sábado, outubro 27, 2012

Há sempre um lado que pesa - Parte I


Signo máximo de honestidade, totem inabalável de respeito. Ético, responsável e cordial. 

André era astuto, era seguro, era verdadeiro... André era uma receita de deus com métrica e rimas parnasianas... André era, acima de tudo, poesia para todos os gostos...



Talvez pra mim, e apenas pra mim, André fosse só um reforço da perversão do mundo e um exemplo de sua lógica de segregar alguns aos abomináveis e desiguais privilégios de outros. Sei que dirá, mas nego vigorosamente, pois não tenho por ele qualquer forma de inveja e tampouco razão para isso - você verá. Depois de travar batalha dura com a vida e seus percalços, hoje cultivo feliz minha pequena fortuna, tenho filhos maravilhosos, um fiel perdigueiro um pouco anti-higiênico e uma esposa que, apesar de hoje tuberculosa, dedicava-se ao lar nos seus tempos de saúde com um resígnio memorável. Honestamente, o que me dá é só um vazio, uma fúria de irmão sombreado pelo sucesso e brilhantismo do outro; um sentimento de quando se parte o bolo e oferece a cereja a um gêmeo e ao outro guarda-se o pedaço desornado e ainda assim espera-se o sorriso de recompensa se arquitetar no rosto do injustiçado. Vá lá, é demais !

Nasci às voltas com esse argumento. Ditava-o a qualquer um e em qualquer lugar; na igreja, quem me ouvia era pe. Cícero; na escola, a inspetora Circe; e na mesa, em hora de ceia, todo mundo que se sentasse por perto. Minha mãe, Vera Lúcia, me fazia reprimendas desajeitadas de mãe ausente, e com suas olheiras - que mais pareciam maquiagem - ela via que tais censuras não eram de grande valia, pondo que a expressão da razão, segundo ela mesma, era o silêncio das outras tantas mentiras que se calavam na minha cara amarrada (e os pontapés em direção a André que passavam raspando nas calças novas que ganhara de algum conhecido). E foi ano após ano que eu vi André se bastar em si, crescer sobre o mundo com um sorriso comedido e sua forçosa austeridade que, desconhecia-se, deformava ao misturar-se às mechas de amantes nem tão secretas assim de hoje em dia.


Era um bom garoto até certa altura, ah, isso era ! Alguns anos mais velho que ele e, dadas as condições, uma boa referência ao moleque, logo notei que ele possuía um espírito virtuoso e altruísta de querer ser o bem e fazê-lo a todos com certa neurose, ainda que discreta, que papai nos instruiu a adquirir. André parecia querer se colocar em todas as situações e ser protagonista de todas elas: era um jovem naturalmente invasivo, mas com bondade somada a isso. Depois que papai se foi - coisa de briga de bar, cachaçada, facada no bucho, mulher alheia, sangue pra todo lado, nada de ambulância ou de meu irmão - tudo mudou com uma velocidade incrível. Não fora ao enterro: estava com Elena, uma recém conhecida, fazendo as compras do mês e ajudando-a a abarcar as sacolas na carroça. Encontrei-o voltando pra casa com um andar rápido, serviço cumprido. Eu ainda secava as malditas lágrimas do rosto e ele, com um cinismo que qualquer um ali podia esbarrar, perguntou o que se passava comigo. Dei-lhe um bofetão na bochecha que trazia uma pinta exatamente igual à do papai. Sua face adquiriu um tom de fogo, brasa forte. Cabeça baixa, entrou para o sobrado e logo voltou sorrindo, indiferente, nada de mais: a vida segue. Eu disse filho da puta. Ele desimportou. Seguiu, virou a esquina e sumiu. 


Entrei em casa, estourado de ódio e ouvi mamãe fungando e dizendo que André ao menos era como o pai e que dava orgulho de vê-lo trilhar os passos do velho com tanta dedicação. Meu pai, que deixara a família desamparada por causa de uma mulher que não lhe pertencia.



Passados alguns anos, talvez pela boa imagem que sempre cultivou entre os mais velhos, as portas de meu irmão, ao invés de se abrirem quando este fazia menção de passar por elas, mantinham-se abertas à sua plena e facultativa serventia. E era D. Custódia - quarentona e viúva de uma década - quem eu conotava "porteira" de André. Não era mãe, não era tia, e tampouco preta, mas, qual tal, se preciso fosse, punha-se à frente da chibata para poupar o lombo do bom moço. Custódia sacrificava seus domingos sempre que podia para preparar mimos a André. Eram tortas de toda variedade, cartas de elogios e bugigangas de todo tipo. Para piorar, sabia-se que o fazia com as economias deixadas pelo finado - considerado crime moral e usurpação à memória do falecido, que devia torcer o nariz de onde quer que estivesse de tanto ódio e arrependimento de ter feito um testamento tamanho para tal vigaristazinha. Mas, não importava muito. Afinal, era André a quem Custódia se punha a ajudar, e portanto não era tão grave assim: a cidade inteira relevava: "a velha não podia parar de viver". E relevou até mesmo quando ele, tempos depois, começou a ajudá-la como seu enorme cacique de finanças; e daí vieram as tais denúncias, o fato, a fuga e a queda das máscaras, as quais por ora omitirei por conveniência à cronologia dos fatos.



De fato, tudo o que mamãe gastou em suados salários e morreu tentando empreender para me embutir no bom e venerável caminho do trabalho e das boas maneiras, foi abandonando a André, que parecia se orientar por intervenção quase divina e ter sucesso maior e mais convidativo que qualquer peralta de nosso tosco bairro. E enquanto eu me espremia para obter um tímido trabalho de datilógrafo na firma de seu Calixto, meu enobrecido irmão angariava outras muitas Custódias para lhe servir em lonjuras inimagináveis. Tal como uma briga assimétrica deve ser, o pêndulo da fortuna só pendia para o partido do meu rival, dando-lhe tudo o que quisesse de boníssimo grado e longe dos obstacúlos cruéis e da bateria de horrendos testes de caráter e resistência física. À altura de seus vinte e cinco anos, André já colecionava motocicletas e garotas, enquanto eu o fazia com olheiras de infinitas horas extras que me pagavam com o café e o pão de ontem. 


Eu não tinha a pretensão de censurar a boa vida dele ou de querer partilhar de seus sucessos como se me considerasse merecedor da formação daquela índole escarniosa e vil. Ora, também não exigia direitos autorais sobre tal obra - ao contrário, devo dizer ! Agora que estou almejando novas empreitadas na vida urbana e depois dos tantos incidentes envolvendo André, cogito mudar o nome que trago na identidade e omitir mamãe dos registros do governo. Vamos ser os Borges e abandonar os Vargas de uma vez por todas, pois família por aqui é coisa importante e não há progresso sem um passado livre de suspeitas. Mamãe se recusa, diz que é demais, que é desonroso, mas sei que ela acredita no que dizem os jornais sobre seu filho, que não há atalho que se tome que não leva a um colapso.




A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog: http://porleonardo.blogspot.com/.

3 comentários:

  1. Bravo ! E que venha a próxima parte. Esperando ansiosamente.

    Ainda que continue, o texto num todo está riquíssimo ! E, a cada lida, mais vontade de saber o que virá 'nas cenas do próximo capítulo'.

    Como sempre, excelente, sweetheart. ♥
    Wii

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  2. Muito bom! Divertido e instigante! Ainda bem que já tem a Parte II, estou super curiosa pra saber mais sobre esse sujeito! O que terá acontecido? Vou lá conferir.

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