quinta-feira, janeiro 05, 2012

Ira.




Hoje o homem precisava ter asas. Não digo isso para que ele as bata vigorosamente e exiba-as à liberdade que têm os anjos no céu e nas telas barrocas, mas para urrar como aves onde o som pouco se escuta e a raiva permanece acalmada pelo que há de imaterial e etéreo no hiato do mundo real: que é senão o vácuo da atmosfera ou o parágrafo secreto dos rabiscos de Caminha.

Eu, mais que nunca, orava a um ser qualquer, minimamente superior, que me desse a atenção dada aos políticos em seus protestos ou a uma personalidade com cem dólares na carteira e um rosto bonito, ou mesmo a que deram a Davi, quando este ergueu-se alto nos braços de desconhecidos e foi coroado rei sem muito porquê. Desejei, pela primeira vez em anos, que ao meu redor não houvesse o limite da minha natureza humana: essa criatura tão vangloriada em meus próprios discursos pela universidade, que a tantos infligiu bocejos e caras feias de desgosto e discordância. Naquele instante, sozinho e subjugado ao esquecimento de causa pobre e plural, venderia-me a um estranho se me surgissem - tal qual a Hermes - pés alados que me tirassem do caos quando me conviesse. Asas que ao menos me colocassem entre a beleza da arte do homem e o tédio mudo dos deuses: que fosse no Éden ou no limbo, que fosse na clareira de qualquer coisa, ou no próprio nada.

Na bolsa, nem mesmo uma caneta trazia comigo para desenhar às pressas minhas penas juvenis. Mas a tal divindade, "o espírito do nada", "o santo do invisível", enviou-me solidário, prontamente ao surgimento do meu falso pranto de ira, um cego precavido que usava um borsalino bege e uma camisa lilás. Cedeu-me seu lápis de ponta gasta e mal feita quando sacou-o do paletó ainda meio desconfiado, provavelmente ao sentir minha inquietação dentro do antigo ônibus de Santa Matilde. "Tome aqui, criança, vai te fazer bem." Uma porcaria de lápis - que o diabo me entregou como um afago de mãe, achando que eu fosse um moleque de seis anos entediado com a viagem. Mas, como acompanhado de um sorriso e uma expressão de curiosidade que minha prática em braile não conseguirá sanar nem dali a dois mil e trinta e três anos, aceitei calado, sem agradecer nem pedir licença.

Dê cá. Nunca gostei muito de cegos, nem mesmo quando eram meras personagens fugazes das tardes em que minha mãe me arrastava ao centro da cidade para estudar arte moderna. Para ser sincero, minha intenção era esquecê-lo lá e tomar-lhe o lápis aos meus propósitos. De fato, eu necessitava, como um remédio do coração ao cardíaco, borrar umas setecentas páginas com uma crônica do drama da minha vida, mesmo que isso custasse a confiança do velho desalumiado e ingênuo: o cego. Queria delinear a olhos vistos, sim, toda minha história, a qual agora, apesar de apossada, fazia-se feroz e traiçoeira, como se indomada por escolha própria, isto é, insubordinada feito órfã inserida numa família desacreditada pela infertilidade e despreparada pelos fracassos da vida, ou vice e versa. Mas não a culpo desse destino, foi o mundo - escultor de gerações - que a moldou assim.

Talvez fosse essa a explicação, penso aqui. Não é difícil acreditar que minha trajetória se sustentou por sorte. Sinto-a desacolhida desde sua discreta aurora, a qual nem mesmo com algumas centenas de vocábulos consigo resumir. E não uso da desculpa de que é complexa demais ou que de tão confusa seria perda de tempo narrá-la, isso nunca. Se me desse uns dez minutos de prosa, faria de ti, do desconhecido, do anônimo, do zé ninguém, os meus melhores e mais honrados amigos. Minha voz é sem pudor algum uma fonte de profecias e meus lábios, a raiz de muitas verdades; porém, sempre recordo de que me distancio do narcisismo - que de fato é mera insegurança - de dizer que sou deus de mim ou de ti. E prova dessa discussão é eu ter concluído depois de um sonho perturbado que minha mente conspira e conspirará contra minha tranqüilidade e o casamento entre uma alma de luz e um mistério-milagre que fez o que sou enfim.

Poderia assustá-lo com essa premissa, sem dúvida, e limitar-me a essa declaração. No entanto, preferi guardar a memória de minha dor um tanto mais fundo que uma lembrança ou um berro nas alturas da troposfera podem alcançar. Eu quis, e só dessa vez, ser ouvido, lido, recordado e discutido nas mesas de bar... porém, antes da glória, da romântica importância que nem sei se virão, precisava receber minha catarse de mãos beijadas.

Conversando com amigos, descobri que ofereciam-na a preços altíssimos em consultórios, divãs e o diabo a quatro. E tudo isso a exatos três quarteirões da minha casa. Eu compreendo, resignado, sério, sem sarcasmo, - te juro! - que custa caro saber das dores do outro. Decorei das reflexões de minha mãe os argumentos que apontam a responsabilidade que é vender diretrizes teóricas e duvidosíssimas com o objetivo de fazer alguém pouco mais feliz da vida. Sei do charlatanismo embutido nos remédios de etiqueta preta e na entidade misteriosa que nomeiam 'Academia'. Sei do quão perigoso é ir longe demais, atrás de uma dica que atalhe uma vida de angústias. Sei de tudo o que perpassa o universo medíocre dos intelectuais, da razão e dos que acham que a detêm.

Meu veneno, portanto, foi saber que eles tinham minhas respostas prontas; mas que, antagonicamente, se fortaleciam por dominar um idioma, uma escrita, uma sintaxe que, embora exatamente iguais às que eu e meus problemas praticávamos entre nós no jogo de tentar desembolar o fio do telefone, soa artificial, estrangeira, ininteligível... E não duvido também que esse seja, por fim, o propósito desses vendedores de solução. Talvez só assim, vestindo essas roupas de brechó com cheiro de guardado, usando tais óculos com setecentos graus acima e adorando deterministas, existencialistas e lavadeiras, eles se alimentem das próprias gargalhadas e dos descontroles alheios.

Eles sabiam que lá no meu verbalismo, onde nenhuma ressonância consegue enxergar, jazia minha doença. Ela penetrava bem fundo na minha covardia, minha fraqueza, e punha em evidência a vulgaridade "daquelas lá" comprimida num sorriso falso; espelhava sem medo suas caras imaculadas e projetava a gritos inauditos e duplicados sua revolta contra meu desejo por sua dualidade, de mantê-las sob meus cuidados num ato egoísta e irracional. Eu tinha as chaves para libertá-las, mas sabia que minha consciência - adoradora da posse - preferia mantê-las embrulhadas numa concepção miniaturizada do mundo. Onde pudesse cuidar e manter em sigilo por mais tempo até que o tempo soprasse-as para longe.

E meu pai, ao fundo, profetiza orgulhoso de si aquela experiência enxerida de velho sábio e coisa e tal. Talvez ele guarde suas reflexões não verbalizadas no bolso da camisa que nunca usou, como se não sentisse vontade alguma de encontrar e resolver sua existência. E, no verso da história, vejo-me na época certa de perdoar o mundo dos males impostos a todos fortuitamente. Mas nunca fui muito de perdoar, nunca fui muito de muita coisa, para ser franco... nem de viver como meu pai, assim desse jeito, sem muito pensar no seu "Eu".

Enfim, para chegar em casa, depois de descer exausto e com chuva do Santa Matilde, disputei a marquise dos tais consultórios com seis ou sete alunas do Padre José sob forte chuva. Tinha de fugir dali, óbvio, então apertei o passo para atravessar os três quarteirões. E ainda assim, balançando as chaves do apartamento, cruzei as ruas agarrado à minha quase finada coragem, como se a sensação de estar me aproximando do meu ninho remediasse a pressão do medo de falhar, de entregar-me por doze mil a alguém que se senta atrás de mim, sem fitar meus olhos, e me diz algumas "verdades absolutas" anotadas por um viciado num domingo perdido no tempo.

De frente à porta de casa, esperei que ela reconhecesse meus passos contra o assoalho. Sempre subia o único lance de escadas reproduzindo a 5ª de Beethoven, tsc. Nada de resposta. Agitei novamente as chaves e só assim vi o número 12 sumir da minha frente e aquela criatura assustadora e ao mesmo tempo doce me saudar com uma cara de sono e sua outra metade me ler dos pés à cabeça. Essa cena sempre será um "mudo" na minha história, como se eu não tivesse como entender tal estranha mecânica.

Como se previsse meu coma lúcido, ela me passou o telefone sem fio e uma outra voz me ditou o número, que disquei sem muito pensar. Antes, num ato de desespero, tentei encontrar naquela penumbra uma caneta para esboçar minha expectativa de resolver tudo ao voar alto e expulsar minha perturbação somente com um grito de ira. Tinha tempo e legítima esperança de que funcionaria. Mas do outro lado da linha alguém com uma voz anasalada e impaciente saudava-me com um "alô". Sem o mínimo controle, pus-me a tagarelar para o outro lado:

___ Dra. Rosali ? - por um momento eu duvidei que estava falando com um humano - Qual o melhor horário para consulta ? Amanhã ? Ótimo. Sei onde estão, moro a três quadras do edifício. Passar bem.




A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu bloghttp://porleonardo.blogspot.com/.

6 comentários:

  1. Comecemos minha libertação...
    Uso, em termos teóricos, a visão de Piglia sobre o conto, para falar de seu texto. Segundo ele, todo bom conto deve ter duas histórias; uma delas a secreta que será moldada pela superficialidade da primeira e revelada no último momento. Mesmo mais se parecendo com uma crônica, podemos adotar essa visão de Piglia para vermos o que acontece... Existem duas histórias? Acredito que sim. E o mais interessante é que não estamos falando de dois enredos, como diz Piglia, mas sim de uma primeira história singularizada, subjetiva, mediada e confrontante em relação à outra objetiva e plural alheia... Elas se encontram no final - bem característica de Victor - obscuramente através de um turno de fala que nos leva a compreender, ao contrário de Piglia, que não é uma história que se revelará duas, mas sim, duas histórias que se revelam como uma, já que, até mesmo em temos de Sollers e Bakhtin, toda vida é um discurso impuro, antioriginial e formado por outros anteriores. Não há como a personagem narradora se desassociar do social, uma vez que é uma "entidade" abstrata componente de sua formação humana.

    Continuando minha leitura, vejo nesse texto o trabalho com o além-palavra, algo que já tínhamos conversado em outros tempos. A literatura como momento de revelação, como diria Joyce, de epifania. Não é o meio de revelações por meio de grandes fatos, mas grandes revelações por meio de interpretações fantásticas daquilo que há no mundo ignorado pelo olhos de quase todos. Como defende alguns teóricos, é aquele momento em que o texto te obriga a levantar a cabeça e ver o mundo de forma diferente... Texto de uma sentada, em termos de Cortázar, mas texto de muitas "levantadas de cabeça"...

    Para finalizar minha leitura mais estrutural - já que as interpretações diversas deixo com outros que as melhor façam - talvez esse seja um dos poucos textos que há uma rígida seleção de público. Isso é ruim, bom? Depende de você. O fato é que, em termos assombrosos para mim e familiares a você, é um texto que, se estivesse no primeiro capítulo de um livro, seria o agente de uma seleção natural para os que viessem a seguir.

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  2. Eu não sei bem até onde irei parar com o meu conceito, em relação a você, de chef d'œuvre. Alio-me a esta idéia na certeza de que a aurora das suas produções e do seu dom não entranhou no âmago do verdadeiro sentido de limite de grandiosidade. É assim com todos os mestres? Não saber onde ou quando se atingirá o ápice das suas qualidades?
    O título não poderia ser outro, o texto completo está inebriado de cólera, ainda que você saiba, como ninguém, descrever essa brasa toda com afabilidade, pois, me chega a ser confortante ler coisas deste tipo: “Mas não a culpo desse destino, foi o mundo - escultor de gerações - que a moldou assim.”
    Não sei também até onde vão ou mesmo onde se esbarram os limites da natureza humana ou o pesar do drama da vida – até porque não são todos que se deixaram banhar pelas águas salgadas das próprias crises internas –, mas eu conheço bem este sentimento de furor e a quase sensação de não poder ser ajudado que ele nos oferece. Estar tomado pela ira é para mim é último estágio do desapontamento, pelo menos no que diz respeito às minhas experienciadas reflexões. Foi assim que o mundo ou o tal ‘santo do invisível’ me esculpiu e tem moldado minha história e me posto, cada vez mais, diante do charlatanismo da psicologia e das mesas de bar que tentam afagar, erroneamente, a total ausência de tranqüilidade de mentes como a minha e de tantos outros e outras (eu realmente não sei o que você acha disso de eu levar os teus textos pra dentro de mim, mas eu juro que a culpa não é minha!). Confortam-me, ainda, os dez minutos de prosa para a minha catarse - purificadora de dramas. Mas, asseguro, ser ouvido é tarefa árdua! E reconhecer o próprio ninho na realidade, quando se está perdido, há muito, no onírico, é quase trágico!

    Incrível, você ainda vai se cansar de ouvir isso, mas dentre os meus preferidos caberia (sim!) consagrar a você a íntima significação de ‘alma de luz’!
    Parabéns, Arthur.

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  3. Genial.
    Construção do texto ficou ótima, ao meu ver.
    E mesmo interpretações sendo algo bem relativo, fica claro que ele mostrou bem frustração e vontade extrema de fuga.

    Apesar de não ser um dos meus preferidos,como sempre o que tenho a fazer são elogios às suas escritas, então, aí vai: continue assim ! Seus textos realmente têm o poder de sensibilizar.

    Wii.

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  4. Que texto mais.. mindfuck. No meio do caminho esqueci se estava realmente lendo uma crônica ou uma reflexão da minha própria vida. e-e


    (Ps.: meus comentários sempre são os mais sem graça, mas tenho lá minhas dúvidas se alguém consegue admirar tanto sua escrita quanto eu. <3)

    L.

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  5. É um grande prazer ler seus textos e comenta-los!
    A alta carga emotiva me fez perder a noção do tempo, incitando muitos sentimentos provocadores e uma profunda reflexão em cada palavra.
    Mais um texto de mestre! Sempre me surpreendo com os seus textos e com o seu talento!

    Hanaisa

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  6. Parabéns pelo blog!
    Conheci vc na galeria do Palácio das Artes.
    Vc escreve muito bem. Continue com esse trabalho!
    Nádia.

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