De belas mentiras fazem-se os belos contos. De uma bela vida, cálida e possessa dão-se as fantasias inspiradoras.
quinta-feira, janeiro 05, 2012
Ira.
sábado, outubro 22, 2011
Ser eles.
Minha vontade maior era prescrutar o íntimo das mentes, perversas ou serenas, e provar da fonte os segredos mais intempestivos de cada ser humano. Fazer-me saber dos temores, dos pudores e dos limites; controlar os passos e mudar destinos; fazer, por assim dizer, a vida à minha semelhança e deleitar do desespero que é perder-se na inconsequência de outro alguém.
Minha vontade era aproximar-me do sexualismo dos familiares, poder ouvir suas preces inauditas e as maldições infundadas que a inveja traz. Queria guardar de cada um seu amor próprio, suas carícias de frente ao espelho e a admiração a olhos vivos das geometrias dos corpos desnudos. Eu anseava provar dos toques, inventar paixões e alavancar adultérios. Pôr as damas nos cabarés e as putas em minha casa; ora jantar com cães, ora passear encoleirado a eles numa travessa movimentada de Buenos Aires.
Eu queria mesmo era ter tempo para ser o mundo; mudar de país, mudar os papéis, ser um escultor falido, médico e bombeiro; ter uma doença crônica, uma identidade nova, uma conta gorda nas Bahamas e pilotar um iate nos fins de semana. Queria viver às migalhas, abraçar um bom litro de cachaça e queimar a garganta com um alívio tão instintivo quanto pode ser o sono. Queria pisar descalço as grandes avenidas, viver de agricultura ou vender bugigangas a quem houvesse de achar ali qualquer importância.
Minha vontade era de amar todos os idiomas, misturá-los ao acaso e com eles fazer discursos de aniversário ininteligíveis. Eu queria poder amar muitos, quiçá todos, pois assim por todos seria também amado e no mundo não faltaria sentimento à mais baixa, suja e demente das criaturas. Queria ser aquele a pedir desculpas, mas também o orgulhoso, pedante e inculto. Queria trazer de volta aos meus dias a infância, e tão logo ela me aborrecesse, experimentaria a velhice que tanto me contém hoje. E ai do hipócrita que erguer-se num púlpito para condenar-me bruxo, pois já estive em sua mente e dela sei que saem impulsos luxuriosos e a fera acorrentada do ser humano temperado à mais falsa civilidade.
Eu queria que nossa existência fosse uma permuta constante, que nos permitisse experiências novas a cada manhã; que nos colocasse a mesa do café em uma casa nova, com um patriarca autoritário e uma irmã viciada; o jantar com um cineasta russo mal humorado e o desjejum ao lado de um filósofo contemporâneo surdo.
Eu queria poder ter uma arma, um pote de cocaína e um fundo de ajuda e caridade.
Eu queria ser eles. E só isso me bastaria as ideias.
Eu queria ser. E só. Mas as leis que regem nossa humilde existência nos limitam a um único caminho; e o meu despontou no fim, lá longe onde deus descansa.
quarta-feira, agosto 24, 2011
Cartas ao nosso anonimato.
18-07-86 - Hospital
Querida,
hoje eu resolvi deixar tudo assim, disperso, incoerente, caótico. Como de fato não vivo dia por dia com intensidade alguma, não importa se o dezesseis está antes do três ou se julho - no meu calendário - antecede maio. As coisas não precisam de uma cronologia adequada; deixa-se ir assim, sem pudor, e dane-se. É, tudo o que eu mais desejo é dizer isso para o mundo. A minha amargura é tamanha que mesmo as palavras simples me doem ao sair: obrigado, perdão e com licença se aposentaram há tempos do meu vocabulário. Me comunico em urros mal-humorados e ai de quem não entender.
Tudo está virado. Logo eu, tão falante, tão seguro! Por enquanto, só a vida em ficção, nosso amor platônico e aquele filme do Coppola que põem pra passar aqui têm me feito completo. Apostei em estrelas de mentira, em sóis distantes demais e perdi. Foi a beleza sedutora que me enganou, não você.
Saiba que não é questão de suicídio, desistência ou falta de vontade. Já não há mais motivos e eu não vejo utilidade nessas fugas permanentes. Ainda mais na idade em que estou, sinto-me em absoluto sono, cansaço e invalidez - não tenho energia para cartas de despedida e tiros no peito como o biruta do Vargas. Poderia ser um cadáver, que não saberia. Poderia ser um defunto e todos me abraçariam, trariam flores e me olhariam como homem digno. E falo isso porque a morte traz dignidade junto das desgraças: "Oh, puxa, André foi um homem e tanto!"; "Ah, que falta nos fará o Papa!" e por aí vai. A morte, por assim dizer, banaliza o coração pulsante e ri de qualquer um que ouse desafiá-la. Mas também traz boas coisas, apesar de meu limite há séculos já ter ido para o espaço e não ter como resgatá-lo dessa órbita inalcançável.
Agora percebo como é fugaz a nossa importância. Um tiro seco em peito aberto que me abriu os olhos para a concretude desconjuntada do mundo. Estar aqui ou deixar meu corpo desfalecer feito quebra-cabeça é uma ambigüidade abusada. Estando presente, já era pura ausência e - preto no branco - minha ausência não era notada. Grande coisa essa morbidez sádica. De toda maneira, tinha de estar lá, sempre postado como bom homem.
Eu realmente não sei o que devo fazer. Era, segundo minha lei, para tudo estar em seu devido lugar, pois, assim, a hesitação de deixar esse espaço e essas verdades não viria à tona. A certeza de criar e destruir é o que move os homens; e me move também. Ter a decência de me fazer como for - quadrado, retângulo ou linha - e, se insatisfeito estiver, botar-me em qualquer saco plástico e recomeçar até que alguém recicle: isso é viver com as chances e os azares. Contudo, essa prática é pouco corrente entre os meus e o fato é que lixo não retorna para a superfície; sedimenta e morre enviesado em seus próprios percalços até sumir; quando some. Mas não dá. Ser finito e irrecuperável é o humano. E eu, sem minha bússola, não sou nada mais que um itinerante. Minha dificuldade, para fins de comprovação, é ser comum e alimentar essa colônia mal sucedida de formiguinhas bem adestradas. Minha indigestão começa ao respirar o produto do trabalho alheio e ter a quem fazer considerações; ter de agradecer de olhos baixos e respeitosos as enfermeiras mal pagas e os cuidadores preguiçosos até que seus egos fartos inflem e me espremam contra as paredes elásticas até que essas se arrebentem.
Pois vá, minha querida Anônima. Trabalhe, ganhe, doe, lute. Seu pó, para sua infelicidade, não terá essas etiquetas, mas asseguro-lhe que – se sair daqui com o sorriso estampado e o termo de alta - isso não a impedirá de ser pó. Um pó de gente, que não fala nem se apresenta. Só descansa. Descansa suas conquistas e revive seus fracassos. Deixa-os borbulhando na memória dos teus e depois de digerido se torna vaguidão. Pois assim, fracasso por fracasso, tudo se molda como deve ser - infértil e fétido até que definha e os vermes da idéia vêm se alimentar. Roem cada camada e adentram pouco a pouco o arcabouço da intimidade. Te ferem e maculam até que não importe a vaidade para você tapar com as mãos o que te enrubesce as bochechas gordas. E assim é a dinâmica polvorosa que passa desapercebida nos nossos dias.
Disse-me um senhor daqui do hospital que o homem não foi feito para derrota. Tsc, quanta petulância. Talvez esse homem que pôs tanto significado numa frase de efeito não tenha enfrentado essas cadeiras dos infernos e a dor dessas agulhas filhas da puta que me picam de segundo em segundo. É assim o dia inteiro, meu bem, remédio atrás de remédio, e analgésicos que não acabam mais.
E é assim também que o dia termina: não há mais nada a se fazer. Eu não me suporto como antes, minha pele está horrível e minha voz já não disfarça as dores contidas. Os olhos marejados começam a gotejar no assoalho e, na minha pouca roupa, já vejo meus ossos cutucando a costura velha a ponto de rasgarem-lhe aos pedaços. E enquanto isso, tenho de ficar de olhos fechados, porque o trem passa rápido e ruidoso acima de nós. Imagino daqui de longe uns meninos olhando maravihados pela janela, uns adultos dormindo um sono perturbado. Sacoleiros, escritores e desempregados disputando um espaço na estação. Roqueiros de bermuda, com camisetas suadas, concorrem a prioridade com grávidas que estão a um passo de explodir em quem estiver por perto. Jornais populistas resumem o fim de semana na segunda-feira de futebol e menininhas vaidosas retocam o batom vermelho em lábios ressecados. Suas unhas, mal feitas; o chão, podre e imundo; e o ar, cianótico feito só, me sufocando e instilando veneno. Todos juntos para me compor estatelado nesse leito fedido. Os hospitais, sem dúvidas, são moradas provisórias daqueles cujo destino é o inferno; como que um aperitivo de toda a podridão e os excessos sulfurosos que lá se encontram. Os bons homens, esses de vida exemplar e conduta impecável, certamente morreram sós em camas aquecidas ou nos braços e afagos das esposas - foram felizes para o ‘céu’.
Acontece que aqui é ordem atrás de ordem: "Feche a porta, não tente entrar." Acelere de novo a maca: lá vamos nós. A claridade e as ferragens entrecortando o silêncio fazem a trilha sonora. Isso aqui nunca foi santuário de coisa alguma. E de novo: "Feche a porta; não tente sair, senhor. Na próxima estação tem cabos e fios de alta tensão. Será um instante breve: um choque. Se acabou sua viagem: fique atrás da linha amarela ou dentro do saco preto. Lá atrás."
Dê seu adeus e, se não tiver, dê a partida e lá vamos nós outra vez.
Já me cansei de mandar cartas à prefeitura para desviar a linha férrea que passa aqui atrás da minha ala de internação. Se não chegam até o gabinete do todo-poderoso, terei de ficar reclamando contigo por meio de quinze parágrafos e tal.
Tenho que dormir agora por causa do jejum restrito dos exames de amanhã. Tomara que sirvam aquelas bisnagas na hora do lanche porque suspeito que a sopa esteja estragada desde o final de semana. Se cuida e até sexta-feira.
Com amor, de seu eterno André.
A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog http://porleonardo.blogspot.com/.
terça-feira, janeiro 12, 2010
Título desinencial.
Dói-me o esquecimento de bons títulos, - clássicos, naturais, fascinantes - logo eu, o detentor (e ostentador) de belas palavras de ênfase estética e demais atributos de estilo, por ora tão inúteis, tão impotentes a um título ! Um mero título ! Mas falta não mais me faz, pois agora agradeço ao esforço relutante daquela senhora de crespo e acinzentado pêlo, a qual suou romanticamente para fazer reverberar a sintaxe em meu âmago. Se não me falha a memória, seu passo primário foi simples, depois deu-se composto até atingir o desinencial - "ora essa, mas ele não se anuncia como os anteriores!". A lógica é necessária, pálido e desafortunado leitor, e quero que a saque deste depósito de virtudes e a empunhe por ligeiro instante, já que hei de dar partida ao monólogo enfadonho a que submeto sua triste, e talvez enérgica, alma.
Talvez deteste superestimação, ou mesmo o caráter volátil de meu estado cognitivo, ou tema a ti mesmo, desafiador maldito de meu dia-a-dia, e não mais me sinta confortável dentro deste léxico caótico. Mas o que testemunho sem denotações maiores é que torna escasso o pouco fluido que me resta, destrói minha já degenerada consciência, tão pura e hoje tão contaminada pelo conjunto mundano de práticas, diferentes até de minha caneta virtual, é claro, maculadas de ódio e ferrugem.
sexta-feira, outubro 02, 2009
Antípoda do dia é o choro.
quarta-feira, agosto 05, 2009
Quando se esvai o provisório.
Atraiu-me a estrada estética da melancolia, adornada por belíssimos e característicos prantos vocalizados, máscaras infelizes, centelhas de compaixão e compreensão; era apropriada, ainda, por um viajante imóvel, limitado a observar a dimensão desprezível do trecho tortuoso em que se encontrava, e a cortejar o medo e a loucura em um único ato. Assim estava Nostalgia, com pouca bagagem e ânimo, apenas com a simples tarefa de entregar-se ao dono do local dominante, o Conde Melancólico, autor de imposições, controvérsias e ilusões, capaz de desintegrar relações e manipular seres de emoções.
Ali se destacava uma constante reação. Esta um pouco irônica e demasiadamente evitável, pois não significava um simples fado ao esquecimento, mas a perda completa do que me transportava ao prazer psicológico do retorno à origem, à essência, ao primitivo. Não pude conter as frias lágrimas que se apresentavam aos olhos, e tampouco me dar ao luxo de encontrar a alegria em algum exemplar humano dotado de tal; então, para que não dissimulasse o horror que se mostrava naquele som um dia tão belo, tão diário, tão gentil, deixei uma passageira compôr minha locomotiva de azar e amargura: a Srta. Ira. Evidentemente, não estava equivocado com a aparente simpatia da visitante, e logo senti-me confortavelmente feliz ao seu lado, servindo-a com minha hospitalidade e segredos imensuráveis.
Nem tão logo anoitecia, e percebi o fim da bela metáfora eufemizada. Ira foi capaz de trair-me em seu cíclico procedimento de perversão, e nada mais construí, desde então, até encontrar uma antiga leitora de tolices, que, por desamor, veio contar-me a boa nova: 'gosto de breguices em acúmulo'.
Há quem mencione a conveniência destas sucessões, e há quem se prenda ao enredo que propus ao título inconsistente. Cabe à crítica do leitor apontar o que lhe é mais lucrativo e agradável.