segunda-feira, outubro 22, 2018

Minh'alma e os suspiros de Carola



Éramos eu, ela e deus naquele monstro de 36 cômodos entre quartos, salas de estar e alcovas sem muita utilidade. Se não fosse para sustentar as obscenidades de meus 23 mal selecionados empregados (divididos entre motoristas, limpadeiras e técnicos em ócio), eu destramaria aquelas saletas todas e faria de todas elas o santuário para Carola, meu sol. Um só quarto, enfeitado com quadros oitocentistas e fragrâncias a gosto de seu bem estar.

Do lado de fora, vejo mil metros quadrados de uma grama desbotada que custou-me os olhos  infectarem-se por um negrume fúngico horrendo. Fiquei sabendo após algum tempo, através de um veterinário amigo da família, que os vira-latas do jardineiro levaram tal praga para minhas dependências e fizeram “esmeralda” virar “carvão". Era como na mente de Carola, quando andaram os pensamentos vindos de estranhas e desafortunadas companhias que, mal sabia ela, desviavam-na e reproduziam suas mágoas apenas com uma roupagem mais bonita.  Se visse os tais fungos ela ia torcer-se de gastura e dar quatro voltas em seu nariz arrebitado tamanho o desgosto. “Simão, quantas vezes eu falei que não quero essas pestes na minha propriedade?”, eu não sabia se o nome era esse mas prosseguia com o cenho franzido. “Mas seu César eles são coitados demais, ora ora." Talvez fosse mesmo Simão, ou ele não queria me corrigir pra não ser despedido precocemente, pois eu preservava a duras penas uma falsa fama de patrão maquiavélico para evitar as pilhagens dos empregados de má índole. Eram pequenas taças, óleos e até grampos de tamanha insignificância que até um mendigo recusaria sem avaliar. Talvez trocassem por cachaça ou só colocassem na estante pra contar vantagem sobre o marido que queimava as sobrancelhas nos fornos das metalúrgicas, vai saber.

Assim eu perdia as estribeiras; de toda forma iria borrifar um dos meus remedinhos mortais o quanto antes, pois não queria fazer feio na cerimônia com aquela casa cheirando a mofo.
Na parte leste do meu castelo estou eu, regando com aplicação meus dentes-de-leão recém-transplantados da sacada de uma amiga. Não estavam lá essa maravilha, mas progrediam com os bons produtos e húmus que os nutria. Eram de um amarelo vibrante que me doía o coração pensar que em poucas semanas seriam devorados pelas tantas lagartinhas que ali se aninhariam e tão logo empupariam para dar luz ao meu aguardado presente. Pouco a pouco cada asinha delicada iria cobrir o vestido de Carola em sua cinturinha de moça, escondendo as discretas anáguas e os sapatos que mandei trazerem da magasin mais elegante de Paris.

Já me via titubear um pouco, e a cada passo de Carola em minha direção meu estômago se encolheria de nervoso e armaria uma explosão de choro misturado em riso. Foram difíceis nossos tempos, atribulados e complexos, e por isso uma emoção de alívio e admiração crescia dia após dia.

                                                                                          ***

Lembro-me como se fosse ontem. Os pais de Carola deixaram-na bem cedo. Não por doença, como deves pensar, ou alguma fatalidade dessas difíceis de prever. Deixaram-na, por esquecimento e descuido, à própria sorte. Eu, inocentemente, não sabia muito bem como aquilo iria estilhaçar aos miúdos uma vidraça tão linda. De meu lado, restava-me dedicar a ela minhas melhores histórias e sonhos tranquilos. Fazia-lhe a cama para aquecer seus pés e a enrolava em meus longos braços para que se sentisse, enfim, em casa. Chamava-lhe passarinho quando, sentada em meu colo, ela se aninhava para um cochilo; e, discretamente, tentava como um menestrel lhe distrair de dores e dilemas. Eram canções difíceis de compreender, confesso, mas nelas havia versos que acredito serem impossíveis de recitar sem que agora uma lágrima role a face desavisada. Lembro-me da minha indignação e da minha luta com seus pais na varanda de minha casa, a tentar alertá-los dos erros e dos perigos desse gesto – talvez alertando a mim mesmo do mal que faziam a ela. Carola era já nesse tempo minha preciosidade, minha cor, e mesmo na minha meninice eu confrontei com alguma maturidade (escassa!) o que eu mal podia compreender. Os dois me olharam torto, julgavam-me petulante, talvez esperando que eu fosse um resignado e tolo homem de sorrisos. Mas não era.

As engrenagens do tempo rolaram pouco a pouco apesar das rusgas. E, de tão empenhada, aquela mocinha virtuosa não se deixou derrubar. Juntou os caquinhos e foi assim correndo atrás de pequenos sonhos. Sabia equilibrar pratos e rodar no eixo. Os dedos dos pés já calejados e as ataduras firmes mantinham-na ali, de pé. Com algumas economias conseguiu finalmente se dedicar às letras. Desejava ser professora, ensinar como ninguém podia fazê-lo. De tão prodigiosa, aos seus pares causava certa inveja, como se ofuscasse sem querer os privilégios de tantos tolos a competir atenção.
Os ventos sopravam distintos depois de seu início com as didáticas superiores. Tão logo ia progredindo com os estudos, conseguiu uma chance de mostrar seu valor em um ginásio da capital. Era um trabalho simples, como lhe prometeram no começo, mas que logo apareceram alguns nós para repetir os roteiros desleais que eu também havia vivenciado em minhas empreitadas por dinheiro. Eram novos ataques à vidraça, mesmo que discretos. Já nesse período havia deixado para trás algumas belezas, recrudescendo na dança e na caridade, talvez por não conseguir se olhar e se achar nessa grande e temerosa bagunça de sentimentos.

Ainda que fosse difícil ela resistia. Afinal, derrotas eram coisas muito raras, mesmo que ela insistisse em dizer que pouco caminhara até ali. Curioso isso, pois eu via uma jornada diferente, árdua sim, porém repleta de sucessos e de confrontações tão complexas quanto uma partida profissional de xadrez. Ela era mais míope que eu nesse tempo, e talvez por isso tenha se perdido um pouco nessa leitura. Logo ela, tão boa com os livros!

A miopia levou-a a caminhos um pouco espinhosos e que sacrificaram minhas canções e meu pouco espaço. Ainda que de ballet eu entendesse muito pouco, tentava me equilibrar na habilidade que tinha de esperar por dias melhores, sabendo respeitar suas estranhas, porém legítimas escolhas e danças. No fundo, me entristeci, posto que não podia dar as respostas prontas ou escolher por ela, por mais angustiante que fosse assistir a tudo por uma crua e dolorosa lente. E, nessa dança, a música tocava alta, mas sem compasso. Eu fazia o possível para acompanhar, mas não era fácil me fazer diapasão ao mesmo tempo em que os dias engoliam as virtudes da minha pequena. Eu rodava sem parar, tentando me manter no enquadramento. Como as marés, indo e vindo.

Foi quando meu pouco recurso me levou a ter ideias mais criativas. Lidar com a escassez ainda era uma vantagem nos meus dias. Aliás, percebo que a abundância e a opulência, as cartas marcadas, as bajulações e refeições artificiais só provam o quão vazio pode ser um desejo e tão frágil uma verdade. História sem poesia, como que uma fórmula copiada em outros tantos roteiros e amores, é mera distração. São como receitas obtidas em um jornal de grande circulação, um manual sintético e frio que ela talvez tenha se perdido por decerto não tê-los lido com os belos óculos que vira e mexe perdia.

Meu primeiro presente fora um livro, que dizia a ela sobre amor. Que cruel distinção.

À parte essa constatação, lembro-me como travei uma batalha incessante para tirá-la daquele caos. Eu corria contra o tempo atrás de um sobrado e uma carroça que nos levasse aos pequenos paraísos que circundavam a capital. Era uma das poucas ambições que eu tinha além de tentar conhecer o mundo e levar meu pouco mas valioso saber para além das searas da nobreza. Eu sonhava desde o primeiro dia em vê-la da janela da sala preparar um café preto sem açúcar e reclamar da falta do requeijão. Num breve sorriso eu sairia porta afora no intento de achar a mercearia aberta, para daí retornar e pegá-la em um profundo cochilo matinal no velho sofá.

Talvez em um golpe de sorte e de certa insistência, consegui um trabalho numa venda próxima da casa de minha mãe. Pagavam um salário honesto que logo cuidei de converter num cantinho adorável com uma linda vista e um quintal. Escolhi quase instantaneamente, ao julgar perfeito para Carola ali descansar suas tantas cicatrizes e pôr as ideias em ordem. Se quisesse dançar, pintar, correr, morar ou amar, havia espaço. Levei-a uma primeira vez, para que ela sentisse certa inspiração, segurança, que confiasse em cada centímetro quadrado daquele humilde porém vivo sossego. A casa tinha um coração que batia rápida e intensamente toda vez que ela pisava aquele pezinho pálido de sabonete nos tacos quentes que mandei colocarem. De começo ela olhou com certa desconfiança, tateou com cautela feito um cervo na campina. Mas depois se acostumou ao cantinho, as antigas e novas histórias chegando aos ouvidos, tornando-se uma música calma, baixa e familiar. Por vezes, às fantasias, via-a se esticando no colchão, liberando as tensões de um dia cansativo de trabalho, mas logo me jogando um sorriso e correndo até o banheiro para um xixi, um arrepio e um banho quente. Digo arrepio, pois era como sempre acontecia, e eu adorava olhá-la, sem graça, se envergonhando por isso. Também a sentia tomando minhas roupas e vestindo-as como pijamas. Os elásticos acompanhando suas lindas curvas e, de súbito, peça a peça, nenhuma se emprestaria a mim novamente. Até mesmo as roupas a haviam escolhido, tamanho o propósito daquele fragmento de tempo. E ela ainda me perguntaria o porquê de minhas pupilas estarem tão grandes.

Carola teve roubado de si certo brilho. E por isso se meteu em redemoinhos de pensamentos e sabotagens mil. Era um resultado de uma vidraça que eu não conseguia proteger por inteiro, mas que agora poderia tirar da vista de tantos vizinhos e cruéis almas para tratar com paciência e cuidado. Ela pouco sabia dessa vontade, julgava-me louco. Mas eu tinha nos dedos cada mínimo passo, cada mínimo gesto que arrancaria dela um sorriso sem pesares e sem dúvidas. Não era um novo capítulo que precisávamos, era uma música distinta e mais serena. Longe das coisas comuns e do cotidiano vazio que tanto a consumia.

                                                                                        ***

Agora, em nosso castelo, tento retomar a concentração para regar as plantas e preparar o humilde presente. Decidi fazer seu vestido porque faltava o ofício da rendeira às vésperas e porque sabia que nenhuma saberia fazer o que eu pretendia até então. Pode parecer cruel a ideia de borboletas compondo uma veste, mas aquela frágil vidraça precisava de um reparo à altura. Nem mesmo ela percebia seus próprios passos e os dava meio sem olhar. Por vezes jogando ao vento algumas luzes que a mantinham acesa. As pequenas asinhas talvez lhe contassem uma história de metamorfose, de cura. Estágios que passam, com o nascimento de uma nova criatura. Era claro que ela se perdera desde o dia em que lhe faltou alguns pilares, e buscou em outros cantos essa falta. As asas – e ela sabia disso – não eram para voar, mas para rapidamente revisitar seus jardins, olhar para si  e testemunhar sua própria força, seu valor e sua transformação. Asas de borboleta, escamas que acumulam histórias e dedicação, que a escondem, camuflam do mal que o mundo faz e das rotas maquiadas de belezas que certamente ali não estão. Seriam os dias de dezembro a trazerem-lhe a paz numa arriscada viagem para o mar, todos lhe abraçando as dores e asas aos poucos sendo dispensadas, pois ela haveria de ter superado cada dor e cada tristeza. Não seria em vão, restava saber quando notaria.

Distraída, ela entrou pela porta do quarto, na direção da sacada onde eu me debruçava sobre as plantas. As roupas ainda eram as minhas, um livro na mão cujo título falava exatamente sobre consertar algo. Com um sorriso tímido, puxei-a pelas mãos e, à beira da lareira, contei histórias novas e sobre como seria amanhã: uma caminhada pela pequena mata, um esfumaçado gato a nos perseguir e um suspiro alto de calma e amores. Mirei nela as tais lentes, um desenho lindo de um tempo em que ela carregava menos medo e havia menos ruído. Hoje são muitas pessoas, muito barulho. Eu sabia as causas e tinha entre os dedos as mais belas formas de um tempo feliz, agora cada vez mais iminente. Em noites febris cheguei a amaldiçoar quem lhe fizera tanto mal, mas hoje em mim somente a ternura me move em sua direção.

Carola olhou-me nos olhos e viu minha alma, nua, exposta, verdadeira. E acreditou em cada palavra. Os lírios desabrochavam perto dali junto com uma esperança a cantar nossa história. Seríamos novas e lindas vidas. Vê?

Um comentário:

  1. Da realidade nua e crua, uma história carregada de beleza e amor incomparáveis. Um doce pedaço de ternura em uma vida que pouco se importa com as dores que causa.

    Sorte a de Carola pelo melhor de todos os presentes que poderia receber: um oceano com infindáveis cores, brilhos e amor, para que mergulhasse com toda a sua alma e mais sincero existir.

    Que uma nova música toque (a).

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