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quinta-feira, janeiro 05, 2012

Ira.




Hoje o homem precisava ter asas. Não digo isso para que ele as bata vigorosamente e exiba-as à liberdade que têm os anjos no céu e nas telas barrocas, mas para urrar como aves onde o som pouco se escuta e a raiva permanece acalmada pelo que há de imaterial e etéreo no hiato do mundo real: que é senão o vácuo da atmosfera ou o parágrafo secreto dos rabiscos de Caminha.

Eu, mais que nunca, orava a um ser qualquer, minimamente superior, que me desse a atenção dada aos políticos em seus protestos ou a uma personalidade com cem dólares na carteira e um rosto bonito, ou mesmo a que deram a Davi, quando este ergueu-se alto nos braços de desconhecidos e foi coroado rei sem muito porquê. Desejei, pela primeira vez em anos, que ao meu redor não houvesse o limite da minha natureza humana: essa criatura tão vangloriada em meus próprios discursos pela universidade, que a tantos infligiu bocejos e caras feias de desgosto e discordância. Naquele instante, sozinho e subjugado ao esquecimento de causa pobre e plural, venderia-me a um estranho se me surgissem - tal qual a Hermes - pés alados que me tirassem do caos quando me conviesse. Asas que ao menos me colocassem entre a beleza da arte do homem e o tédio mudo dos deuses: que fosse no Éden ou no limbo, que fosse na clareira de qualquer coisa, ou no próprio nada.

Na bolsa, nem mesmo uma caneta trazia comigo para desenhar às pressas minhas penas juvenis. Mas a tal divindade, "o espírito do nada", "o santo do invisível", enviou-me solidário, prontamente ao surgimento do meu falso pranto de ira, um cego precavido que usava um borsalino bege e uma camisa lilás. Cedeu-me seu lápis de ponta gasta e mal feita quando sacou-o do paletó ainda meio desconfiado, provavelmente ao sentir minha inquietação dentro do antigo ônibus de Santa Matilde. "Tome aqui, criança, vai te fazer bem." Uma porcaria de lápis - que o diabo me entregou como um afago de mãe, achando que eu fosse um moleque de seis anos entediado com a viagem. Mas, como acompanhado de um sorriso e uma expressão de curiosidade que minha prática em braile não conseguirá sanar nem dali a dois mil e trinta e três anos, aceitei calado, sem agradecer nem pedir licença.

Dê cá. Nunca gostei muito de cegos, nem mesmo quando eram meras personagens fugazes das tardes em que minha mãe me arrastava ao centro da cidade para estudar arte moderna. Para ser sincero, minha intenção era esquecê-lo lá e tomar-lhe o lápis aos meus propósitos. De fato, eu necessitava, como um remédio do coração ao cardíaco, borrar umas setecentas páginas com uma crônica do drama da minha vida, mesmo que isso custasse a confiança do velho desalumiado e ingênuo: o cego. Queria delinear a olhos vistos, sim, toda minha história, a qual agora, apesar de apossada, fazia-se feroz e traiçoeira, como se indomada por escolha própria, isto é, insubordinada feito órfã inserida numa família desacreditada pela infertilidade e despreparada pelos fracassos da vida, ou vice e versa. Mas não a culpo desse destino, foi o mundo - escultor de gerações - que a moldou assim.

Talvez fosse essa a explicação, penso aqui. Não é difícil acreditar que minha trajetória se sustentou por sorte. Sinto-a desacolhida desde sua discreta aurora, a qual nem mesmo com algumas centenas de vocábulos consigo resumir. E não uso da desculpa de que é complexa demais ou que de tão confusa seria perda de tempo narrá-la, isso nunca. Se me desse uns dez minutos de prosa, faria de ti, do desconhecido, do anônimo, do zé ninguém, os meus melhores e mais honrados amigos. Minha voz é sem pudor algum uma fonte de profecias e meus lábios, a raiz de muitas verdades; porém, sempre recordo de que me distancio do narcisismo - que de fato é mera insegurança - de dizer que sou deus de mim ou de ti. E prova dessa discussão é eu ter concluído depois de um sonho perturbado que minha mente conspira e conspirará contra minha tranqüilidade e o casamento entre uma alma de luz e um mistério-milagre que fez o que sou enfim.

Poderia assustá-lo com essa premissa, sem dúvida, e limitar-me a essa declaração. No entanto, preferi guardar a memória de minha dor um tanto mais fundo que uma lembrança ou um berro nas alturas da troposfera podem alcançar. Eu quis, e só dessa vez, ser ouvido, lido, recordado e discutido nas mesas de bar... porém, antes da glória, da romântica importância que nem sei se virão, precisava receber minha catarse de mãos beijadas.

Conversando com amigos, descobri que ofereciam-na a preços altíssimos em consultórios, divãs e o diabo a quatro. E tudo isso a exatos três quarteirões da minha casa. Eu compreendo, resignado, sério, sem sarcasmo, - te juro! - que custa caro saber das dores do outro. Decorei das reflexões de minha mãe os argumentos que apontam a responsabilidade que é vender diretrizes teóricas e duvidosíssimas com o objetivo de fazer alguém pouco mais feliz da vida. Sei do charlatanismo embutido nos remédios de etiqueta preta e na entidade misteriosa que nomeiam 'Academia'. Sei do quão perigoso é ir longe demais, atrás de uma dica que atalhe uma vida de angústias. Sei de tudo o que perpassa o universo medíocre dos intelectuais, da razão e dos que acham que a detêm.

Meu veneno, portanto, foi saber que eles tinham minhas respostas prontas; mas que, antagonicamente, se fortaleciam por dominar um idioma, uma escrita, uma sintaxe que, embora exatamente iguais às que eu e meus problemas praticávamos entre nós no jogo de tentar desembolar o fio do telefone, soa artificial, estrangeira, ininteligível... E não duvido também que esse seja, por fim, o propósito desses vendedores de solução. Talvez só assim, vestindo essas roupas de brechó com cheiro de guardado, usando tais óculos com setecentos graus acima e adorando deterministas, existencialistas e lavadeiras, eles se alimentem das próprias gargalhadas e dos descontroles alheios.

Eles sabiam que lá no meu verbalismo, onde nenhuma ressonância consegue enxergar, jazia minha doença. Ela penetrava bem fundo na minha covardia, minha fraqueza, e punha em evidência a vulgaridade "daquelas lá" comprimida num sorriso falso; espelhava sem medo suas caras imaculadas e projetava a gritos inauditos e duplicados sua revolta contra meu desejo por sua dualidade, de mantê-las sob meus cuidados num ato egoísta e irracional. Eu tinha as chaves para libertá-las, mas sabia que minha consciência - adoradora da posse - preferia mantê-las embrulhadas numa concepção miniaturizada do mundo. Onde pudesse cuidar e manter em sigilo por mais tempo até que o tempo soprasse-as para longe.

E meu pai, ao fundo, profetiza orgulhoso de si aquela experiência enxerida de velho sábio e coisa e tal. Talvez ele guarde suas reflexões não verbalizadas no bolso da camisa que nunca usou, como se não sentisse vontade alguma de encontrar e resolver sua existência. E, no verso da história, vejo-me na época certa de perdoar o mundo dos males impostos a todos fortuitamente. Mas nunca fui muito de perdoar, nunca fui muito de muita coisa, para ser franco... nem de viver como meu pai, assim desse jeito, sem muito pensar no seu "Eu".

Enfim, para chegar em casa, depois de descer exausto e com chuva do Santa Matilde, disputei a marquise dos tais consultórios com seis ou sete alunas do Padre José sob forte chuva. Tinha de fugir dali, óbvio, então apertei o passo para atravessar os três quarteirões. E ainda assim, balançando as chaves do apartamento, cruzei as ruas agarrado à minha quase finada coragem, como se a sensação de estar me aproximando do meu ninho remediasse a pressão do medo de falhar, de entregar-me por doze mil a alguém que se senta atrás de mim, sem fitar meus olhos, e me diz algumas "verdades absolutas" anotadas por um viciado num domingo perdido no tempo.

De frente à porta de casa, esperei que ela reconhecesse meus passos contra o assoalho. Sempre subia o único lance de escadas reproduzindo a 5ª de Beethoven, tsc. Nada de resposta. Agitei novamente as chaves e só assim vi o número 12 sumir da minha frente e aquela criatura assustadora e ao mesmo tempo doce me saudar com uma cara de sono e sua outra metade me ler dos pés à cabeça. Essa cena sempre será um "mudo" na minha história, como se eu não tivesse como entender tal estranha mecânica.

Como se previsse meu coma lúcido, ela me passou o telefone sem fio e uma outra voz me ditou o número, que disquei sem muito pensar. Antes, num ato de desespero, tentei encontrar naquela penumbra uma caneta para esboçar minha expectativa de resolver tudo ao voar alto e expulsar minha perturbação somente com um grito de ira. Tinha tempo e legítima esperança de que funcionaria. Mas do outro lado da linha alguém com uma voz anasalada e impaciente saudava-me com um "alô". Sem o mínimo controle, pus-me a tagarelar para o outro lado:

___ Dra. Rosali ? - por um momento eu duvidei que estava falando com um humano - Qual o melhor horário para consulta ? Amanhã ? Ótimo. Sei onde estão, moro a três quadras do edifício. Passar bem.




A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu bloghttp://porleonardo.blogspot.com/.

sábado, outubro 22, 2011

Ser eles.


Era como que um sentimento de não caber em mim. Uma necessidade de expandir minha existência aos níveis mais críticos e poder extrapolar a individualidade que deus nos impôs sabe-se lá com que propósito. A bem da verdade, eu não era suficiente para aqueles braços finos, o corpo esguio e a tez falsamente perolada. Eu era um desperdício naqueles traços repetitivos, sólidos e imutáveis. Eu desejava outras faces, outra formas, outras fortunas.

Minha vontade maior era prescrutar o íntimo das mentes, perversas ou serenas, e provar da fonte os segredos mais intempestivos de cada ser humano. Fazer-me saber dos temores, dos pudores e dos limites; controlar os passos e mudar destinos; fazer, por assim dizer, a vida à minha semelhança e deleitar do desespero que é perder-se na inconsequência de outro alguém.

Minha vontade era aproximar-me do sexualismo dos familiares, poder ouvir suas preces inauditas e as maldições infundadas que a inveja traz. Queria guardar de cada um seu amor próprio, suas carícias de frente ao espelho e a admiração a olhos vivos das geometrias dos corpos desnudos. Eu anseava provar dos toques, inventar paixões e alavancar adultérios. Pôr as damas nos cabarés e as putas em minha casa; ora jantar com cães, ora passear encoleirado a eles numa travessa movimentada de Buenos Aires.

Eu queria mesmo era ter tempo para ser o mundo; mudar de país, mudar os papéis, ser um escultor falido, médico e bombeiro; ter uma doença crônica, uma identidade nova, uma conta gorda nas Bahamas e pilotar um iate nos fins de semana. Queria viver às migalhas, abraçar um bom litro de cachaça e queimar a garganta com um alívio tão instintivo quanto pode ser o sono. Queria pisar descalço as grandes avenidas, viver de agricultura ou vender bugigangas a quem houvesse de achar ali qualquer importância.

Minha vontade era de amar todos os idiomas, misturá-los ao acaso e com eles fazer discursos de aniversário ininteligíveis. Eu queria poder amar muitos, quiçá todos, pois assim por todos seria também amado e no mundo não faltaria sentimento à mais baixa, suja e demente das criaturas. Queria ser aquele a pedir desculpas, mas também o orgulhoso, pedante e inculto. Queria trazer de volta aos meus dias a infância, e tão logo ela me aborrecesse, experimentaria a velhice que tanto me contém hoje. E ai do hipócrita que erguer-se num púlpito para condenar-me bruxo, pois já estive em sua mente e dela sei que saem impulsos luxuriosos e a fera acorrentada do ser humano temperado à mais falsa civilidade.

Eu queria que nossa existência fosse uma permuta constante, que nos permitisse experiências novas a cada manhã; que nos colocasse a mesa do café em uma casa nova, com um patriarca autoritário e uma irmã viciada; o jantar com um cineasta russo mal humorado e o desjejum ao lado de um filósofo contemporâneo surdo.

Eu queria poder ter uma arma, um pote de cocaína e um fundo de ajuda e caridade.

Eu queria ser eles. E só isso me bastaria as ideias.

Eu queria ser. E só. Mas as leis que regem nossa humilde existência nos limitam a um único caminho; e o meu despontou no fim, lá longe onde deus descansa.

quarta-feira, agosto 24, 2011

Cartas ao nosso anonimato.





18-07-86 - Hospital



Querida,


hoje eu resolvi deixar tudo assim, disperso, incoerente, caótico. Como de fato não vivo dia por dia com intensidade alguma, não importa se o dezesseis está antes do três ou se julho - no meu calendário - antecede maio. As coisas não precisam de uma cronologia adequada; deixa-se ir assim, sem pudor, e dane-se. É, tudo o que eu mais desejo é dizer isso para o mundo. A minha amargura é tamanha que mesmo as palavras simples me doem ao sair: obrigado, perdão e com licença se aposentaram há tempos do meu vocabulário. Me comunico em urros mal-humorados e ai de quem não entender.

Tudo está virado. Logo eu, tão falante, tão seguro! Por enquanto, só a vida em ficção, nosso amor platônico e aquele filme do Coppola que põem pra passar aqui têm me feito completo. Apostei em estrelas de mentira, em sóis distantes demais e perdi. Foi a beleza sedutora que me enganou, não você.


Saiba que não é questão de suicídio, desistência ou falta de vontade. Já não há mais motivos e eu não vejo utilidade nessas fugas permanentes. Ainda mais na idade em que estou, sinto-me em absoluto sono, cansaço e invalidez - não tenho energia para cartas de despedida e tiros no peito como o biruta do Vargas. Poderia ser um cadáver, que não saberia. Poderia ser um defunto e todos me abraçariam, trariam flores e me olhariam como homem digno. E falo isso porque a morte traz dignidade junto das desgraças: "Oh, puxa, André foi um homem e tanto!"; "Ah, que falta nos fará o Papa!" e por aí vai. A morte, por assim dizer, banaliza o coração pulsante e ri de qualquer um que ouse desafiá-la. Mas também traz boas coisas, apesar de meu limite há séculos já ter ido para o espaço e não ter como resgatá-lo dessa órbita inalcançável.


Agora percebo como é fugaz a nossa importância. Um tiro seco em peito aberto que me abriu os olhos para a concretude desconjuntada do mundo. Estar aqui ou deixar meu corpo desfalecer feito quebra-cabeça é uma ambigüidade abusada. Estando presente, já era pura ausência e - preto no branco - minha ausência não era notada. Grande coisa essa morbidez sádica. De toda maneira, tinha de estar lá, sempre postado como bom homem.



Eu realmente não sei o que devo fazer. Era, segundo minha lei, para tudo estar em seu devido lugar, pois, assim, a hesitação de deixar esse espaço e essas verdades não viria à tona. A certeza de criar e destruir é o que move os homens; e me move também. Ter a decência de me fazer como for - quadrado, retângulo ou linha - e, se insatisfeito estiver, botar-me em qualquer saco plástico e recomeçar até que alguém recicle: isso é viver com as chances e os azares. Contudo, essa prática é pouco corrente entre os meus e o fato é que lixo não retorna para a superfície; sedimenta e morre enviesado em seus próprios percalços até sumir; quando some. Mas não dá. Ser finito e irrecuperável é o humano. E eu, sem minha bússola, não sou nada mais que um itinerante. Minha dificuldade, para fins de comprovação, é ser comum e alimentar essa colônia mal sucedida de formiguinhas bem adestradas. Minha indigestão começa ao respirar o produto do trabalho alheio e ter a quem fazer considerações; ter de agradecer de olhos baixos e respeitosos as enfermeiras mal pagas e os cuidadores preguiçosos até que seus egos fartos inflem e me espremam contra as paredes elásticas até que essas se arrebentem.


Pois vá, minha querida Anônima. Trabalhe, ganhe, doe, lute. Seu pó, para sua infelicidade, não terá essas etiquetas, mas asseguro-lhe que – se sair daqui com o sorriso estampado e o termo de alta - isso não a impedirá de ser pó. Um pó de gente, que não fala nem se apresenta. Só descansa. Descansa suas conquistas e revive seus fracassos. Deixa-os borbulhando na memória dos teus e depois de digerido se torna vaguidão. Pois assim, fracasso por fracasso, tudo se molda como deve ser - infértil e fétido até que definha e os vermes da idéia vêm se alimentar. Roem cada camada e adentram pouco a pouco o arcabouço da intimidade. Te ferem e maculam até que não importe a vaidade para você tapar com as mãos o que te enrubesce as bochechas gordas. E assim é a dinâmica polvorosa que passa desapercebida nos nossos dias.


Disse-me um senhor daqui do hospital que o homem não foi feito para derrota. Tsc, quanta petulância. Talvez esse homem que pôs tanto significado numa frase de efeito não tenha enfrentado essas cadeiras dos infernos e a dor dessas agulhas filhas da puta que me picam de segundo em segundo. É assim o dia inteiro, meu bem, remédio atrás de remédio, e analgésicos que não acabam mais.


E é assim também que o dia termina: não há mais nada a se fazer. Eu não me suporto como antes, minha pele está horrível e minha voz já não disfarça as dores contidas. Os olhos marejados começam a gotejar no assoalho e, na minha pouca roupa, já vejo meus ossos cutucando a costura velha a ponto de rasgarem-lhe aos pedaços. E enquanto isso, tenho de ficar de olhos fechados, porque o trem passa rápido e ruidoso acima de nós. Imagino daqui de longe uns meninos olhando maravihados pela janela, uns adultos dormindo um sono perturbado. Sacoleiros, escritores e desempregados disputando um espaço na estação. Roqueiros de bermuda, com camisetas suadas, concorrem a prioridade com grávidas que estão a um passo de explodir em quem estiver por perto. Jornais populistas resumem o fim de semana na segunda-feira de futebol e menininhas vaidosas retocam o batom vermelho em lábios ressecados. Suas unhas, mal feitas; o chão, podre e imundo; e o ar, cianótico feito só, me sufocando e instilando veneno. Todos juntos para me compor estatelado nesse leito fedido. Os hospitais, sem dúvidas, são moradas provisórias daqueles cujo destino é o inferno; como que um aperitivo de toda a podridão e os excessos sulfurosos que lá se encontram. Os bons homens, esses de vida exemplar e conduta impecável, certamente morreram sós em camas aquecidas ou nos braços e afagos das esposas - foram felizes para o ‘céu’.


Acontece que aqui é ordem atrás de ordem: "Feche a porta, não tente entrar." Acelere de novo a maca: lá vamos nós. A claridade e as ferragens entrecortando o silêncio fazem a trilha sonora. Isso aqui nunca foi santuário de coisa alguma. E de novo: "Feche a porta; não tente sair, senhor. Na próxima estação tem cabos e fios de alta tensão. Será um instante breve: um choque. Se acabou sua viagem: fique atrás da linha amarela ou dentro do saco preto. Lá atrás."


Dê seu adeus e, se não tiver, dê a partida e lá vamos nós outra vez.

Já me cansei de mandar cartas à prefeitura para desviar a linha férrea que passa aqui atrás da minha ala de internação. Se não chegam até o gabinete do todo-poderoso, terei de ficar reclamando contigo por meio de quinze parágrafos e tal.


Tenho que dormir agora por causa do jejum restrito dos exames de amanhã. Tomara que sirvam aquelas bisnagas na hora do lanche porque suspeito que a sopa esteja estragada desde o final de semana. Se cuida e até sexta-feira.


Com amor, de seu eterno André.





A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog http://porleonardo.blogspot.com/.

terça-feira, janeiro 12, 2010

Título desinencial.


Não sei decerto se faz três ou quatro meses que imaculada encontra-se minha caneta de escrita, mas faz também tempo que dei-me ao luxo dos meios contemporâneos para publicar as tais tolices, tais que compartilho de modo solidário com o paciente e insólito leitor de entranhas: talvez um acerto, que seja !

Dói-me o esquecimento de bons títulos, - clássicos, naturais, fascinantes - logo eu, o detentor (e ostentador) de belas palavras de ênfase estética e demais atributos de estilo, por ora tão inúteis, tão impotentes a um título ! Um mero título ! Mas falta não mais me faz, pois agora agradeço ao esforço relutante daquela senhora de crespo e acinzentado pêlo, a qual suou romanticamente para fazer reverberar a sintaxe em meu âmago. Se não me falha a memória, seu passo primário foi simples, depois deu-se composto até atingir o desinencial - "ora essa, mas ele não se anuncia como os anteriores!". A lógica é necessária, pálido e desafortunado leitor, e quero que a saque deste depósito de virtudes e a empunhe por ligeiro instante, já que hei de dar partida ao monólogo enfadonho a que submeto sua triste, e talvez enérgica, alma.

Talvez deteste superestimação, ou mesmo o caráter volátil de meu estado cognitivo, ou tema a ti mesmo, desafiador maldito de meu dia-a-dia, e não mais me sinta confortável dentro deste léxico caótico. Mas o que testemunho sem denotações maiores é que torna escasso o pouco fluido que me resta, destrói minha já degenerada consciência, tão pura e hoje tão contaminada pelo conjunto mundano de práticas, diferentes até de minha caneta virtual, é claro, maculadas de ódio e ferrugem.

Decerto pensa, enquanto lê esta turbulência instantânea, sobre as causas que tomo para redigir o que interpreta tu injúria gratuita; mas assumo que aqui me encontro para transformar a desinência em gratidão, pois, mesmo que se esconda na timidez geométrica da ausência crítica, meus rascunhos são desafios em batalhas épicas por seu intacto ego desapercebido e taciturno, e ironicamente alegro-me por ser ao menos letrado. Dá-se aí um título, se quiseres fazê-lo agora.

Não sei se por conveniência ou falha mental, mas, ainda que se queira categorizar o fenômeno que me acomete por desnatural desânimo, - frieza de metal nu que aflige noturnas criaturas fantásticas - giros em eixos diversos me tornam confuso e pouco cerebral, registrando em pedra maciça encontros e desencontros com aflição letal.

Súbito e dramático final esse que me traz à lembrança tempos de tuberculosos versando sobre mármores quase polares os quais cortejavam o sereno frio de noites sem nome, sem símbolo e sem importância.
"O que fizeram de ti, dos Anjos ?" - por que não toma este como provisório, leitor de entranhas ?

sexta-feira, outubro 02, 2009

Antípoda do dia é o choro.


A antípoda do dia é o choro, e dado à escrita bem cedo, tratei-me a contemplar bons autores, boas inspirações, boas técnicas, porém faltava-me sempre um ponto crucial, uma unidade, aquela medida exata e qualitativa, - e acho que isto se reflete em todo e qualquer diabo letrado que se preza - a dama.

Ainda infimamente atribuído às minhas prosas, creio ser o realismo o fabricante dessas negativas, meu elemento recai em uma desconsideração, minto, de rodeios e circunvoluções declaradas, - salvo o método romancista, que peca em seu módulo fantasista e aristocrata - um horror em desatino. No entanto, caso dessem-me a oportunidade de constituir esses escárnios hiperbólicos, descartando-se a missão de torturá-los com complexas filosofias, e distanciar à posteridade a compreensão do leitor, daí sim, saprófita derradeiro, poderia agregar as tais denúncias como fizera a fonte incessante da inveja que oxida minhas artérias, e glorifica as sociedades; o que, erroneamente, chamam gênio. Rio-me, e intensifico o jogo perigoso.

Dado o aborrecimento da véspera fria e silenciosa, do que talvez represente meu nascimento, tive-me em dois momentos a optar pelo efeito da narcolepsia. Quebrar tal momento lúcido e colher os oníricos fragmentos de minha ascenção social em delírio é mais lucrativo que empenhar-me em uma missão talvez duvidosa, dificulta e, em termos, inútil, pensava eu. Entenda, portanto, tu, leitor de entranhas, que a geratriz de um interrogatório inicia com um comentário sugestivo e algumas conveniências justapostas: a habilidade insensata de descobrir a face e consolidar sua identidade suja e saturada de treva, possivelmente agradável a um ou dois exemplares da mais incoerente natureza, uma lástima! Sugiro que essa natureza desperte lá o efeito de um prisma de refração, que redistribui a composição da luz em feixes que lembram-nos o arco-íris (e por que não registrar a tal natureza com este nome ?).

Não compreendo sua resistência, faminto leitor, às minhas vãs metáforas empregadas aos Números; eram estas essencialmente degenerativas e lúgubres, compostas de moldes mal feitos e de discórdia em acúmulo, um horror em desatino. A lógica propõe, ainda, a tendência literária ao mais perfeito equilíbrio, isto é, o abandono presente das armas imundas a que me disponho, para emprego de estilo impecável e roteiro virgem de imperfeições - talvez não seja eu um literato, portanto.

A ti arremesso, se ainda quiseres prosseguir nesta incolor breguice, as estruturas de mais instantânea fecundação (e talvez mais desprezível); uma tentativa ineficiente de conquistá-lo em tal página, mas com o pensamento na natureza citada e em seu exemplar de mais prestígio e sagacidade: arremessar é brando demais ao nível aqui utilizado, obrigo-o a digerí-la. Também confesso que desconheço o destino original do que seria um conto fugaz. O interesse pertence apenas a um leitor, e este deve abdicar o desamor e unir-se à composição integral do artigo, e por este motivo deixo cortejarem os demais a cegueira, a tácita névoa cognitiva e indubitavelmente a interrupção. E interrompo por imundície adotar.

Reluziam grandemente as primárias cores. Atiravam-me reflexos abruptos e violentos. O arco-íris imprevisível circundava agora os campos toscos de minhas frases elaboradas com conhecida espontaniedade, mas deixou-me só no período mais escuro da noite, e tremi de temor (sim!); ria-se agora, curioso contemplador das derrotas, e tenha a ti mesmo com admirável alegria, pois o pseudônimo que emprego teve-me como à mão de semear, e estúpido fiquei, alarmado, aguardando o que seriam os raios castos do sol de meu nascimento, uma dádiva à morte - vide O virtuoso fim.


quarta-feira, agosto 05, 2009

Quando se esvai o provisório.

Certa vez, em uma reflexão despreocupada e deprimida, realizei uma determinação insignificante sobre os inúmeros simbolismos que perseguiam-me a cada mudança: espaço-tempo, naturalmente.
Atraiu-me a estrada estética da melancolia, adornada por belíssimos e característicos prantos vocalizados, máscaras infelizes, centelhas de compaixão e compreensão; era apropriada, ainda, por um viajante imóvel, limitado a observar a dimensão desprezível do trecho tortuoso em que se encontrava, e a cortejar o medo e a loucura em um único ato. Assim estava Nostalgia, com pouca bagagem e ânimo, apenas com a simples tarefa de entregar-se ao dono do local dominante, o Conde Melancólico, autor de imposições, controvérsias e ilusões, capaz de desintegrar relações e manipular seres de emoções.
Ali se destacava uma constante reação. Esta um pouco irônica e demasiadamente evitável, pois não significava um simples fado ao esquecimento, mas a perda completa do que me transportava ao prazer psicológico do retorno à origem, à essência, ao primitivo. Não pude conter as frias lágrimas que se apresentavam aos olhos, e tampouco me dar ao luxo de encontrar a alegria em algum exemplar humano dotado de tal; então, para que não dissimulasse o horror que se mostrava naquele som um dia tão belo, tão diário, tão gentil, deixei uma passageira compôr minha locomotiva de azar e amargura: a Srta. Ira. Evidentemente, não estava equivocado com a aparente simpatia da visitante, e logo senti-me confortavelmente feliz ao seu lado, servindo-a com minha hospitalidade e segredos imensuráveis.
Nem tão logo anoitecia, e percebi o fim da bela metáfora eufemizada. Ira foi capaz de trair-me em seu cíclico procedimento de perversão, e nada mais construí, desde então, até encontrar uma antiga leitora de tolices, que, por desamor, veio contar-me a boa nova: 'gosto de breguices em acúmulo'.
Há quem mencione a conveniência destas sucessões, e há quem se prenda ao enredo que propus ao título inconsistente. Cabe à crítica do leitor apontar o que lhe é mais lucrativo e agradável.