sábado, outubro 27, 2012

Há sempre um lado que pesa - Parte I


Signo máximo de honestidade, totem inabalável de respeito. Ético, responsável e cordial. 

André era astuto, era seguro, era verdadeiro... André era uma receita de deus com métrica e rimas parnasianas... André era, acima de tudo, poesia para todos os gostos...



Talvez pra mim, e apenas pra mim, André fosse só um reforço da perversão do mundo e um exemplo de sua lógica de segregar alguns aos abomináveis e desiguais privilégios de outros. Sei que dirá, mas nego vigorosamente, pois não tenho por ele qualquer forma de inveja e tampouco razão para isso - você verá. Depois de travar batalha dura com a vida e seus percalços, hoje cultivo feliz minha pequena fortuna, tenho filhos maravilhosos, um fiel perdigueiro um pouco anti-higiênico e uma esposa que, apesar de hoje tuberculosa, dedicava-se ao lar nos seus tempos de saúde com um resígnio memorável. Honestamente, o que me dá é só um vazio, uma fúria de irmão sombreado pelo sucesso e brilhantismo do outro; um sentimento de quando se parte o bolo e oferece a cereja a um gêmeo e ao outro guarda-se o pedaço desornado e ainda assim espera-se o sorriso de recompensa se arquitetar no rosto do injustiçado. Vá lá, é demais !

Nasci às voltas com esse argumento. Ditava-o a qualquer um e em qualquer lugar; na igreja, quem me ouvia era pe. Cícero; na escola, a inspetora Circe; e na mesa, em hora de ceia, todo mundo que se sentasse por perto. Minha mãe, Vera Lúcia, me fazia reprimendas desajeitadas de mãe ausente, e com suas olheiras - que mais pareciam maquiagem - ela via que tais censuras não eram de grande valia, pondo que a expressão da razão, segundo ela mesma, era o silêncio das outras tantas mentiras que se calavam na minha cara amarrada (e os pontapés em direção a André que passavam raspando nas calças novas que ganhara de algum conhecido). E foi ano após ano que eu vi André se bastar em si, crescer sobre o mundo com um sorriso comedido e sua forçosa austeridade que, desconhecia-se, deformava ao misturar-se às mechas de amantes nem tão secretas assim de hoje em dia.


Era um bom garoto até certa altura, ah, isso era ! Alguns anos mais velho que ele e, dadas as condições, uma boa referência ao moleque, logo notei que ele possuía um espírito virtuoso e altruísta de querer ser o bem e fazê-lo a todos com certa neurose, ainda que discreta, que papai nos instruiu a adquirir. André parecia querer se colocar em todas as situações e ser protagonista de todas elas: era um jovem naturalmente invasivo, mas com bondade somada a isso. Depois que papai se foi - coisa de briga de bar, cachaçada, facada no bucho, mulher alheia, sangue pra todo lado, nada de ambulância ou de meu irmão - tudo mudou com uma velocidade incrível. Não fora ao enterro: estava com Elena, uma recém conhecida, fazendo as compras do mês e ajudando-a a abarcar as sacolas na carroça. Encontrei-o voltando pra casa com um andar rápido, serviço cumprido. Eu ainda secava as malditas lágrimas do rosto e ele, com um cinismo que qualquer um ali podia esbarrar, perguntou o que se passava comigo. Dei-lhe um bofetão na bochecha que trazia uma pinta exatamente igual à do papai. Sua face adquiriu um tom de fogo, brasa forte. Cabeça baixa, entrou para o sobrado e logo voltou sorrindo, indiferente, nada de mais: a vida segue. Eu disse filho da puta. Ele desimportou. Seguiu, virou a esquina e sumiu. 


Entrei em casa, estourado de ódio e ouvi mamãe fungando e dizendo que André ao menos era como o pai e que dava orgulho de vê-lo trilhar os passos do velho com tanta dedicação. Meu pai, que deixara a família desamparada por causa de uma mulher que não lhe pertencia.



Passados alguns anos, talvez pela boa imagem que sempre cultivou entre os mais velhos, as portas de meu irmão, ao invés de se abrirem quando este fazia menção de passar por elas, mantinham-se abertas à sua plena e facultativa serventia. E era D. Custódia - quarentona e viúva de uma década - quem eu conotava "porteira" de André. Não era mãe, não era tia, e tampouco preta, mas, qual tal, se preciso fosse, punha-se à frente da chibata para poupar o lombo do bom moço. Custódia sacrificava seus domingos sempre que podia para preparar mimos a André. Eram tortas de toda variedade, cartas de elogios e bugigangas de todo tipo. Para piorar, sabia-se que o fazia com as economias deixadas pelo finado - considerado crime moral e usurpação à memória do falecido, que devia torcer o nariz de onde quer que estivesse de tanto ódio e arrependimento de ter feito um testamento tamanho para tal vigaristazinha. Mas, não importava muito. Afinal, era André a quem Custódia se punha a ajudar, e portanto não era tão grave assim: a cidade inteira relevava: "a velha não podia parar de viver". E relevou até mesmo quando ele, tempos depois, começou a ajudá-la como seu enorme cacique de finanças; e daí vieram as tais denúncias, o fato, a fuga e a queda das máscaras, as quais por ora omitirei por conveniência à cronologia dos fatos.



De fato, tudo o que mamãe gastou em suados salários e morreu tentando empreender para me embutir no bom e venerável caminho do trabalho e das boas maneiras, foi abandonando a André, que parecia se orientar por intervenção quase divina e ter sucesso maior e mais convidativo que qualquer peralta de nosso tosco bairro. E enquanto eu me espremia para obter um tímido trabalho de datilógrafo na firma de seu Calixto, meu enobrecido irmão angariava outras muitas Custódias para lhe servir em lonjuras inimagináveis. Tal como uma briga assimétrica deve ser, o pêndulo da fortuna só pendia para o partido do meu rival, dando-lhe tudo o que quisesse de boníssimo grado e longe dos obstacúlos cruéis e da bateria de horrendos testes de caráter e resistência física. À altura de seus vinte e cinco anos, André já colecionava motocicletas e garotas, enquanto eu o fazia com olheiras de infinitas horas extras que me pagavam com o café e o pão de ontem. 


Eu não tinha a pretensão de censurar a boa vida dele ou de querer partilhar de seus sucessos como se me considerasse merecedor da formação daquela índole escarniosa e vil. Ora, também não exigia direitos autorais sobre tal obra - ao contrário, devo dizer ! Agora que estou almejando novas empreitadas na vida urbana e depois dos tantos incidentes envolvendo André, cogito mudar o nome que trago na identidade e omitir mamãe dos registros do governo. Vamos ser os Borges e abandonar os Vargas de uma vez por todas, pois família por aqui é coisa importante e não há progresso sem um passado livre de suspeitas. Mamãe se recusa, diz que é demais, que é desonroso, mas sei que ela acredita no que dizem os jornais sobre seu filho, que não há atalho que se tome que não leva a um colapso.




A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog: http://porleonardo.blogspot.com/.

terça-feira, maio 01, 2012

Torres em desatino.



Deitei só por 56 anos. Qual fosse o meu esforço ou minha dedicação, nem puta, nem dama, nem bicha, nem homem aceitava meu dinheiro. Se ostentasse meus carinhos e meus luxos - que não eram poucos em vista da condição das pessoas da cidade - essas regalias eram moeda morta para os “negócios da vida” e não valia a pena declará-los assim, sem ter uma oferta maior que cobrisse as propriedades materiais de um abonado. Mesmo que apenas minha nítida invalidez de mil rugas e sobras de pele explicasse o insucesso na caça pelo sexo, confesso-lhe que nem quando jovem, à aurora de meus dias, quando era nada mais que um poço de vitalidade e hormônios, fui bem sucedido na odisséia que é acordar sob a luz dos cinematográficos raios de sol perfurando e queimando quatro pernas, quatro braços e duas caras saciadas de prazer e humores. Ah, o hedonismo hollywoodiano ! Quisera eu sentar-me numa daquelas cadeiras de diretor e fazer das mil e uma traquinagens da baixeza cênica uma só obra de arte ! Naquelas colossais telas tudo é tão natural, tão escorregadio e próximo de nós ! Mas aqui no "carne e osso" não, o universo tem de ser maquiado demais para ser apresentado ao público. E compreendo que hoje faz-se isso não para causar espanto ou traumas às nossas frágeis fantasias, mas pelo fato de a menor das concretudes ou o mais sutil aperitivo da realidade serem capazes de arrebatar otimismo e fé do mais resignado e leal apóstolo.


Mas nem tudo são flores. E se pudesse, caro Simão, interromperia aqui minha catarse, pois ao fim desse registro endereçado a ti, que fora por tantos anos o meu único apoio, não desejo que seja dito das minhas palavras nada mais que uma simples anedota sexual de um fracassado amoroso sem esposa, filhos, família ou apego. Saiba, que se submeti teus olhos à humilhação da minha face é porque confio minha degeneração aos teus julgamentos; e que também delego ao teu aclamado e inabalável caráter as sentenças que mereço e você bem sabe. E faço isso porque na multidão dos meus não há esclarecimento ou sensibilidade para entender-me. Aqui sou apenas entulho, e por vezes um entulho comparado a animais da mais repugnante estirpe. Sou porco para as crianças, hiena para os companheiros de trabalho, pombo e gambá aos transeuntes. E os gambás, apesar de tudo, são como eu: injustiçados pela mãe-natureza, que assina suas perversões com o título de obra de arte divina e acha que ninguém vai se incomodar com isso. 


Para ser-lhe sincero, meu amigo, o que busco expondo-me além do que reflete a carne  é uma resposta cabível para aquele que desfruta da solidão como ela realmente gosta de se manifestar; aquela secura profunda das vísceras, o coração alto latejante e o sangue borbulhando sem ter vazão. Aquela que traz à tona os detalhes esquecidos e faz de nós - hiperativos ou controlados - uma só morada para o antagonismo de sensações e alvo para o bombardeio ininterrupto das tv's a cabo. A qualquer momento me verei comprando pilhas e pilhas de aparelhos de musculação, pagando seiscentas prestações e torcendo para que o moço do cartão de crédito não me leve a uma dessas delegacias de devedores compulsivos e me tome até as calças...


É que muito cedo, ainda na inércia de minha identidade mental, acabrunhei-me sem muito notar. Amenizei minha existência como se a tivesse programado a transcorrer de modo econômico, sem exigir de mim energia, paciência ou perícia para guiá-la; pra que não precisasse tomar nas mãos as rédeas do livre arbítrio e ter de dominar feras e acalmar as aflorações que produzem o êxtase e o deslumbramento da vida. Aprendi com a preguiça dos meus dias a idolatrar a simplicidade e a ser feliz com ela; aprendi a lambuzar-me de sabores neutros e me salgar num tempero sem muito gosto; nem azedo, nem salgado, nem ácido, nem abrasivo.


No início era fabuloso. Diferente de meus colegas de classe - conflitantes, filosóficos e errantes - eu não sofria abalos. Era mudo, evitava perspectivas atraentes e pensava pouco além da minha próxima refeição. O objetivo era que minha estada nesse mundico e corpo fátuos não servisse de mártir como as de Petersen e Huxley o fizeram a meia dúzia de gerações. Diferente deles eu não testava meus limites ou a minha natureza; tampouco questionava meus encargos e nunca aguardava um tanto mais dessa chance de aqui estar. Sendo ainda mais prático, minha ambição era como viver descendo uma ladeira, já que “pra baixo todo santo devia ajudar” e comigo não havia de ser diferente; e não era mesmo.


Ironicamente, eu observava a todos um tanto apavorado. Me perturbava imaginar-me divagando como eles sobre meu papel no berço do mundo e todos os anais que a filosofia moderna reservava para a existência de um homem. O que quero dizer é que não me sobrava tempo para compreender a razão, apenas para aceitar e executar, como um funcionário de uma fábrica qualquer daqui do centro da cidade. Se você ousa parar para refletir demais sobre o que está fazendo, três, quatro parafusos se perdem e você prejudica toda a linha de produção - quando não é demitido e vai viver de migalhas nos subúrbios asquerosos de Madalena feito Sandro e Valter que se atracaram por causa de mulher e hoje estão vendendo desentupidor de fogão e cortadores de unha no centro pra pagar o almoço. E é exatamente isso o que não quero que aconteça: só a hipótese de prejudicar os demais com uma egoísta cabeça pensante, que mais parece possuir vida própria, já me faz passar mal e embrulha o estômago.


E quando digo que não entendo tais ilustres masoquistas é porque neles não vejo lógica alguma. Espremem-se e castigam-se feito laranjas para retirar a última gota do caldo que lhes resta. E propositalmente brincam com a dor, dançam sobre a navalha do desconhecido e da sanidade. Se pendem para um lado e caem, não retornam jamais: invalidam-se. E triste é o fim de um pensador; ser de coragem cuja função é degustar, amar e descrever os venenos mais sutis que nem química ou fantasia sabem formular. São viajantes que vagam na completa escuridão e levam na bagagem uma frágil esperança de achar um ligeiro feixe de luz. Encaram feras por esporte e põem suas vidas em risco por um ideal que nem mesmo sabem se existe para obter algum resultado.


A cada reflexão, um motivo a menos para ficar vivo lhes é apresentado. A cada novo postulado, uma aproximação do acaso da luz e do azar da boa saúde. Ah, se me pertencessem as horas de ócio desses intelectualóides ! Eu investiria melhor em festas e sonos pesados que os envergonharia por terem desperdiçado tanta vida em um labirinto sabidamente sem saída. Hoje, depois de tanto tempo, eu creio que tais criaturas se dispõem a entrar nele apenas pelo desafio que reside nessa cretinice, porque buscar saber de si e das tuas faculdades só culmina numa morte lenta e dolorosa: em sofrimento.


Mas em meio a essa jogatina de azar que é a vida dessas pessoas, vi, que sem qualquer exceção, todos têm amor absoluto. Não falo de amor com letra maiúscula e aquela interpretação rica de parábolas e boas intenções dos livros infantis e da bíblia sagrada (que eles me perdoem). Quero dizer que a mesma paixão que sustentava antes a problemática vida daqueles metidos da metafísica, palestrantes de auto-exploração estratégica, seminários de filosofia socrática, hermenêutica e poética se modificou em uma paixão fulminante pelo próprio ser. Que a mesma paixão com que buscavam suas mais escabrosas justificativas e enfrentavam seus monstros mais temíveis tornou-se uma necessidade de completude refletida em seu semelhante. O "outro" era, então, a manifestação, a resposta objetiva dos questionamentos de um. E a partilha desse outro era a forma mais tenaz de gerar sua resolução.


E aí se entregavam às putas, às damas, às bichas e aos homens, que de braços abertos recebiam com candura os desvairados para acertar-lhes as idéias e sorver deles um pouco dos desatinos e se embebedar das virtudes da confusão e da loucura que jamais haviam experimentado. Descubro, depois de velho, que esse era o maior dos luxos. Esse era o começo da minha compreensão da crueza das existências; que não bastava acumular e não se entregar à correnteza nobre do deslumbramento, mas precisava me municiar de desequilíbrios e perambular pelas mentes e pelos corpos.


Eu agora deixo de ser um Torres e passo a ser Ana, Valentina, Samuel e Jasmim.  Agora eu passo a ser muitos num mesmo percurso, buscando reencontrar-me com o prazer da vida e do amor próprio para receber o que hoje me completará nas mal vistas noites de Quito e das casas de Madame Desiré. Agora me declaro um cidadão do mundo, despossado de meu auto-controle. Nu.

sábado, fevereiro 25, 2012

Bilhete para Amália

Não nutro por ti qualquer desejo. Quando a vi com meus olhos pouco simpáticos, não palpitou o coração, não dilataram as pupilas e nem minhas mãos tremeram de pavor ou de excitação. Nada fiz.
Honestamente, sequer te olhei com olhos de malícia ou sorri esperando despertar-te paixões ou fantasias naquela atmosfera perigosa que é a família e seu ambiente intrincado e tenso que faz-nos suar como se a qualquer momento fôssemos pisar num espinho ou numa ferida aberta de outrem.
Nunca mirei tua pele e tampouco desejei, consciente ou em sonho, tocar tuas arestas ou teus cabelos procurando ceder ao impulso magno do descontrole. Portanto, não esconda-os nem tampe-os com milhões de fitas e mãos como se de mim brotasse um espírito torto. Hoje, sabe-se lá por qual motivo, gostei de saber que é alva como pluma a sua tez e tens os cabelos serenos como nuvens, apesar de nunca tê-los tomado às mechas e as revolvido nos meus lábios frígidos.
Saiba que jamais admirei tuas virtudes e jamais o farei. Em respeito a tudo o que se arquiteta com alguma razão no universo, proíbo-me de inclinar-me à curiosidade de teu colo ou ensaiar imaginar como seriam tuas carícias e teus olhos em repouso. Pois, lá dentro de cada um, reside a certeza de que você jamais será amada na proporção certa. E que para descrédito da humanidade não há um de nós que sacie o desejo que emudece tosco na tua carne. Para ti, eu transcorro como os carros de um sábado à tarde – lento, vazio, desimportante.
Então proíbo-me de dormir meu sono e preocupar-me com o teu. Proíbo-me de viver meus dias tentando encontrar-me com os teus. Proíbo-me de caminhar meus passos intencionando caminhar com os teus. Proíbo-me de viver minha vida desejando secretamente que ela fosse também a tua.


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog - http://porleonardo.blogspot.com/.

quinta-feira, janeiro 05, 2012

Ira.




Hoje o homem precisava ter asas. Não digo isso para que ele as bata vigorosamente e exiba-as à liberdade que têm os anjos no céu e nas telas barrocas, mas para urrar como aves onde o som pouco se escuta e a raiva permanece acalmada pelo que há de imaterial e etéreo no hiato do mundo real: que é senão o vácuo da atmosfera ou o parágrafo secreto dos rabiscos de Caminha.

Eu, mais que nunca, orava a um ser qualquer, minimamente superior, que me desse a atenção dada aos políticos em seus protestos ou a uma personalidade com cem dólares na carteira e um rosto bonito, ou mesmo a que deram a Davi, quando este ergueu-se alto nos braços de desconhecidos e foi coroado rei sem muito porquê. Desejei, pela primeira vez em anos, que ao meu redor não houvesse o limite da minha natureza humana: essa criatura tão vangloriada em meus próprios discursos pela universidade, que a tantos infligiu bocejos e caras feias de desgosto e discordância. Naquele instante, sozinho e subjugado ao esquecimento de causa pobre e plural, venderia-me a um estranho se me surgissem - tal qual a Hermes - pés alados que me tirassem do caos quando me conviesse. Asas que ao menos me colocassem entre a beleza da arte do homem e o tédio mudo dos deuses: que fosse no Éden ou no limbo, que fosse na clareira de qualquer coisa, ou no próprio nada.

Na bolsa, nem mesmo uma caneta trazia comigo para desenhar às pressas minhas penas juvenis. Mas a tal divindade, "o espírito do nada", "o santo do invisível", enviou-me solidário, prontamente ao surgimento do meu falso pranto de ira, um cego precavido que usava um borsalino bege e uma camisa lilás. Cedeu-me seu lápis de ponta gasta e mal feita quando sacou-o do paletó ainda meio desconfiado, provavelmente ao sentir minha inquietação dentro do antigo ônibus de Santa Matilde. "Tome aqui, criança, vai te fazer bem." Uma porcaria de lápis - que o diabo me entregou como um afago de mãe, achando que eu fosse um moleque de seis anos entediado com a viagem. Mas, como acompanhado de um sorriso e uma expressão de curiosidade que minha prática em braile não conseguirá sanar nem dali a dois mil e trinta e três anos, aceitei calado, sem agradecer nem pedir licença.

Dê cá. Nunca gostei muito de cegos, nem mesmo quando eram meras personagens fugazes das tardes em que minha mãe me arrastava ao centro da cidade para estudar arte moderna. Para ser sincero, minha intenção era esquecê-lo lá e tomar-lhe o lápis aos meus propósitos. De fato, eu necessitava, como um remédio do coração ao cardíaco, borrar umas setecentas páginas com uma crônica do drama da minha vida, mesmo que isso custasse a confiança do velho desalumiado e ingênuo: o cego. Queria delinear a olhos vistos, sim, toda minha história, a qual agora, apesar de apossada, fazia-se feroz e traiçoeira, como se indomada por escolha própria, isto é, insubordinada feito órfã inserida numa família desacreditada pela infertilidade e despreparada pelos fracassos da vida, ou vice e versa. Mas não a culpo desse destino, foi o mundo - escultor de gerações - que a moldou assim.

Talvez fosse essa a explicação, penso aqui. Não é difícil acreditar que minha trajetória se sustentou por sorte. Sinto-a desacolhida desde sua discreta aurora, a qual nem mesmo com algumas centenas de vocábulos consigo resumir. E não uso da desculpa de que é complexa demais ou que de tão confusa seria perda de tempo narrá-la, isso nunca. Se me desse uns dez minutos de prosa, faria de ti, do desconhecido, do anônimo, do zé ninguém, os meus melhores e mais honrados amigos. Minha voz é sem pudor algum uma fonte de profecias e meus lábios, a raiz de muitas verdades; porém, sempre recordo de que me distancio do narcisismo - que de fato é mera insegurança - de dizer que sou deus de mim ou de ti. E prova dessa discussão é eu ter concluído depois de um sonho perturbado que minha mente conspira e conspirará contra minha tranqüilidade e o casamento entre uma alma de luz e um mistério-milagre que fez o que sou enfim.

Poderia assustá-lo com essa premissa, sem dúvida, e limitar-me a essa declaração. No entanto, preferi guardar a memória de minha dor um tanto mais fundo que uma lembrança ou um berro nas alturas da troposfera podem alcançar. Eu quis, e só dessa vez, ser ouvido, lido, recordado e discutido nas mesas de bar... porém, antes da glória, da romântica importância que nem sei se virão, precisava receber minha catarse de mãos beijadas.

Conversando com amigos, descobri que ofereciam-na a preços altíssimos em consultórios, divãs e o diabo a quatro. E tudo isso a exatos três quarteirões da minha casa. Eu compreendo, resignado, sério, sem sarcasmo, - te juro! - que custa caro saber das dores do outro. Decorei das reflexões de minha mãe os argumentos que apontam a responsabilidade que é vender diretrizes teóricas e duvidosíssimas com o objetivo de fazer alguém pouco mais feliz da vida. Sei do charlatanismo embutido nos remédios de etiqueta preta e na entidade misteriosa que nomeiam 'Academia'. Sei do quão perigoso é ir longe demais, atrás de uma dica que atalhe uma vida de angústias. Sei de tudo o que perpassa o universo medíocre dos intelectuais, da razão e dos que acham que a detêm.

Meu veneno, portanto, foi saber que eles tinham minhas respostas prontas; mas que, antagonicamente, se fortaleciam por dominar um idioma, uma escrita, uma sintaxe que, embora exatamente iguais às que eu e meus problemas praticávamos entre nós no jogo de tentar desembolar o fio do telefone, soa artificial, estrangeira, ininteligível... E não duvido também que esse seja, por fim, o propósito desses vendedores de solução. Talvez só assim, vestindo essas roupas de brechó com cheiro de guardado, usando tais óculos com setecentos graus acima e adorando deterministas, existencialistas e lavadeiras, eles se alimentem das próprias gargalhadas e dos descontroles alheios.

Eles sabiam que lá no meu verbalismo, onde nenhuma ressonância consegue enxergar, jazia minha doença. Ela penetrava bem fundo na minha covardia, minha fraqueza, e punha em evidência a vulgaridade "daquelas lá" comprimida num sorriso falso; espelhava sem medo suas caras imaculadas e projetava a gritos inauditos e duplicados sua revolta contra meu desejo por sua dualidade, de mantê-las sob meus cuidados num ato egoísta e irracional. Eu tinha as chaves para libertá-las, mas sabia que minha consciência - adoradora da posse - preferia mantê-las embrulhadas numa concepção miniaturizada do mundo. Onde pudesse cuidar e manter em sigilo por mais tempo até que o tempo soprasse-as para longe.

E meu pai, ao fundo, profetiza orgulhoso de si aquela experiência enxerida de velho sábio e coisa e tal. Talvez ele guarde suas reflexões não verbalizadas no bolso da camisa que nunca usou, como se não sentisse vontade alguma de encontrar e resolver sua existência. E, no verso da história, vejo-me na época certa de perdoar o mundo dos males impostos a todos fortuitamente. Mas nunca fui muito de perdoar, nunca fui muito de muita coisa, para ser franco... nem de viver como meu pai, assim desse jeito, sem muito pensar no seu "Eu".

Enfim, para chegar em casa, depois de descer exausto e com chuva do Santa Matilde, disputei a marquise dos tais consultórios com seis ou sete alunas do Padre José sob forte chuva. Tinha de fugir dali, óbvio, então apertei o passo para atravessar os três quarteirões. E ainda assim, balançando as chaves do apartamento, cruzei as ruas agarrado à minha quase finada coragem, como se a sensação de estar me aproximando do meu ninho remediasse a pressão do medo de falhar, de entregar-me por doze mil a alguém que se senta atrás de mim, sem fitar meus olhos, e me diz algumas "verdades absolutas" anotadas por um viciado num domingo perdido no tempo.

De frente à porta de casa, esperei que ela reconhecesse meus passos contra o assoalho. Sempre subia o único lance de escadas reproduzindo a 5ª de Beethoven, tsc. Nada de resposta. Agitei novamente as chaves e só assim vi o número 12 sumir da minha frente e aquela criatura assustadora e ao mesmo tempo doce me saudar com uma cara de sono e sua outra metade me ler dos pés à cabeça. Essa cena sempre será um "mudo" na minha história, como se eu não tivesse como entender tal estranha mecânica.

Como se previsse meu coma lúcido, ela me passou o telefone sem fio e uma outra voz me ditou o número, que disquei sem muito pensar. Antes, num ato de desespero, tentei encontrar naquela penumbra uma caneta para esboçar minha expectativa de resolver tudo ao voar alto e expulsar minha perturbação somente com um grito de ira. Tinha tempo e legítima esperança de que funcionaria. Mas do outro lado da linha alguém com uma voz anasalada e impaciente saudava-me com um "alô". Sem o mínimo controle, pus-me a tagarelar para o outro lado:

___ Dra. Rosali ? - por um momento eu duvidei que estava falando com um humano - Qual o melhor horário para consulta ? Amanhã ? Ótimo. Sei onde estão, moro a três quadras do edifício. Passar bem.




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