domingo, dezembro 05, 2010

O átimo da palavra.




Para Lílian, com amor.



A exemplo de todos os anos que percorreram aquela infância alegre e ociosa, o mês de setembro daquele começava com uma tímida trovoada e encharcava a madrugada inesperadamente, como se enganasse os vespasianenses céticos em seus leitos de paz imperturbável. A rua, ou alameda, não importa, era coberta de pedras tão irregulares que ao final do morro sarapintado a água passava rápido e seguia todas as possíveis direções até encontrar-se com o asfalto impenetrável da rua de baixo; daí, dilúvio particular protagonizado pela rebelde primavera que trocava borboletas e flores de toda variedade por um capricho infantil de atmosfera regida pelo semblante enrugado de nuvens carregadas, formava-se um rio que negava todos os compromissos aos moradores das redondezas.


Era já sem tempo, madrugada de uma quarta-feira, eu me encontrava na porta de casa anormalmente molhado aguardando que o excesso de água deixasse meu corpo macilento para não comprometer meus planos de preservar o sono de Lílian. Afinal, no momento em que tentava armar o guarda-chuva defronte ao bar a fim de me proteger do temporal, má sorte descomunal, ele se desmontou em dezesseis partes, denunciando o sujeito que me vendera-o com o argumento de ser inquebrantável.


Impaciente com minha performance de embriaguez embaraçosa, soluçando alto, não esperei para me secar e meti a mão nos bolsos fundos do paletó verde musgo que ganhei quando fiz anos. Por efeito do álcool, demorei cerca de quinze minutos até concluir que o molho de chaves que procurava, na verdade, jazia denso no compartimento interno do casaco, e mais alguns para identificar aquela que me permitiria entrar sem dificuldades. Afundei a escolhida com enorme cuidado, contornando mentalmente as formas irregulares da peça à medida em que penetrava a fechadura ainda pertencente aos antigos moradores; vi-me ainda cômica e involuntariamente rangendo os dentes como resposta à tensão que a noite me trazia naquelas circunstâncias - sentia medo. A porta, pesada e ruidosa por ser madeira nobre, exigia esforço herculano para que se abrisse sem que uma orquestra mecânica exibisse seu mais desagradável concerto de tambores; mas reuni forças e forcei-a, esperando encontrar, ao fim do corredor, uma escuridão nauseante... Mal sucedido na dedução, a meia luz, distingui o abajur da sala como guia de minha jornada até a desfocada cozinha. Antes, descansei minha maleta de couro surrado sobre o móvel de madeira envelhecida que ela ganhara de seu padrinho de casamento - o Tio Ronaldo; e, entre distraído e torpe, quando me atirei à geladeira, ouvi sapecas notas de uma oitava agudíssima do piano.


Julguei ter sido imaginação zombeteira de quando se bebe demais e pouco se atém à realidade, porém eu era desses trogloditas controlados, que mesmo após um, dois, três porres sabe das tolices que fez, enrubesce a face por mero pudor e afunda os olhos sonolentos no travesseiro de penas que ainda volatiliza a bebida barata. De onde me sentei para mordiscar as bordas do sanduíche, já preparado na manhã anterior por ela, divisei metade de seu pezinho marcando um tempo invisível, inaudível, como se se apresentasse num sarau da escola.

__ Li, já retornei da rua. Seu sanduíche está magnífico ! - ela estava postada no banco do piano da sala de estar, e minha voz saiu entrecortada pelos soluços gagos, os quais me arrancaram um palavrão baixinho.


Esperei que após meu chamado afetuoso, inadvertido hábito de instrumentista, ela suspendesse o sobe e desce incorruptível dos pés; mas não o fez. Ainda mirava com atenção suas unhas recortadas e róseas, feitas com tanto esmero que pareciam desmentir o orgulho que ela tinha de dizer que jamais tinha ido a uma manicure ou qualquer ocupação com esse fim. Ah, como era invejável a alvidez daqueles pés que eu tanto adorava cobrir de beijinhos nas minhas tardes vagas de televisão! Recordei rapidamente do quanto ela gargalhava como criança, provocando-me para repetir o gracejo e deleitar de sua feminilidade adolescente e irresponsável. Contudo minha esposa nem se moveu para conferir se seus desejos haviam sido convertidos em sonhos: não me ouvira. Abandonei minha refeição na mesa do café e me lancei pelos estratos da casa, avançando absolutamente assustado; nos vértices do meu corpo uma irritação fórmica me dominava sobremaneira e minha aproximação se deu tão silenciosamente que podia ouvir retumbar meu coração embebido em adrenalina. Quando alcancei suas costas eretas, como tanto insistiu para que ficassem Giovani, o professor que aparecia às terças, quintas e sextas -quando me ausentava para o trabalho -, a camisola de algodão fino transparecia sua pele nua sem que uma das alças se apoiasse nos ombros; atalhei a distância e, enfim, exprimi minha veleidade contida por tanto tempo: "Toque, minha virtuose, agora. Serei eu seu avaliador."


Seus punhos lançaram-se sobre o marfim escurecido violentamente, e uma melodia desorientada se seguiu conforme a dança dos esguios dedos conduzia. Inclinei-me lentamente até a base de seu pescoço descoberto, soprando-o e encerando-o de tão perto que pude ver os ralos pelinhos eriçarem por um prazer tão oculto e tão fisiológico que não me dei conta do sono gozado por ela. Seu corpo contorcia-se de modo selvagem criando uma atmosfera de êxtase ao nosso redor; os lábios se retraíam e trocavam-se com os dentes num ciclo harmônico e magnético. Beijava seu pescoço com tamanho ardor sem sequer fitar seus olhos que sabia estarem cerrados. Mas, mágica de fêmea indomada, já envolvido em seu encantamento, não me reservei em balbuciar palavras belas alternando com mordidas ao pé de sua orelha.


Pensei que ela já havia despertado daquele sono intranquilo que ditei quando da minha chegada, pois, em meio às minhas investidas, seu ritmo da respiração acelerava exponencialmente; um sussurro aéreo saia de vez em outra de seus lábios secos. Tinha certeza de que ela me chamava, fazendo voz chorosa, como uma criança mimada a pedir por colo. Ela me chamava desesperadamente. Eu sabia. Em resposta, aproximei meu ouvido de sua bochecha esquerda imaculada dos adornos que ela aplicaria quando tivesse de cuidar das tarefas domésticas e distingui o que ela dizia.


__ Giovani... Giovani... meu...


Era já sem tempo, manhã de uma quinta-feira, lembrei de que haverá lição de piano. Mas eu não poderei assistir porque preciso trabalhar.

domingo, outubro 10, 2010

Havana - Parte II


Era sem dúvida um evento perturbador de se assistir continuamente; porém eu, sem pestanejar, apertava os olhos e mirava desavergonhado a silhueta à minha frente, destemido. Os dedos aracnoformes e pálidos dela desmentiam num ciclo doentio a ordem dos cabelos densos para em seguida repartir, mais uma vez, em blocos eqüitativos, os pesados cachos marrom-amarelados que pendiam até o limite das costelas magras e salientes; os longos fios que se moviam deixavam à mostra a agudíssima ponta de sua orelha, que me faziam estremecer debaixo dos cobertores calorentos da casa de minha mãe. Essa era a única lembrança de Beatriz que eu preservava desde o dia em que ela me entregou as chaves do apartamento e sorriu, dizendo: "Quero ver até quanto tempo suportará meus fantasmas, Andrei, só quero ver." Provavelmente eu não captara corretamente a mensagem que ela quisera transmitir, ou talvez tenha sido um comentário provocativo, sem importância, como uma frase de efeito que inquieta a mente, tornando a reflexão uma auto-flagelação desnecessária. Mas suspeito que ela o disse sem intenções mesmo, como que para preencher o silêncio, o vácuo que se instalara entre nós desde que depositei minhas malas no cubículo escuro e seboso de Miramar.

É bem verdade que eu a conhecia desde muito tempo, sim, inclusive sua personalidade era tão previsível que as brigas tornaram-se raríssimas, quase inexistentes, uma vez que eu as evitava com o intuito de não perder o teto que ela me cedera com tanta generosidade. Eu não a via fazia muito tempo, pois, desde que sua família deixou a cidade em que morávamos para trabalhar em Havana, Beatriz deixou também a escola, local onde nos falamos pela primeira vez. Coincidentemente, quando fui para a universidade estudar Direito, encontrei-me com ela nas vias do laboratório de Farmácia. Conversamos brevemente e aproveitei para marcar um almoço após as aulas do turno da manhã - foi aí que me livrei daquela república repleta de malucos e ideários, todavia esse é um assunto sobre o qual evito falar.

Nossa amizade, contudo, jamais fora das mais estáveis, confesso. Lembro-me de um caso específico em que eu preparava o café e ela chegou de mansinho, meio que choramingando. Interpelei-a imediatamente para saber que diabos a fazia chorar, mas mais que isso: o que a fazia chegar às seis da manhã em casa. O sol perpassava as persianas, como sempre fazia a essa altura e distribuía o amanhecer a começar pelo quarto que eu ocupava. O cheiro forte de meu café sem açúcar poluía o ambiente e mergulhava numa nostalgia sem igual minhas recordações da meninice. Quando dei por mim, não mais dava-lhe atenção, mas, distraída e tagarela, Beatriz não notou minha desatenção.

A polícia não tolerava em hipótese alguma pessoas perambulando às madrugadas nas ruas escuras de Havana, e, na melhor das hipóteses, ela poderia ser presa por um gentil vigia. Bia deu inúmeras voltas para se explicar e não atingiu ponto algum que esclarecesse sua empreitada noturna, mas vi em seus olhos a culpa e a apreensão passiva de me encarar nos olhos. Eu, reduto de justiça e retidão e ela, quebrantável como os porcelanatos indianos.

"Não mais acontecerá, Andrei, fui descuidada, sim, porém estava segura na casa de Ana María." - escorados na guarnição da janela da fachada, seus quadris serviam de base para seu hábito de balançar a ponto de cair na calçada - meu drama diário e infinito. Eu não conhecia a mencionada Ana María, mas quando Beatriz fugiu para o quarto com o pretexto de tomar um banho que durasse horas tomei nas mãos sua bolsa para encontrar algum vestígio que identificasse seu paradeiro.

Quando deslizei o zíper incolor da bolsa esverdeada e contemplei seu conteúdo, uma vertigem colossal me subiu à cabeça. Vi o quarto escurecer, o teto surgir à minha frente com a lâmpada tremeluzente, além das tantas coisas que caíram da mesa vindas da bolsa. Uma arma, uma arma de fogo com aspecto rústico e raspagens na cabo pesou na tábua corrida do rol de entrada; a típica parafernália feminina de embelezamento trepidou e papéis, muitos papéis, os quais o ângulo em que eu estava não permitia ver, chocaram-se num embaralhamento agressivo. Desviei espantado o olhar para o portal de onde possivelmente Beatriz viria, contudo, para minha tamanha infelicidade, seus dedinhos dos pés, úmidos e inquietos, já testemunhavam a consequência de minha curiosidade. Ainda enrolada numa toalha carcomida pelos insetos do armário, ela adiantou-se para pegar os papéis, sem me fitar um só momento. Reuniu-os sem muito critério e os colocou na gaveta dos talheres, fato que me causou enorme confusão.

Ainda sob os efeitos da queda, consegui acompanhá-la reunindo o que havia caído ao chão e iniciando um monólogo desconexo sobre segredos e perigo iminente. Bia ergueu-me com enorme esforço pelas axilas e me sentou na cadeira encostada entre o balcão da cozinha e a divisória da parte social do apartamento. Empunhou a arma com voz infantil e brincou, apontando e sacundido na minha direção: "Bang, bang, bang, caubói". Torpe, sorri, e ela, já vestida, pergunto-me como e com que facilidade, bradou longe lá do quarto - "Tenho coisas a fazer agora. Retorno ao final da tarde. Cuida-te!" - Faltou-me tempo para me opôr à sua saída, pois as chaves, cerradas na fechadura, dobravam anunciando que ela já terminava o primeiro lance de escadas.

Meio recuperado, meio lerdo, corri à gaveta que guardava os talheres de cabo plástico e abri-a. Fotos e anotações, mais fotos e anotações. Eram homens de face conhecida e as fotografias, tiradas sem qualidade e cuidado alguns. Minha memória não cuidava de reconhecê-los. Eram... eram... eram políticos ! Mas que diabos aquelas coisas faziam na bolsa de Beatriz ? Logo ela, tão alheia a essas questões, e, droga, que maldita arma era aquela ?
Quando fui até a balaustrada em que ela gostava de se balançar, não a vi mais. Agora, tinha de esperar seu retorno.

Fui à mesa para ler o jornal, liguei o toca-discos com um bolero datado da adolescência de minha mãe e deixei minhas pestanas praticarem o tradicional ósculo.

domingo, agosto 29, 2010

Havana - Parte I




Como que de um súbito emergir de águas inóspitas, envenenadas, levantei com vigor a cabeça, sonolento, e vi a manchete do jornal de ontem em letras garrafais anunciando qualquer assassinato ou ostentação política; era dia vinte e nove de agosto e ao fundo minha vitrola arranhava o fim do disco que supus ter começado a tocar na noite passada - o ruído reverberava nas paredes de gesso e circulavam a casa, perturbando cada centímetro do meu santuário de silêncio e calmaria. O sol tomava conta da casa e formava uma onda de calor infernal, a qual fez brotar das minhas axilas uma dobra úmida na camisa com um cheiro salgado e um tanto familiar. Olhei ao redor com uma estranheza de forasteiro e agarrei a garrafa de café na minha frente para completar minha xícara anil de asa quebrada - culpa de uma visita inesperada de minha mãe, que se interpôs na organização da casa e instituiu um padrão de limpeza e ordem frágil demais para um homem acabrunhado como eu.

Lá fora, felizmente, o domingo dava seu ar de vazio, e as ruas, enfim, cediam espaço para o espetáculo dos pássaros urbanos: o pardal lusitano, faminto, levava sua família para colher os restos da feira matinal de ortifruti e convidava o bem-te-vi para compartilhar o banquete com sua ninhada de inverno. O joão de barro, tímido feito só ele, se agarrava ao talo magro de um alface escurecido e não invadia o espaço dos donos do lugar. Era recatado. Eu, sentado à mesa, festejava a ocasião em que os únicos presentes fossem maestros de uma melodia calma e suave, que não abusavam dos tímpanos acostumados a belas sinfonias, orquestras e sarais de beleza indefinível aos quais me convidavam sempre. Levantei-me com preguiça da cadeira e segui para o tocador de discos; era um presente de uma moça gentil do andar de cima, que trocou seu aparato por algo mais sofisticado (lê-se ruidoso).

Talvez por ter adormecido de modo desajeitado, estalaram-se minhas vértebras e uma série de dores locais surgiram quando me levantei. Senti-me velho, impotente, fraco. Quando desloquei a agulha para o suporte que a recebia para interromper o som aborrecedor, três toques secos na porta me viraram o pescoço.

__ Senhor Andrei ? - uma voz cujo timbre eloquente e efusivo chegou aos meus ouvidos gritou detrás da porta.

Adiantei-me até lá e o vi pelo "olho mágico": era uma sujeito miúdo, com uma barba rala, mal recortada, e um filete de sangue lhe saía do maxilar arredondado - supus que estivesse com pressa para me visitar. O moço continha por um triz os olhos exorbitantes negros e suas vestes pareciam-se com um uniforme, a julgar também pela maleta desbotada que quase arrastava no chão. O homem pareceu notar minha presença e acenou do outro lado como se me visse nitidamente.

__ Sou eu. O que queres ? - recusei-me a ser cortês, embora a figura do homem me parecesse inofensiva. Afinal, há algum tempo atrás, tive uma vizinha surpreendida por ladrões desse mesmo modo.

__ Vim apresentar-lhe uma proposta, e acho que o assunto lhe interessa profundamente. - eu ainda o observava e sua expressão de contentamento não saía do rosto.

__ Não desejo nada por ora, obrigado. - acordei mal humorado, mas a razão de tudo isso era a situação desconfortável na qual minhas finanças se encontravam.

Ele sinalizou consentimento com a cabeça, embora eu desejasse desesperadamente ocupar meu tempo com suas insistências, e girou em cento e oitenta graus para dar de encontro com a porta da frente. Lá morava o tipo de vizinho que eu mais apreciava, - silencioso, discreto, frio e contrário a formalidades constrangedoras - uma dádiva ! Deduzi, portanto, que o próximo a receber a tal "proposta" seria o próprio Ignácio Castro, mas o homenzinho escorregou a mão vazia pelo suporte engordurado da escadaria do prédio e seguiu com barulhos periódicos dos sapatos envernizados ecoando e um assobio agudo de um musical que demorei horas para recordar o nome. Depois de desaparecerem os ruídos que fazia o estranho, corri à janela para vê-lo deixar a rua; vi-o, então, numa perspectiva diferente, e de sua mala um panfleto se desprendeu; levando tempo para cair ao chão numa dança angustiante .

Julguei que havia sido proposital o fato, conveniente demais, mas ainda assim não me preocupei com as vestimentas inapropiadas que usava e desci ansioso para ler o documento. Cheguei à rua e não percebi sequer os pássaros de momentos antes - sumiram. Curvei-me para apanhar o papel com receio de encontrar-me com seu dono, e logo o pus dentro do bolso do pijama, desajeitado, para evitar suspeitas de algum transeunte que por ventura ali estivesse. Tratava-se, pois, de um quadrado branco mínimo e, subindo as escadas, desta vez de volta ao apartamento, tirei-o para ler. Era, na verdade, um bilhete borrado a caneta, de escrita apressada, que dizia: "Traga-me os manuscritos de Andrei." Quando li três, quatro, cinco, dez vezes, um vazio súbito tomou lugar de minhas entranhas e sibilei inaudivelmente: "Como ele...".

quinta-feira, julho 15, 2010

Catarses Limenhas: O gume da rosa.

Andrea - ostentadora de uma beleza inócua aborrecedora - sobrepunha a gama inexaurível de adjetivos do ambiente com exímia destreza, os quais abrangiam ruídos ensurdecedores, personagens anônimos do cotidiano, um gosto amargo de poeira liberada pelos automóveis, além de uma suspensão indissolúvel de vapores atmosféricos, os quais, inconscientemente, aos habitantes da cidade prenunciavam a temporada anual de tempestades ininterruptas.

O que de fato levava aquela mocinha de membros finos e declarada fragilidade a se destacar no jogo urbano de cores vivas e dinamismo repulsivo é exatamente a desarmonia entre a melodia do espaço e de seu coração, capaz de, naquele momento, ressoar uma escala decrescente só de aproximar o pensamento de seu drama irreparável - também causador do pranto contido e das marcas violentas no braço alvo, agora nem tão alvo assim. Os transeuntes que cruzavam as vias adjacentes à avenida onde se encontrava Andrea eram claramente consumidos pela razão competitiva, e, portanto, a cena de horror protagonizada pela expressão de tristeza da moça era assistida apenas pela selva de concreto e a escassa arborização do trecho - árvores nuas, sem cor alguma, a exibir seus galhos tortuosos como se em uma apresentação de contorcionistas orientais infantes. Eram ipês cinqüentenários, importados dos trópicos meridionais na época do prefeito Castañeda e, por não ser setembro, o tom roque dos troncos rugosos maculava a paisagem indiscriminadamente.

Toda aquela composição inóspita da circunstância fomentava pouco a pouco o mau humor de Andrea, principalmente após a chegada de uma nuvem enegrecida, com ar triunfal, além de um estrondo oco e vagaroso: um trovão. A cada seis ou sete minutos levava à boca com mãos trêmulas um isqueiro incolor e um cigarro barato (possivelmente boliviano, não importava). Sorvia com vigor toda a fumaça possível, na tentativa insana de não exalar qualquer vapor e aproveitar-se de todos os males concentrados naquele corpúsculo aparentemente inofensivo e nobre. Ela temia, com o prenúncio torrencial, perder o êxtase de possuir uma brasa aos lábios, pois que a nuvem densa não parecia abrir mão da trajetória retilínea de cobrir Lima com um "aguacê junino" - como diriam os arequipenhos pessimistas da redondeza.

A umidade do ar era máxima; o espetáculo da precipitação já poderia iniciar-se, e Andrea - imersa na observação de um grilo a chocar-se desesperadamente contra o meio fio - preparava seus músculos para uma maratona até a casa de seus pais - não os via a três semanas. Suas vestes imundas, sem estampas e de um castanho escuro discreto ondulavam no ritmo agressivo da ventania, quase apagando o cigarro cuja ponta era esmagada por seus lábios magros, esbranquiçados.

Andrea Lossio somava dezessete primaveras vividas, e aquele dia exatamente pusera abaixo todo o acúmulo de sorrisos que a acompanhava até então. Não carregava bolsa ou sacolas, porém sua mão direita ocupava-se de um instrumento plástico que para ela lançava no ar um odor ácido, quente e volátil de urina. A moça inspirava insistentemente a fim de se convencer de que o único cheiro preponderante no espaço era de seus tragos perpétuos - mas não era. Por entre as unhas geometricamente recortadas via-se gotículas amareladas de quando foi ao sanitário público excretar sobre o indicador cuja resposta imediata foi um pesaroso 'Sim'.

Já havia iniciado sua caminhada em direção ao subúrbio limenho quando as primeiras gotículas acertaram em cheio a ponta de seu nariz, que era comprido e alongado na extremidade, como se moldado antes do nascimento - lindo. No trajeto, seu ventre ruidoso revirava constantemente, como se a alma, o objeto, o resultado de tamanha desgraça houvesse sido inserido definitivamente em seu útero. Ela se inchava enquanto sugava o alcatrão de San Martín. Andrea queria explodir, e para isso esmagava sua barriga e se golpeava enquanto corria por entre os postes luminosos. A chuva se intensificara, agora com um tom choroso que na mente da moça era um coral de prematuros. Com todo aquele desequilíbrio moral, retornou ao local onde se prostrara outrora, fixou-se ali e encharcou o cabelo, que logo gotejou debilmente em sua testa pálida.

Ao passo que a chuva se infiltrava nas frestas da sapatilha ou no cós da calça, os ferimentos na virilha e no pubes dilaceravam sua feminilidade; sentia na memória mais uma vez as agressões no rosto, nos membros e exclamava repetidas vezes: "Merda."

E Andrea cheirava feito um porco, cheirava feito merda. E haja chuva para imaculá-la.

sábado, junho 05, 2010

Catarses Limenhas: O Capitão do Tempo


O bairro de Miraflores sempre ilustrou uma região de Lima que, para a literatura e às artes, jamais fora excepcionalmente útil. No entanto, contrariando o ar de futilidade exalado pelo bairro e pelas figuras caricatas dos cartões postais de três pesos, centenas de novelinhas radiofônicas eram lá inspiradas; talvez pela insistência das famílias de classe média, como os Vargas, talvez por não haver absolutamente nada desejável às penas dos escribas estrangeiros que fugisse daquelas redondezas.

Eu, embora tenha me desertado da função de filho solteiro e dependente dos pais há algum tempo, lembro-me bem de um episódio que lá se sucedeu na turbulenta década de cinqüenta, depois que Ana Lucia, desajeitada, deu-se com a mesa de centro para arremessar nosso relógio a cinco metros de distância - na tentativa árdua (e frustrada) de substituir suas finadas pilhas: caso típico de uma esposa insatisfeita com o modelo do objeto em questão, tendo em vista que eu o escolhi em uma dessas liquidações de bairro, nas quais cada item recebe seu preço mediante as condições do tempo de uma província chinesa qualquer.

Jamais soube decerto seu verdadeiro nome, creio que por somar tempo demais para recordá-lo, mas também suspeito de que 'O Capitão do Tempo' nunca tivera um para ensinar às crianças que tanto se divertiam com sua casaca cáqui misteriosa. Era um latino robusto, com feições geométricas sérias e amante de um chapéu-coco, para o qual criava milhares de diferentes funções e tratava como um ourives o faz ao ouro. Reservava uma voz de timbre manso que pouco usava publicamente, além de uma conversa lenta, comedida, acompanhada de um linguajar peculiar do interior do Peru, uma graça. Ostentava também uma paciência sobre-humana para suportar o estresse das aglomerações que se faziam ver quando passava próximo à rua San Martin, - os garotos de lá eram definitivamente insuportáveis - fato que logo tratei ser indiferença ou qualquer coisa que o possibilitasse sair daquela esfera ensurdecedora de perguntas e toques indiscriminados. A atração maior de Miraflores, o homem era um mercador de relógios, os quais mostravam-se parte integrante dos títulos sociais utilizados naquela época, isto é, uma verdadeira piada.

Contudo o Capitão, pelo que vejo agora, não era iletrado e tampouco tolo, pois lembro-me que o sujeito foi capaz de associar a vaidade dos miraflorenses ao volume de vendas provocado pela intensa disputa por modelos caros e extravagantes; inclusive, não se distanciava mais que alguns poucos quarteirões dali, sobretudo às sextas-feiras, quando as praças e parques reluziam com as jóias de família, as cores berrantes dos vestidos das damas serpenteavam entre a multidão e os políticos - sob a pompa - acariciavam os burgueses iludidos com promessas infundadas. E foi em um curioso passeio destes, no Parque Santa Helena, minha mãe deixou que eu acompanhasse os moleques da Avenida Treze para jogarmos gude. No entanto, entre eles, eu era o menos habilidoso nas jogatinas infantis, bem como o mais desinteressado nas competições entre a moça de traços indígenas e postura masculina, Carmem, e o argetino biruta, de nome Pedro. Assim, a cada erro grotesco cometido, minha vez de participar se extinguia mais e mais, obrigando-me tão logo a fugir do grupo de jovenzinhos envolvidos na tradição da época - com razão, eu acho.

Curiosamente, na entrada do parque oposta à principal, trajando um sobretudo ocre surrado e uma calça de linho do que pude ler "Mani" num bordado industrial de alto relevo, O Capitão do Tempo me concedeu todos os motivos para segui-lo na tentativa (simples) de vender dúzias de Timex e garantir suas próximas dezesseis refeições. Coloquei-me, então, a uma distância considerável e preguei os olhos em algo estranho que se destacava na cena, enquanto o homem, aliado a um exímio cavalheirismo, oferecia para um casal inquieto de idosos os produtos mais variados. Um objeto cúbico envelhecido com uma seta frenética a girar descansava no interior de sua indumentária. Espantei-me de súbito; afinal, jamais tinha visto tal coisa antes, mas resisti por curiosidade detrás do carvalho centenário ali plantado pelos vizinhos de meu bisavô. Creio que percebendo o descuido, porém sem tirar a atenção de seus valiosos clientes, o sujeito recolocou sobre a "coisa" a porção do casaco que cobriria o cubo misterioso. Frio. Calculista.

O trajeto do mercador se extendia a localidades aleatórias e a clientes muito bem selecionados, quando um garoto de uns quatro anos, que permitia a todos verem sua amígdala dilatada, chamou-lhe a atenção, fê-lo parar.

_ Eu quero ficar, mamãe, ficar no parque ! No parque ! - gritava, ora agitando as pernas , ora contendo a lágrimas com os braços rechonchudos.

A mãe, severa, rebatia categoricamente, dizendo que o tempo do passeio se esgotara em definitivo e que aquele "teatro" se converteria em chibatadas quando chegassem em casa; o menino arregalava os olhos nestas horas, parecendo imaginar as consequências.

O relojoeiro assistia à cena com a paciência de um monge tibetano, mas vez ou outra tamborilava o misterioso objeto com os grossos dedos da mão esquerda, ao passo que mordiscava com os caninos os lábios inferiores. Num golpe de misericórdia, a mãe tomou a criança ruidosa pelos braços violentamente e ameaçou proibi-lo de brincar durante todo o mês, valendo lembrar que somavam seis dias do novo período, isto é, vinte e quatro dias de diversão cativa - pobre coitado. O Capitão do Tempo, enfim, encarou sua relíquia, após sacá-la do bolso, com certa expressão de fúria - neste momento eu fui incapaz de manter-me oculto pelas árvores do parque - e realizou giros sucessivos no ponteiro da engenhoca, como se retrocedesse as horas. Cessou. A mãe mantinha o vasto repertório de injúrias e eu, com ar de riso devido à expectativa criada pelo homem à minha frente, a observá-lo com atenção. Nada mudara; absolutamente tudo respeitava o sentido imaculado das engrenagens naturais do tempo. De repente, então, exclamou o relojoeiro:

_ A senhora, por acaso, se dispôs a verificar se o horário combinado chegou ?!

Riu-se a mãe sem alterar o trajeto, pois era mais um dos habitantes do bairro que acreditava ser maluco o comerciante das horas; arrancou discretamente da bolsa um objeto dourado e talvez maior que a cabeça de seu filho. Pôs-se a observá-lo, franziu a testa, assustou-se; dos passos lentos fez galope, e partiu em direção à saída, com o filho sendo arrastado pelo gramado.
Não obstante, mirei também o meu miúdo mostrador, procurando algum vestígio da sandice d'O Capitão. Estava lá, com seus ponteiros incertos, voltando, indo, graduando o palco da incerteza cronológica.
O homem que julguei desconhecedor de minha presença virou-se depois de perder de vista a família fugaz e ensaiou um sorriso sapeca para mim, o qual recebi com um olhar jurídico de brincadeira sem graça: "Como alguém que reajusta relógios a rigor do pensamento pode se ocupar com coisas tão triviais?"

Agora penso que 'Capitão do Tempo' pode ser o nome que o relojoeiro ensinara às crianças de Miraflores, por ser exatamente este seu ofício maior.

sexta-feira, maio 21, 2010

A caixa preta.




Era no despertar preguiçoso da vaga manhã, no banho de águas mornas à luz natural ou no chão gelado a provocar arrepios que eu me punha a recordar a bailarina. Ontem à noite, apesar da brisa cortante trazida pelo tempo seco do inverno londrino, decidi deixar o sobrado setecentista em que vivia com meus fantasmas para me dirigir ao teatro municipal decadente. Equipei-me com três ou quatro moletons de cores sóbrias, os quais me davam certo ar de homem parrudo e tomei nas mãos o molho de chaves. Era comum eu checar exatamente dezesseis vezes os trincos das janelas da sacada e quartos, além de pousar o bloqueio de madeira sobre o vão central que dividia os dois ambientes da casa. Só a partir daí, então, me era concedido o direito de deixar a casa e atolar os pés na neve densa que se acumulara por desleixo no portão interno. A todo o momento eu amaldiçoava a administração pública por tamanho inconveniente, para tão logo concluir a inocência da mesma e minha absoluta condenação. A pontapés enérgicos retirei o gelo que cobria a altura da minha canela; voltei a praguejar durante o ritual da segurança residencial e, quando me dei com o relógio, o tempo destinado ao percurso até o teatro se esgotara. O cartaz da germânica de pêlo dourado reluzente figurava minha mente de maneira aflitiva, agitada, zombando da personalidade sistemática que desenvolvi e da distração por seus olhos azulados, quase frios, a me encarar no momento em que soube de sua vinda à capital inglesa.

Após cruzar as adjacências de minha toca, dobrei uma dúzia de esquinas em velocidade moderada, pois mesmo que relutasse em imprimir um ritmo intenso para chegar a tempo na exibição de ballet, manco de nascença seria razão para dores nas articulações e músculos, agravadas ainda pelas baixas temperaturas daquele dezembro castigante. No trajeto, encontrei-me com ex-solistas da orquestra local jogando xadrez, dos quais testemunhei glória e fama agora degenerados pela idade mórbida. Acenei a eles com um sorriso sem muita empolgação ou elegância, arrastando aquela perna - estigma de desgraça - a alimentar minha hipocrisia: a situação deles não me era incômoda.

Segui sem muitas cerimônias em direção a meu destino. Tateei os bolsos a fim de tomar as trinta libras nas mãos e, fotografia mental de desesperança, vi meu porta-níqueis descansado no criado ao lado da cama. Ensaiei imediatamente os verbetes mais chulos que aprendi na meninice mas o que me assaltou de sobremaneira foi uma frequência suave em minhas costas, masculina, austera:

_ D. Garcia, não pertence a você este amontoado de notas e moedas ?

Tomei-lhe o embrulho da mão em uma fração de segundos. Encarei ofegante em seguida o corpo delgado e suntuoso de Mario Vargas, que exibiu a mim um sorriso sincero com dentes tão brancos quanto um banco salino. Era um homem equilibrado, companheiro, sereno; possuía duas belas filhas e uma dedicada e por vezes negligente esposa a aguardá-lo no lar. Já deduz-se a imensa discrepância existente entre nós, porém Marito, como era chamado pelos vizinhos, guardava em sua água-furtada o mesmo que eu apreendia no sobrado tristonho de meu avô: um violoncelo, objeto motivador de nossa desavença pretérita. Ria-se.

Quando ainda me dedicava às tantas partituras e suítes dos mais consagrados músicos do velho mundo, convidava com sustenidos e escalas híbridas de Dó e Ré as damas em desabroche da região. Isto se seguia sempre por muitas semanas, ao passo que meu ego inflava às segundas e quintas-feiras com aqueles elogios pomposos, os olhares provocantes, bem como a periodicidade com que ocorriam minha exibições de quando em quando. Mas como tudo há de findar cedo ou tarde, meu título de 'solista da sacada' não chegou a completar anos. A razão de tamanha tragédia dá-se pelas musas espectadoras - aquelas ingratas - que trocaram a genialidade de Bach pelas cacofonias dos clássicos de bolero interpretados pelo Vargas, agora oportunista e plagiador de meu talento com o instrumento.

É bem verdade que o que senti não passou de ciúmes tolos, confesso, porém Marito jogou baixo, trapaceou, ato fundamental para desencadear minha hibernação vitalícia, minha esporulação social. Mas deixemos o compatriota de lado para retornar à anedota de maior relevância.

Não era capaz de conviver com a inconsciência daquele sujeito a me olhar inofensivamente. A ser sincero, parecia-me que ele desconhecia qualquer fato que fosse razão de minha rabugice incurável.

_ Tome cuidado, D. Garcia, sabes dos perigos deste horário e ousa portar quantia expressiva ! - exclamou com tom paterno.

_ Tenho meus propósitos, Mario. Além disso, sei muito bem me cuidar, obrigado. - sagaz, categórico, do jeito que merecia.

Deixei-o estático para trás e prossegui sem agradecer na odisséia anatômica de lutar contra o peso morto que era minha perna. Aproximando-me da fachada do teatro municipal, a funcionária da cabine de bilhetes, uma senhora de cabelos negros artificiais e pele ulcerada, ensaiou de longe dizer-me sobre o início da apresentação. Sabia do atraso ao chegar no local, era notório, contudo me bastou a "senha" para conseguir uma entrada de acesso ao camarim da alemã em poucos minutos.

A longa espera me rendeu algumas espiadas em seus pertences, afinal, estava entediado, e ela, sendo apludida por uma multidão estupefata. Soube de seu nome logo quando vi o cartaz publicitário, - Pina Bausch - semelhança sobrenatural com minha progenitora, traços agudos característicos do povo germânico, uma flor ! Como uma criança curiosa, eu vasculhava tudo o que se mostrava no cômodo, pentes de cabelo, escovas de dente, luzes e uma volumosa parafernália de maquilagem e roupas de dança espalhadas por todo o lugar, das quais eu me deliciava em inspirar o aroma feminino de delicadeza incomparável. Subitamente fez-se silêncio. Por instinto, corri à porta que dava para o lado de fora e colei meu ouvido na tentativa de captar algo que me orientasse da vinda da dançarina. Ouvi um ribombar de cadeiras arrastadas, conversas animadas de homens, gargalhadas femininas e um 'clique' tão próximo à porta que fui obrigado a piscar os olhos tão rapidamente quanto o que me empurrou para trás.

Uma mocinha de média estatura, indumentária flamingo e pele cor de neve atingiu-me com olhos curiosos, parecendo não temer, mas desafiar. Era Pina Bausch, boquiaberta e encabulada como só ela podia ser:

_ Que fazes aqui em meu-- o que foi que você fez com minhas coisas ?! - a bailarina, cuja face alva tornara-se avermelhada após percorrer com seus olhinhos o camarim bagunçado, não dominava seu questionamento a ponto de embaralhar as perguntas que queria fazer.

Era um tanto óbvio não haver explicação alguma para conceder à dama, e o Inverno de Vivaldi, sinfonia tão admirada pelos críticos da música, primeiro movimento para ser específico, brincava em minha mente; ora tentando calar o agressivo interrogatório empreendido pela bailarina, ora esforçando-se para me alertar do silêncio mortal que cultivava na cena. Julguei ser menos arriscado, portanto, praticar o intento sem delongar minha hipnose em função da beleza infinita de Pina. Para tanto, lancei-me sobre ela a fim de abafar o grito que ameaçara dar. Em seguida tapei-lhe a boca com esforço e usei a outra mão para girar a chave fixa na porta, pois a execução de meu ritual não podia ser interrompida em hipótese alguma. Suavemente a dominei nos braços e imaginei retumbar nos tímpanos a valsa preferida de minha mãe, tocando acelerada, como o coração de meu par pequenino. Cerrei os olhos transparecendo desconfiança, pois temia que a moça me fugisse no Gran Finale. Seus bracinhos finos acompanhavam minha condução impecável em três giros consecutivos, e logo a música tornava-se rápida, mais rápida e, quando iria atingir o tempo de 1/16, a dama, sem energias, desfaleceu com a cabecinha tombada para trás.

Cuidadosamente, coloquei-a sobre o estofado de couro artificial e corri à penteadeira. Uma variedade imensa de tesouras se mostrava a minha disposição, mas escolhi a de cabo metálico acinzentado, a mais reluzente delas, como também a maior. Retornei ao corpo vulnerável da afamada artista acompanhado de uma expressão que era a soma de medo e pressa, além de dominado por um tremor a que já me acostumava a apresentar em momentos semelhantes.

Fazendo uso de um golpe furtivo, levei a mão a sua nuca macia, ergui a tesoura à altura de meus ombros e desprendi detrás de sua orelha um cachinho dourado para ser alvo de minha ferramenta. A tesoura, faminta, levou o fragmento com um corte reto de precisão inigualável, fato que me deixou atônito, perplexo. Depositei a relíquia germânica em um envelope que trazia no bolso do segundo moletom, a salvo. Certifiquei-me depois de que nenhum vestígio de minha identidade ficava no cômodo caótico de Pina Bausch e despedi-me da dama com um beijo nas bochechas rosadas que provocou um estalo engraçado, o qual me inspirou uma risadinha sapeca no cruzar do corredor extenso da saída. No dado instante, esqueci-me até mesmo de mancar feito um pirata no retorno para casa, e, sorte grande de apostador de cavalos, a neve dera uma trégua providencial. Adentrei os portões de casa em pouco menos de seis minutos. Subi as escadas a galope em direção ao meu quarto, onde a caixa preta, com inscrições douradas em sua tampa, trazia no título 'Memórias da Mamãe' e me esperava ansiosa para adicionar mais um emblema dos fantasmas dela. O cachinho da bailarina, portanto, se misturava, naquele momento, a uma diversidade de outros objetos, bem como naufragava em minha memória a exemplos de tantos outros "assaltos".

Deixei-me, enfim, cair no colchão macio de minha cama, digerindo, no despertar, no banho e na falta do chinelo, minhas últimas reminiscências dos olhos miúdos de Pina encarando-me com ingenuidade no cartaz-convite.


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog http://porleonardo.blogspot.com/.

sábado, maio 15, 2010

O engenheiro, o cronista e o amante.

Já bradava com certo vigor o relógio da Praça Central das Luzes, quando a meia-noite se fora e uma nova hora se inaugurava no dia nascente. Esse clamor mecânico foi determinante para a fuga do jovem, vez que havia vivido centenas de experiências um tanto quanto anormais para o cotidiano limitado a postilas e livros das mais variadas ciências. A fuga, como convém ser explanado, fez com que chegasse em casa com andar de falsa embriaguez, além de uma camisa alva em recortes de amarrotamento, uma calça até então intacta e um tênis consideravelmente sujo em relação aos demais que se apresentaram na cerimônia do Engenheiro. Vamos aos desdobramentos.

Deu-se lá pelas nove da noite um compromisso imediato, irrecusável, o qual serviria talvez de distração para minha mente ocupada por prismas e cores primárias indistintas: uma colação de grau. Trata-se de uma celebração ambígüa e controversa a colação, pois, a ser sincero, a euforia maior reside apenas na sensação do aluno de distanciar-se das penitências acadêmicas, ao passo que familiares e amigos provocam ruídos ensurdecedores de uma alegria artificial e efusiva, fazendo uso de faixas, apitos, confetes e serpentinas - inclusive me ocorreu um acesso de fúria quando uma destas se chocou contra minha cabeça e provocou risinhos aos autores do crime: malditos.

Pus-me em uma indumentária parcialmente adequada ao evento: uma camisa social vítima de branqueadores químicos, uma calça escura para o contraste agressivo e um tênis à aleatoriedade a que submeto meu dia-a-dia dos calçados. É claro que não me sentia um verdadeiro galã de novelas latinas (mesmo sendo bregas e um tanto estranhos), mas dirigi-me ao carro conduzido por meu pai, o qual mostrava-se elegante e suficientemente preparado para um prolongamento noturno; eu, tolo, a uma ou duas ovações e um retorno murcho para casa. Enfim, chegamos ao local do evento, logo após procurar por uma vaga de estacionamento por quase doze minutos. O Engenheiro, com seu nome já exposto à multidão ansiosa pelos discursos extensos e redundantes, vestia uma roupa capaz de chamar a atenção até mesmo de um cego distraído, e despertou-me dó do pobre homem. Neste momento também senti certa vaidade por estar vestindo algo simples, discreto e sutil, mas não deixei de ler nos olhos do formando a sincera alegria de desertar o exército da razão e equações. Pensei prontamente: "Que seja, sento-me."

Os ciclos de homenagens a patronos, padrinhos, paraninfos e pára-quedas iam se estendendo ao infinito, quando me espetou, touro após golpe desferido por toureiro, um magnetismo voluntário à inspiração - afinal, havia prometido a uma leitora que me esforçaria por criar algo atraente - porém envergonhei-me de sobressalto: o Engenheiro já começara a saltar de felicidade após receber da diretora da instituição um diploma, bem como a registrar com políticos oportunistas fotos de foco horrendo e fotógrafos de igual categoria. Minha mente se ausentara daquele recinto caloroso. As palmas, as conversas e o frenesi ali instalados cediam lugar ao absoluto silêncio das idéias, e o texto, este texto, se construía em isômeros mil em minha imaginação poderosa e desordenada. Havia, portanto, abandonado minha função ao ir à colação de grau para receber uma pancada forte na cabeça proveniente de uma roda de saltos comemorativos de uma família agressiva ao lado, e, por consequência, para piorar minha condição, o Engenheiro já estava em terra firme sendo abraçado por minha sempre atenta avó e cumprimentado formalmente pelos demais familiares. Chegou até mim com uma leve distorção na face, que tão logo interpretei por estranheza, mas ignorou e acolheu-me em um abraço compreensivo porém não recebido com igual afeto, pois ele arrebatara ao espaço a conclusão da valiosa publicação.
Não o amaldiçoei de todo, uma vez que o incorreto na circunstância era o ser que lhe escreve, mas entristeci-me no momento, apesar de que não houve tempo hábil para chorar mágoas, pois que o fim da "animada" celebração fora declarado.

Em substituição do retorno para casa, tão esperado por mim e pelo sr. Teclado, meu pai sugeriu uma confraternização que fez-me torcer o nariz de desânimo e aos outros convidados, urrarem de alegria. O fato de ter me comportado de maneira egoísta na colação ainda me perturbava durante o trajeto para o 'bar', mas o conto fervia em minhas entranhas, sobretudo as frases de efeito e as descrições mais rebuscadas. Ah!, como era bom planejar e fugir à histeria do ambiente e dar voz ao caldeirão de verdades... no entanto, este meu aspecto cronista era tão canalha quanto um marido infiel ou uma esposa negligente. Semi-desprezível, até.

Tão logo me aproximava do parágrafo anterior quando despertei com toques frenéticos no vidro, e deparei-me com uma tia gesticulando com braveza para que eu deixasse o carro. Distraí-me mais uma vez, e meus companheiros não hesitaram em deixar-me para trás; depois soube que a mesma tia só se ocupou de chamar por mim por notar que havia esquecido a bolsa de maquiagens no porta-luvas do veículo. Meus passos se faziam automáticos em direção à entrada do restaurante, o qual trazia características modernistas fajutas, isto é, uma sacada mal projetada, uma tentativa falha de construir um palco e um cantor de voz semelhante à de Djavan, porém mesclada à de Herbert Viana ou qualquer coisa do gênero - não me recordo ao certo.

Quando surgi pelas escadas, acompanhado de meu andar tímido, os presentes, que não se mostravam tristes ou tímidos como meus pés, berraram meu nome com vigor e, junto desse instante, doze badaladas certeiras no relógio da Praça Central das Luzes se faziam ouvir como nunca na cidade-domitório. Sentei-me após acenar para os mais próximos, isto é, os familiares, pois na dada ocasião até o garçom ousou me cortejar à mesa e me servir um refrigerante de cola. Agradeci-o com cavalheirismo, e o texto fixou-se ali: acabara.
É claro que não me encaixava naquela circunstância com naturalidade, leitor que zomba e ri, tampouco era meu desejo fazê-lo, mas observo agora que eu era como um viajante no tempo em um jogo dos sete erros, porém eu convergia todos os sete, como uma desventura épica.

Meu refrigerante já se encontrava na metade do recipiente, quando perdi-me nas armadilhas de um amante-cronista ao criar engenhosidades com a ficção: eu anseava por criar, desmontar, remontar e inventar, o que por consequência originou Camila Osório, uma dama inexistente, de mentira, fruto de um amor real que se mostra um pouco desconfortável com minha forma semi-formal de conversar, mas acha interessante, vez que se sente atraída por coisas "diferentes".

Todavia "Camila" é um assunto sobre o qual não pude ainda pensar, e meus esforços se concentrarão unicamente nos traços de seu perfil psicológico e também físico. E para aqueles mais atentos que ficaram curiosos por saber como se fez minha fuga, o que me resta dizer é que custou-me muito criar um motivo lógico para pagarem-me um taxi até minha casa, envolvendo matemática e argumentos infundáveis que somados ao álcool se mostram perfeitamente coerentes.

sexta-feira, abril 30, 2010

Do dever pátrio e outras coisas mais.


Já irrompiam imponentes do firmamento algumas flechas delgadas quando, impiedosamente, se apresentaram as tantas onomatopéias do rádio-relógio. A face refletia em tom amargo exatamente o que liam os orbes preguiçosos: 7:00 AM - consideravelmente cedo perante a alteração de sua rotina após a revolução promovida pelos educadores do estado que agora vagueavam sua manhã sem pudor. Pôs-se de pé em igual medida dos olhos e ensaiou preparar-se para o compromisso: os três representantes das forças armadas ainda sorriam em sua mente e davam as instruções para o processo de inserção de cabeça para baixo (!), isto é, seria incluído no grupo de fuzileiros e arrebatados ao vácuo os sonhos, a Ciência, o nobel e os louros da glória.

Moveu-se, enfim, após avaliar as tantas restrições impostas àqueles que fugiam ao compromisso pátrio. Mas o desejo do instante era o de adotar um nome mais simples, quiçá indígena, pois diziam as más línguas que os ocupantes da alta hierarquia louvavam os "milicos" de nome impronunciável e estes encabeçavam as convocações do ano vigente. Ciente disso, a passos soturnos, discurso praguejante, localizou a Junta Militar do município - uma casa de arquitetura moderna, jardins de samambaias descuidadas, uma árvore vítima do açoite do outono e a pintura quebradiça - para tão logo as peripécias do destino se anunciarem presentes. A fila, que se estendia por alguns metros, era composta de cavalheiros memoráveis; músculos salientes, semblantes corajosos, poucas palavras e rudeza gêmea ao touro seduzido por rubro lenço. O jovem, capaz de difundir pessimismo pela imagem desgostosa, adentrou a olhos baixos o cômodo mal cheiroso e intercedeu com exímia delicadeza a funcionária com seu nariz torcido, da qual escapou um 'pois não' sem réplica audível: o moço de braços finos e dedos longos encontrava-se imóvel diante de uma fotografia ilustrativa de Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac - Olavo Bilac, aos minimalistas - além do título em fonte expressiva de patrono do exército pregada a uma parede sebosa, oposta à entrada estreita.

Se fosses tu um leitor atento, notaria que a razão de tamanho espanto encontra-se no texto anterior, cujo enredo distorce a realidade do parnaso (agora patrono) além de sugerir uma vingança de gerações de letras. Olavo, assistindo à nova etapa dada a sua vida, muito ousada até, tramou malícias, aliou-se ao destino e deu partida a uma sucessão de perversões e tormentas ao indivíduo que o exaltou em artigo não muito importante à contemporaneidade.
Duas ou três interjeções se seguiram da distração pela foto, e um choque, talvez o mais aborrecedor deles, no ombro o despertou da divagação onírica do momento:

__ Por favor, apresente em ordem de importância a documentação exigida para efetuação de seu alistamento.

A última palavra pesara como pesou a Bilac em outra circunstância; a mulher pareceu ainda exceder o valor da retórica, porém o jovem ignorou a ênfase e destemido empunhou furtivamente a tarifa última dos débitos de água, a cartilha que o impedia de ser um indigente e duas pequenas fotos recém-reveladas - as quais pareciam retratar o pavor inerente ao propósito da fotografia, um horror. As mãos, úmidas de suor causado pelo nervosismo, sacudiam os papéis em ritmo intenso. A brisa do bolor seguia em contra-dança para em seguida ilustrar um sorriso que se fez nos lábios rosados e assimétricos da militar, que pareceu ter notado algo suficientemente discreto na situação.

A dama-soldado de testa ampla, nariz aquilino, retidão e bondade de espírito não hesitou em preencher com invejável destreza a ficha cadastral padrão que poria o quase homem na rede de cidadãos aptos a servir o país em guerras sem propósito. Havia chances de escapar a essa tarefa, claro, contudo os três representantes das forças armadas, em seu rapel holográfico fajuto, ainda o convidavam para aquela missão absurda, quase desumana.

Ao pé da folha de cadastro, junto ao espaço destinado ao emissor, vinha impresso o nome do reservista em fonte de homenagem aos míopes e em ordem de arquivo, ou seja, com o sobrenome seguido do vocativo ordinário. Naquele caso, o LAMOUNIER, denso e confuso, e o ARTHUR berravam num tom aquático de verde para a redatora escrivã. Ela fixou a vista sobre o conjunto das letras - o que fez o garoto suspeitar de analfabetismo funcional - porém, no instante em que concluía a reflexão sobre o sobrenome destacado, a dama-soldado bradou com toda a energia e regionalismo:

__ Ó, você é parente do tenente ! Ô, tenente Almir, vem cá ver !

Jamais entendi decerto o que os livros queriam dizer quando descreviam o arrepiar dos pêlos da nuca; mas neste episódio, principalmente após derrubar a cadeira em que me sentava e causar um estrondo colossal, me chocar com todos os candidatos que ansiosamente aguardavam o término do preenchimento da lista e bater em retirada daquele lugar após conhecimento do vínculo com o tal tenente, obtive todos os recursos para traduzir o fato em palavras. A comicidade existe, claro, porém eu temi pela Ciência e pelo exame médico que um amigo, supostamente selecionado no mesmo processo, vivenciou em traumas e sequelas psicológicas. Toques e falta de pudor era algo comum no consultório da afamada médica Rose, sobre a qual eu imaginava ombros largos, voz grave ressonante e masculinidade superior à de qualquer pugilista tri-campeão mundial. Me sobrara tempo de perambular pela região para me certificar de que eles não procuravam por mim, e não o faziam.

Também não pense, leitor que contorce e ri, que me distraí quanto ao culpado desta coincidência; pois o Sr. Bilac não me escapa do próximo escárnio. Confesso também que sinto-me agora como uma garota presunçosa que conheço, a qual de tão avessa aos escribas nacionais tapou os ouvidos (e também os olhos) ao que é arte e conceito aqui nascidos. E se pudesse dissolver sua condecoração, oh Príncipe dos poetas, saiba que o faria agora.

quarta-feira, abril 21, 2010

O parnaso desafiador.


O esforço herculano de se criar a mais bela e perfeita ordem poética, e de encantar a dama-corte com métrica, lirismo e rimas admiráveis, fez da trindade parnasiana o símbolo nacional da pompa e vaidade inerentes à literatura. O nome do ícone, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac - Olavo Bilac aos minimalistas -, não sugestiona por completo a razão pela qual evidencio o "Príncipe dos poetas" aqui, sobretudo por caracterizar falta grave no cumprimento da lei neoliberal que prevê um modelo intenso de incondicional e enérgica concorrência, tal qual dita o modelo capitalista. Mas sigamos com o aristocrata das letras, pois este já se mostra impaciente e um tanto aborrecido.

Era costume bárbaro da época - transição dos séculos XIX e XX - haver entre os nobres escritores uma espécie de rivalidade abstrata. Aquele que saisse vitorioso dos desafios adquiria a principal fonte de propulsão sócio-política dos personagens da época, isto é, se o indivíduo publicasse a obra de maior valor crítico era imediatamente condecorado com a projeção mídica e os louros da glória pública. Com nosso querido amigo Bilac a realidade do tinteiro não foi diferente. Envolveu-se em centenas de batalhas "sangrentas", conquistou prêmios, modestas recompensas, invejáveis títulos, e tão logo mostrou-se co-autor de um movimento gerador das mais intensas discussões intelectuais: o Parnasianismo.

Contudo, ao visualizar a expressão deformada de espanto das faces que me lêem atentas, considero coerente o questionamento do leitor ao levantar a problemática: "Mas que diabos está dizendo? Fugiu ao foco, aposentou a ferramenta reflexiva, filosofia não mais há, degenerou as boas frases..." - mas alto lá, detentor de orbes amuados, deixe que me explique em seguimento do enredo.

Das ocorrências mais comuns em território fluminense, aquela que causava maior sublevação entre os habitantes era o surgimento de forasteiros de aparência hostil e sinistra. Eles logo se retiravam após duas ou três noites em hotéis de alta classe dos bairros meridionais da capital, e levavam todos a crer em movimentações bancárias de porte colossal. Porém nenhum ser que se mostrava amante da vida ousava se aproximar daquelas figuras obscuras e cheias de mistério, exceto um, aliás, uma, e era Amélia de Oliveira, irmã de um certo poeta e amor palpitante do "Príncipe".
O estrangeiro do qual Amélia se aproximara havia chegado à cidade há pouquíssimos dias, e alegou à dama que um inconveniente ocorrera e suas economias se haviam desaparecido. Ela se dispôs prontamente a auxiliá-lo na busca por um abrigo, pois em sua casa estava sujeita a reprovações do irmão, sempre bem-humorado, e do pai, que, apesar de nem sempre se encontrar na cidade, mantinha olhos indiretos sobre a moça.

Desenhando os mais variados caminhos a fim de reconhecer algum generoso conhecido que cedesse teto ao mais novo amigo, Amélia passava pela principal via da metrópole quando divisou um sobrado intimidador e seissentista - dezoito janelas que sorriam aos admiradores nas ruas, duas portas avermelhadas que separavam a saída dos empregados e pintura de alvidez recente. Esta vista engatilhou a lembrança de um baile que a moça um dia fora, embora lhe falhasse a razão da comemoração e o vestido de gala usado para valsar com bons partidos. Resolveu bater à porta e arrancou do companheiro um grito de dor após puxar seu pulso com ansiedade.

_ Sr. Olavo ! Há alguém em casa ? - toc, toc; sua mão doera como nunca - Sr. Olav-- !

Um homem de postura ereta, retidão de espírito e nariz adunco aparecera no vão da pesada porta. Apresentava traços caricatos, ora finos, ora grossos, um par de lentes arredondadas e olhar pesaroso, cansado. Levou a mão à cabeça e desferiu com movimento suave um golpe em seu chapéu de côco, o qual caiu na palma de sua mão com igual rapidez:

_ Olá, D. Amélia, que trazes tu aqui a essa hora do dia com sujeito desconhecido em sua companhia ? - Bilac se aproveitava do descuido do estranho para analisá-lo por completo: vestimenta de alfaiate, sapatos lustrados, bengala inglesa e chapéu arredondado. Um símbolo de requinte e nobreza. Contudo nosso Príncipe sentia uma violenta corrosão transitar por todas as suas vísceras, bradando hinos de amor. Um ciúme ácido, amargo e indiscreto o desconfortava.

A dama de enfeitados cabelos ensaiou responder à pergunta de Olavo com uma flexão vagarosa dos lábios, quando, interrompida com um toque denso de seu cortejador, silenciou-se para ouvir o monólogo diplomático:

_ Boa tarde, Sr. Bilac, sou Carlos Inácio Unaí Mendes , crítico literário, cronista, romancista e poeta. Resido atualmente em São Paulo e represento o núcleo de imprensa jornalística do tablóide Brasiliense; gostaria de lhe apresentar algumas obras e de passar a tarde em sua companhia, pois tenho completa noção de sua autoridade cultural perante a nação.

O poeta se assemelhava a uma estátua após o último verbete do sujeito desconhecido. Seu último ato, involuntário inclusive, foi o de arriscar um "sim" em baixo tom de voz, virar as costas aos visitantes e chocar a porta contra a armação que datava de dois séculos atrás. Ele conhecia até bem demais Carlos Inácio, e este homem, embora desconhecesse o fato, foi a razão de centenas de noites insones e tentativas secretas de superação bordando versos simétricos, aluviando rimas, garimpando técnicas e arquitetando estilos.

O Senhor Bilac, como era também chamado pelos moradores das redondezas, escolheu um horário deveras incoerente para adentrar seu escritório úmido e empregnado pelo cheiro intoxicante do trabalho das traças. Sentou-se calmamente na cadeira confeccionada por seu avô, ainda a pensar na reação dos visitantes que deixara na porta de sua enorme fortaleza. Aquele móvel no qual se sentava resguardava a memória de suas primeiras empreitadas literárias: as cartas de amor, os bilhetes de aviso e até mesmo o requerimento para os inconvenientes que o perseguiam na época do colégio. O corpo desfacelando aos miúdos, dirigiu-se ao armário rústico e tomou para si o tinteiro junto à pena; retornou à mesa e, com um leve suspiro, pousou a pena que ainda teve tempo suficiente para gotejar e manchar o papiro amarelado e de qualidade questionável. O Príncipe ignorou seu descuido para pôr, sob uma invejável caligrafia, os dizeres "O Parnaso Desafiador", com um dedicatória provocadora no envelope preparado ao correio, uma vez que o texto seria dirigido ao Sr. Unaí Mendes.

No espaço dedicado à data, Olavo precisou de uma recordação. Olhou para o calendário torto da parede e divisou a concretização da dicotomia da Vingança: o dia, domingo, e o correio não viria buscar nada que ele se propusesse a criar.

segunda-feira, abril 12, 2010

O lirismo condicional.

Nesta manhã incolor e gelada (lê-se inquietante e depressiva), nenhum motivo tenho eu para pôr em papel ou em teclados aquelas anedotas frouxas e triviais que, apesar de tamanha insignificância inerente ao leitor, consigo maquiar com extensos e líricos parágrafos, além de viciar o diabo crítico pela naturalidade e recorrência das tolices tais. E foi nesta mesma manhã, especificamente no momento em que quase me sufocava no denso travesseiro de penas, que me ocorreu uma idéia (uma iluminação, como apontaria um Visconde peculiar), não semelhante apenas àquelas fixas e perturbadoras idéias, mas singela, proveitosa.

Tudo foi extremamente dinâmico; fato que tão logo me levou a suspeitar de que minha mente estivesse ansiosa por me transportar o pensamento reluzente, e sem hesitar prossegui com a reflexão involuntária - e digo involuntária pela circunstância em que estava inserido: sufocado, sonolento e, por assim dizer, amordaçado por um cobertor também muito pesado. Pensei em chamar por ajuda, mas minha avó jamais ouviria meus clamores com os ruídos ensurdecedores da lavadoura em estágio de centrifugação.

_ Certo, mente tola e hostil, você venceu seu próprio dono e merece os devidos galardões. Que queres tu depois de tão admirável triunfo ?

Em resposta, ou em absoluto silêncio, uma espécie rústica de apresentação de slides iniciou-se em meu delírio, e as lâminas projetadas em que julgo ser meu lobo frontal esboçavam fontes enormes de artigos que já se esvaíam da memória. Mas logo um padrão se estabelecia naquelas imagens, com vigor não só comparável ao de um alterofilista, e este apresentava-me em formato de denúncia minhas tantas técnicas de seduzir olhos indistintos - envergonhei-me prontamente, óbvio. O título daquele boletim pessoal de ocorrência trazia no título três malditas palavras : "O lirismo condicional" - das quais retirei propositalmente o que encabeça o presente artigo. E como também já lhe garanti a ausência de motivos pelos quais escreveria a anedota, leitor jurídico, não me açoita a responsabilidade de lhe conceder contos 'machadianos' memoráveis. E sigo.

A mente despertou por susto, e me parecera que a máquina terminara o estágio de centrifugação. Uma chance: "Vó!", e desta vez me certifiquei da realidade por um beliscão próximo ao ombro. Cuidadosa como sempre fora, veio como uma mãe ao detectar perigo acerca da prole, e trazia consigo uma xícara de café quente e um pão de aspecto novo.

_ Tome, Arthur, trouxe-lhe uma xícara de lirismo e um belo pão condicional, para que abandone de uma vez por todas estas conveniências literárias e saturadas de desarmonia. Ademais, três ou quatro comentam e lêem seus devaneios, e isto é suficiente para assumir uma postura de respeito e largar mão deste sentimentalismo juvenil imperfeito.

Suponho ter caído da cama, e a mente fazia escarninho de meu estado - maldita. Minha avó desaparecera do quarto, e de modo indelicado degluti toda a xícara junto do pão e, com onírico bem estar, sorri debilmente para acordar sob o efeito do tímido e caloroso sol.


sexta-feira, março 19, 2010

Da cobiça declarada.


Posso observar agora, - e não que tenha me inclinado ao esquecimento ou leiguice em tempos pretéritos - que a tal cobiça, dita também pecado capital sob aspectos religiosos, era, para o cão que lhe escreve tamanhas heresias, um estigma notável e triste, o qual se mostra agora capaz de levá-lo à ruína em menor tempo do que aquele gasto por uma partícula alfa ao iniciar sua parábola lenta e caricata de encontro ao chão. Mas quero lhe apresentar durante estes períodos longos e confusos, leitor de amargos olhos, uma espécie de cobiça que afugentou em definitivo o ser que pôde captar em meu semblante rugoso o esclarecido desapontamento por certa citação inconveniente, a qual aqui também o será. Avalie:

Em ocasiões semelhantes àquelas que leitores mais fiéis idenficariam (textos anteriores), esforçava-se a moça para manter-se em pose vantajosa, isto é, preservar nos olhos do menino encantado a herança mais característica da Escola Romântica. Para tanto, quase imediatamente ao encontro, pusera-se ela em uma torre intimidadora e inalcançável, para fazer-lhe (digo, fazer-me) contemplá-la em níveis inferiores e desgostosos junto do tom imaculado da pele que se fez em um açoite faminto e esguio.

E foi no desenrolar do diálogo desesperado e diário a que submetia a dama - esta sempre se ausentava poucos minutos após minha interjeição gentil - que anunciou-me, suponho que com grande ingenuidade, a interferência de um personagem terceiro ainda sem figuração: um cortejador (e peço-lhe que verifique o significado de tal verbete em seu suporte linguístico vitalício, pois o mesmo reaparecerá em meus registros banais).

E em consideração ao que nomeei meu ponto-chave, lanço o desafio: Se através de olhar analítico e imediato uma dama for capaz de ver-se sob cobiça declarada de um cavalheiro, dou-lhe minha fé embrulhada em adornos de servidão, pois meu rosto se desfez em calor, em fúria e em unidades de mudanças fisiológicas, e a moça, serena e cautelosa, virou-se à porta e despediu-se com um sorriso como qualquer outro. O fim.

terça-feira, março 16, 2010

A fantasia 'bela' dos desavisados.


Nestas súbitas divagações que nos tomam parte e meia do tempo, encontrei-me vez ou outra em esquinas acinzentadas, cabisbaixo e torpe, a avaliar os vértices da verdade doída que sobrepuja fantasias anteriores - vide De meu pecado faço crime. Elucidado a esse respeito, assinalava em alguns instantes periódicos as forças motrizes que me conduziam ao sono terno da ilusão sem causa, e, projétil ansioso por sair do artefato assassino, me atraíam a deitar no véu onírico e cobriam-me a cabeça após cerrar os pés aflitos, famintos por caminhar !

Quando chegou ao conhecimento dos presentes tamanha indiscrição, os mesmos puseram-se a sintetizar idéias e a buscar, em suas veias socráticas e platônicas, uma maneira pouco elaborada de me presentear com a verdade absoluta e conferir aos meus ouvidos um negativismo saudável, o qual me faria retornar à integridade cognitiva e enviar para um ambiente de inércia aquela distração deletéria. Naturalmente não o fiz, e por este triste, e talvez feliz, motivo, recorro aos olhos públicos para definir o julgamento da noite passada, para espantar de minha mente confusa os fantasmas dos laços amorosos juvenis, para tentar ouvir um eco de sentimento do grito que silencio por nada ter a clamar.

A dama agora se distrai com outros textos, com outros sons que não minha voz apressada e ressonante, e a fantasia bela dos desavisados soa com uma frase estridente e fria, carregada de naturalidade e doçura, anunciando, aos berros, as agradáveis circunstâncias de um amor - talvez pelo tempo que perdi naquelas esquinas cinzentas a esperar meu vigor psíquico exaltar-se - correspondido.

Ausente em forças, leitor que ri e contorce, choquei a cabeça contra o banco desconfortável e pus-me a realizar sobre cadeias carbônicas e geometrias moleculares, mas estas divertiam-se com minha derrota e agrupavam-se em forma de palavras e nomes perturbadores. A fuga mais prática era alimentar o deboche da Ciência, e nesta prática insana concebi minha moléstia e o escárnio do mundo: um horror em desatino. Adeus, saprófita de entranhas, adeus.

terça-feira, março 09, 2010

De meu pecado faço crime.


Das variedades de pecados e crimes que me ocorrem agora, destacam-se os inconstitucionais, os telepáticos, os sutis, concretos, passionais e até mesmo ilógicos. Mas saiba tu, saprófita de regulares períodos, que as tais categorias dispostas acima não alimentam sequer a circunstância em que me encontrava a planejar aquele pecado/crime que, teoricamente, me faria inocente pelo silêncio e capaz de conduzir tudo ao rigor do pensamento, da idéia.

E eis que agora me encontro em um dilema doloroso, o qual me faz hesitar entre confessar as mais sujas e inescrupulosas maldades que cometi nesta úmida e murcha tarde e esconder de ti a anedota de maior significado a meu cálido e expressivo ser. Contudo, apesar de haver tempo além do que pode mensurar para que eu me decida, prontificarei-me a uma alternativa, e contarei em criptografada mensagem o que de tão errado fiz:

Foi no retorno para casa, após exatas quatro horas de dedicação e construção de felicidade duvidosa, que dei-me a refletir sobre os que me acompanhavam no trajeto, isto é, naquele caixote móvel, extenso e ruidoso havia também seres que, como eu, se flagelavam arduamente para dar cor e impulso a uma vida de aspecto penoso e sofrido. Mas dentre aquelas faces pálidas de cansaço e solidão amarga, se contrastava uma de cor viva e salpicada de pigmentos rosados nas bochechas, a qual vez ou outra se arriscava a lançar-me certa atenção, ainda que apenas eu a bombardeasse com monólogos apressados e desconexos, e saturasse o que restava de desconfortável e inquietante silêncio entre 'nós'.

Confesso que isto se seguiu por apenas dois dias, e é sabido que não se pode chamar de dia o que se limita a uma dezena escassa de minutos famintos e pontuais - sim, eu rezava para que o tempo se perdesse nas perigosas curvas que fazia o apressado motorista, com tensão só não comparada àquela do médico estagiário de um hospital regional qualquer, na realização de uma cirurgia cardíaca. E foi neste devaneio infantil de ter mais e mais dezenas de minutos com a tal face em contraste, que, talvez por estupidez inócua, me senti tocado por um pensamento com teor humorístico ímpar: E se um pneu implodisse ? E se um temporal não permitisse que prosseguíssemos com a viagem ? E se levados fôssemos para um dimensão atemporal ? E se iniciasse uma chuva aterrorizante que nos obrigasse a dividir um grupo de lugares ? - eu em meu respectivo canto esquerdo, naturalmente.

Veja, portanto, leitor amado, que de meu pecado fiz crime, e acusado por ele seria feliz absolutamente.

sexta-feira, março 05, 2010

Ensaio da insensatez.


"Não faz mesmo muito tempo que me decidi a respeito destas inúmeras tentativas de tornar vivo o gosto pela escrita", repetiriam em uníssono os que me ouvem sussurrar planos através de paredes surdas. Naturalmente, congregar simpatizantes dos suspiros desgostosos foi uma de minhas primeiras prioridades - mas basta, deixemos de lado este aspecto comercialista e pouco artístico para que possamos acessar a real razão desta 'empreitada' de letras mil !

E foi sem espera ou aviso prévio, sem ética ou timidez, que acometeu-me hoje tamanha alegria; muito semelhante ao sabor artificial de uma tenda encrustada por estacas e seus astros de pouca luz. E mesmo sem lá estar, mesmo distante daquele núcleo inacessível de suposta felicidade, poderia inferir que tal colosso reservava poucos sorrisos e acrobatas andarilhos sem perspectivas de muito sucesso, vez que há muito os ali presentes não ensaiavam arquear gargalhadas ou remexer-se por fôlego inalcançável.
Mas me justifico agora pela insensatez que instalei no que encabeça este frenesi literário, digníssimo leitor, e segue para sua degustação: tão suntuosa se mostrou esta jubilação que hesitei em dar-lhe o prazer dos relatos de minhas pupilas em dilatação e de um raciocínio desfigurado e trôpego - contudo sugiro que não se incomode por desconhecimento tamanho, visto que para tão banal e imaturo enredo já tens demasiadas críticas venenosas em punho ofensivo.

Hoje alimento idéias, e o faço com estas que se mostram como corpos d'água se ramificando, amadurecendo, virando-se, revirando-se, se desencontrando, reencontrando... ao fim de seu percurso, cortejam o temeroso mar, este representado pelo emaranhado periódico que doo a ti; adornado, claro, por minhas tão negativas reminiscências. Cuida-te, ser humano.

terça-feira, janeiro 12, 2010

Título desinencial.


Não sei decerto se faz três ou quatro meses que imaculada encontra-se minha caneta de escrita, mas faz também tempo que dei-me ao luxo dos meios contemporâneos para publicar as tais tolices, tais que compartilho de modo solidário com o paciente e insólito leitor de entranhas: talvez um acerto, que seja !

Dói-me o esquecimento de bons títulos, - clássicos, naturais, fascinantes - logo eu, o detentor (e ostentador) de belas palavras de ênfase estética e demais atributos de estilo, por ora tão inúteis, tão impotentes a um título ! Um mero título ! Mas falta não mais me faz, pois agora agradeço ao esforço relutante daquela senhora de crespo e acinzentado pêlo, a qual suou romanticamente para fazer reverberar a sintaxe em meu âmago. Se não me falha a memória, seu passo primário foi simples, depois deu-se composto até atingir o desinencial - "ora essa, mas ele não se anuncia como os anteriores!". A lógica é necessária, pálido e desafortunado leitor, e quero que a saque deste depósito de virtudes e a empunhe por ligeiro instante, já que hei de dar partida ao monólogo enfadonho a que submeto sua triste, e talvez enérgica, alma.

Talvez deteste superestimação, ou mesmo o caráter volátil de meu estado cognitivo, ou tema a ti mesmo, desafiador maldito de meu dia-a-dia, e não mais me sinta confortável dentro deste léxico caótico. Mas o que testemunho sem denotações maiores é que torna escasso o pouco fluido que me resta, destrói minha já degenerada consciência, tão pura e hoje tão contaminada pelo conjunto mundano de práticas, diferentes até de minha caneta virtual, é claro, maculadas de ódio e ferrugem.

Decerto pensa, enquanto lê esta turbulência instantânea, sobre as causas que tomo para redigir o que interpreta tu injúria gratuita; mas assumo que aqui me encontro para transformar a desinência em gratidão, pois, mesmo que se esconda na timidez geométrica da ausência crítica, meus rascunhos são desafios em batalhas épicas por seu intacto ego desapercebido e taciturno, e ironicamente alegro-me por ser ao menos letrado. Dá-se aí um título, se quiseres fazê-lo agora.

Não sei se por conveniência ou falha mental, mas, ainda que se queira categorizar o fenômeno que me acomete por desnatural desânimo, - frieza de metal nu que aflige noturnas criaturas fantásticas - giros em eixos diversos me tornam confuso e pouco cerebral, registrando em pedra maciça encontros e desencontros com aflição letal.

Súbito e dramático final esse que me traz à lembrança tempos de tuberculosos versando sobre mármores quase polares os quais cortejavam o sereno frio de noites sem nome, sem símbolo e sem importância.
"O que fizeram de ti, dos Anjos ?" - por que não toma este como provisório, leitor de entranhas ?