembro, rs. Já estava preocupada com o sumiço de suas escritas no blog.

    Quanto ao texto, salva de palmas com duração de 12 horas.

    Não gosto muito de exclamações, mas aqui elas conseguiram ficar incríveis, pra variar.

    Esses amores realmente me enternecem, apesar de tudo.

    A grande verdade é que Ricardo sente, mesmo "solitário", que não há maiores obrigações para sentimentos e/ou impressões.
    Ainda que ele fosse, nunca teria de ser.

    Muito bom.

    Wii.

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  4. Vamos lá, Arthur...

    Destaco, nesse, o uso excelente, sob meu olhar, do fluxo de consciência. É um texto espacialmente estático, contudo, a mente do narrador nos transporta à imagética da viagem, à condução de um enredo e respectivo preenchimento deste ligados mais ao psicológico, à construção social da personagem. Paralelo a isso, há um mundo "real" que engloba Giselda em que a travessia por diversos tempos mentais nos faz questionar: O que fazia Giselda,enquanto ele estava distante e tão mais morto e inerte quanto ela o via? É interessante ver isso, porque dá a impressão que é impossível "desligar" Giselda, o caminho mais certo e produtivo seria se "desligar" dela. Bom, acredito que outras coisas relevantes já foram relatadas pelos que antes de mim comentaram. Chega do que exponho...

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