domingo, dezembro 05, 2010

O átimo da palavra.




Para Lílian, com amor.



A exemplo de todos os anos que percorreram aquela infância alegre e ociosa, o mês de setembro daquele começava com uma tímida trovoada e encharcava a madrugada inesperadamente, como se enganasse os vespasianenses céticos em seus leitos de paz imperturbável. A rua, ou alameda, não importa, era coberta de pedras tão irregulares que ao final do morro sarapintado a água passava rápido e seguia todas as possíveis direções até encontrar-se com o asfalto impenetrável da rua de baixo; daí, dilúvio particular protagonizado pela rebelde primavera que trocava borboletas e flores de toda variedade por um capricho infantil de atmosfera regida pelo semblante enrugado de nuvens carregadas, formava-se um rio que negava todos os compromissos aos moradores das redondezas.


Era já sem tempo, madrugada de uma quarta-feira, eu me encontrava na porta de casa anormalmente molhado aguardando que o excesso de água deixasse meu corpo macilento para não comprometer meus planos de preservar o sono de Lílian. Afinal, no momento em que tentava armar o guarda-chuva defronte ao bar a fim de me proteger do temporal, má sorte descomunal, ele se desmontou em dezesseis partes, denunciando o sujeito que me vendera-o com o argumento de ser inquebrantável.


Impaciente com minha performance de embriaguez embaraçosa, soluçando alto, não esperei para me secar e meti a mão nos bolsos fundos do paletó verde musgo que ganhei quando fiz anos. Por efeito do álcool, demorei cerca de quinze minutos até concluir que o molho de chaves que procurava, na verdade, jazia denso no compartimento interno do casaco, e mais alguns para identificar aquela que me permitiria entrar sem dificuldades. Afundei a escolhida com enorme cuidado, contornando mentalmente as formas irregulares da peça à medida em que penetrava a fechadura ainda pertencente aos antigos moradores; vi-me ainda cômica e involuntariamente rangendo os dentes como resposta à tensão que a noite me trazia naquelas circunstâncias - sentia medo. A porta, pesada e ruidosa por ser madeira nobre, exigia esforço herculano para que se abrisse sem que uma orquestra mecânica exibisse seu mais desagradável concerto de tambores; mas reuni forças e forcei-a, esperando encontrar, ao fim do corredor, uma escuridão nauseante... Mal sucedido na dedução, a meia luz, distingui o abajur da sala como guia de minha jornada até a desfocada cozinha. Antes, descansei minha maleta de couro surrado sobre o móvel de madeira envelhecida que ela ganhara de seu padrinho de casamento - o Tio Ronaldo; e, entre distraído e torpe, quando me atirei à geladeira, ouvi sapecas notas de uma oitava agudíssima do piano.


Julguei ter sido imaginação zombeteira de quando se bebe demais e pouco se atém à realidade, porém eu era desses trogloditas controlados, que mesmo após um, dois, três porres sabe das tolices que fez, enrubesce a face por mero pudor e afunda os olhos sonolentos no travesseiro de penas que ainda volatiliza a bebida barata. De onde me sentei para mordiscar as bordas do sanduíche, já preparado na manhã anterior por ela, divisei metade de seu pezinho marcando um tempo invisível, inaudível, como se se apresentasse num sarau da escola.

__ Li, já retornei da rua. Seu sanduíche está magnífico ! - ela estava postada no banco do piano da sala de estar, e minha voz saiu entrecortada pelos soluços gagos, os quais me arrancaram um palavrão baixinho.


Esperei que após meu chamado afetuoso, inadvertido hábito de instrumentista, ela suspendesse o sobe e desce incorruptível dos pés; mas não o fez. Ainda mirava com atenção suas unhas recortadas e róseas, feitas com tanto esmero que pareciam desmentir o orgulho que ela tinha de dizer que jamais tinha ido a uma manicure ou qualquer ocupação com esse fim. Ah, como era invejável a alvidez daqueles pés que eu tanto adorava cobrir de beijinhos nas minhas tardes vagas de televisão! Recordei rapidamente do quanto ela gargalhava como criança, provocando-me para repetir o gracejo e deleitar de sua feminilidade adolescente e irresponsável. Contudo minha esposa nem se moveu para conferir se seus desejos haviam sido convertidos em sonhos: não me ouvira. Abandonei minha refeição na mesa do café e me lancei pelos estratos da casa, avançando absolutamente assustado; nos vértices do meu corpo uma irritação fórmica me dominava sobremaneira e minha aproximação se deu tão silenciosamente que podia ouvir retumbar meu coração embebido em adrenalina. Quando alcancei suas costas eretas, como tanto insistiu para que ficassem Giovani, o professor que aparecia às terças, quintas e sextas -quando me ausentava para o trabalho -, a camisola de algodão fino transparecia sua pele nua sem que uma das alças se apoiasse nos ombros; atalhei a distância e, enfim, exprimi minha veleidade contida por tanto tempo: "Toque, minha virtuose, agora. Serei eu seu avaliador."


Seus punhos lançaram-se sobre o marfim escurecido violentamente, e uma melodia desorientada se seguiu conforme a dança dos esguios dedos conduzia. Inclinei-me lentamente até a base de seu pescoço descoberto, soprando-o e encerando-o de tão perto que pude ver os ralos pelinhos eriçarem por um prazer tão oculto e tão fisiológico que não me dei conta do sono gozado por ela. Seu corpo contorcia-se de modo selvagem criando uma atmosfera de êxtase ao nosso redor; os lábios se retraíam e trocavam-se com os dentes num ciclo harmônico e magnético. Beijava seu pescoço com tamanho ardor sem sequer fitar seus olhos que sabia estarem cerrados. Mas, mágica de fêmea indomada, já envolvido em seu encantamento, não me reservei em balbuciar palavras belas alternando com mordidas ao pé de sua orelha.


Pensei que ela já havia despertado daquele sono intranquilo que ditei quando da minha chegada, pois, em meio às minhas investidas, seu ritmo da respiração acelerava exponencialmente; um sussurro aéreo saia de vez em outra de seus lábios secos. Tinha certeza de que ela me chamava, fazendo voz chorosa, como uma criança mimada a pedir por colo. Ela me chamava desesperadamente. Eu sabia. Em resposta, aproximei meu ouvido de sua bochecha esquerda imaculada dos adornos que ela aplicaria quando tivesse de cuidar das tarefas domésticas e distingui o que ela dizia.


__ Giovani... Giovani... meu...


Era já sem tempo, manhã de uma quinta-feira, lembrei de que haverá lição de piano. Mas eu não poderei assistir porque preciso trabalhar.