terça-feira, maio 01, 2012

Torres em desatino.



Deitei só por 56 anos. Qual fosse o meu esforço ou minha dedicação, nem puta, nem dama, nem bicha, nem homem aceitava meu dinheiro. Se ostentasse meus carinhos e meus luxos - que não eram poucos em vista da condição das pessoas da cidade - essas regalias eram moeda morta para os “negócios da vida” e não valia a pena declará-los assim, sem ter uma oferta maior que cobrisse as propriedades materiais de um abonado. Mesmo que apenas minha nítida invalidez de mil rugas e sobras de pele explicasse o insucesso na caça pelo sexo, confesso-lhe que nem quando jovem, à aurora de meus dias, quando era nada mais que um poço de vitalidade e hormônios, fui bem sucedido na odisséia que é acordar sob a luz dos cinematográficos raios de sol perfurando e queimando quatro pernas, quatro braços e duas caras saciadas de prazer e humores. Ah, o hedonismo hollywoodiano ! Quisera eu sentar-me numa daquelas cadeiras de diretor e fazer das mil e uma traquinagens da baixeza cênica uma só obra de arte ! Naquelas colossais telas tudo é tão natural, tão escorregadio e próximo de nós ! Mas aqui no "carne e osso" não, o universo tem de ser maquiado demais para ser apresentado ao público. E compreendo que hoje faz-se isso não para causar espanto ou traumas às nossas frágeis fantasias, mas pelo fato de a menor das concretudes ou o mais sutil aperitivo da realidade serem capazes de arrebatar otimismo e fé do mais resignado e leal apóstolo.


Mas nem tudo são flores. E se pudesse, caro Simão, interromperia aqui minha catarse, pois ao fim desse registro endereçado a ti, que fora por tantos anos o meu único apoio, não desejo que seja dito das minhas palavras nada mais que uma simples anedota sexual de um fracassado amoroso sem esposa, filhos, família ou apego. Saiba, que se submeti teus olhos à humilhação da minha face é porque confio minha degeneração aos teus julgamentos; e que também delego ao teu aclamado e inabalável caráter as sentenças que mereço e você bem sabe. E faço isso porque na multidão dos meus não há esclarecimento ou sensibilidade para entender-me. Aqui sou apenas entulho, e por vezes um entulho comparado a animais da mais repugnante estirpe. Sou porco para as crianças, hiena para os companheiros de trabalho, pombo e gambá aos transeuntes. E os gambás, apesar de tudo, são como eu: injustiçados pela mãe-natureza, que assina suas perversões com o título de obra de arte divina e acha que ninguém vai se incomodar com isso. 


Para ser-lhe sincero, meu amigo, o que busco expondo-me além do que reflete a carne  é uma resposta cabível para aquele que desfruta da solidão como ela realmente gosta de se manifestar; aquela secura profunda das vísceras, o coração alto latejante e o sangue borbulhando sem ter vazão. Aquela que traz à tona os detalhes esquecidos e faz de nós - hiperativos ou controlados - uma só morada para o antagonismo de sensações e alvo para o bombardeio ininterrupto das tv's a cabo. A qualquer momento me verei comprando pilhas e pilhas de aparelhos de musculação, pagando seiscentas prestações e torcendo para que o moço do cartão de crédito não me leve a uma dessas delegacias de devedores compulsivos e me tome até as calças...


É que muito cedo, ainda na inércia de minha identidade mental, acabrunhei-me sem muito notar. Amenizei minha existência como se a tivesse programado a transcorrer de modo econômico, sem exigir de mim energia, paciência ou perícia para guiá-la; pra que não precisasse tomar nas mãos as rédeas do livre arbítrio e ter de dominar feras e acalmar as aflorações que produzem o êxtase e o deslumbramento da vida. Aprendi com a preguiça dos meus dias a idolatrar a simplicidade e a ser feliz com ela; aprendi a lambuzar-me de sabores neutros e me salgar num tempero sem muito gosto; nem azedo, nem salgado, nem ácido, nem abrasivo.


No início era fabuloso. Diferente de meus colegas de classe - conflitantes, filosóficos e errantes - eu não sofria abalos. Era mudo, evitava perspectivas atraentes e pensava pouco além da minha próxima refeição. O objetivo era que minha estada nesse mundico e corpo fátuos não servisse de mártir como as de Petersen e Huxley o fizeram a meia dúzia de gerações. Diferente deles eu não testava meus limites ou a minha natureza; tampouco questionava meus encargos e nunca aguardava um tanto mais dessa chance de aqui estar. Sendo ainda mais prático, minha ambição era como viver descendo uma ladeira, já que “pra baixo todo santo devia ajudar” e comigo não havia de ser diferente; e não era mesmo.


Ironicamente, eu observava a todos um tanto apavorado. Me perturbava imaginar-me divagando como eles sobre meu papel no berço do mundo e todos os anais que a filosofia moderna reservava para a existência de um homem. O que quero dizer é que não me sobrava tempo para compreender a razão, apenas para aceitar e executar, como um funcionário de uma fábrica qualquer daqui do centro da cidade. Se você ousa parar para refletir demais sobre o que está fazendo, três, quatro parafusos se perdem e você prejudica toda a linha de produção - quando não é demitido e vai viver de migalhas nos subúrbios asquerosos de Madalena feito Sandro e Valter que se atracaram por causa de mulher e hoje estão vendendo desentupidor de fogão e cortadores de unha no centro pra pagar o almoço. E é exatamente isso o que não quero que aconteça: só a hipótese de prejudicar os demais com uma egoísta cabeça pensante, que mais parece possuir vida própria, já me faz passar mal e embrulha o estômago.


E quando digo que não entendo tais ilustres masoquistas é porque neles não vejo lógica alguma. Espremem-se e castigam-se feito laranjas para retirar a última gota do caldo que lhes resta. E propositalmente brincam com a dor, dançam sobre a navalha do desconhecido e da sanidade. Se pendem para um lado e caem, não retornam jamais: invalidam-se. E triste é o fim de um pensador; ser de coragem cuja função é degustar, amar e descrever os venenos mais sutis que nem química ou fantasia sabem formular. São viajantes que vagam na completa escuridão e levam na bagagem uma frágil esperança de achar um ligeiro feixe de luz. Encaram feras por esporte e põem suas vidas em risco por um ideal que nem mesmo sabem se existe para obter algum resultado.


A cada reflexão, um motivo a menos para ficar vivo lhes é apresentado. A cada novo postulado, uma aproximação do acaso da luz e do azar da boa saúde. Ah, se me pertencessem as horas de ócio desses intelectualóides ! Eu investiria melhor em festas e sonos pesados que os envergonharia por terem desperdiçado tanta vida em um labirinto sabidamente sem saída. Hoje, depois de tanto tempo, eu creio que tais criaturas se dispõem a entrar nele apenas pelo desafio que reside nessa cretinice, porque buscar saber de si e das tuas faculdades só culmina numa morte lenta e dolorosa: em sofrimento.


Mas em meio a essa jogatina de azar que é a vida dessas pessoas, vi, que sem qualquer exceção, todos têm amor absoluto. Não falo de amor com letra maiúscula e aquela interpretação rica de parábolas e boas intenções dos livros infantis e da bíblia sagrada (que eles me perdoem). Quero dizer que a mesma paixão que sustentava antes a problemática vida daqueles metidos da metafísica, palestrantes de auto-exploração estratégica, seminários de filosofia socrática, hermenêutica e poética se modificou em uma paixão fulminante pelo próprio ser. Que a mesma paixão com que buscavam suas mais escabrosas justificativas e enfrentavam seus monstros mais temíveis tornou-se uma necessidade de completude refletida em seu semelhante. O "outro" era, então, a manifestação, a resposta objetiva dos questionamentos de um. E a partilha desse outro era a forma mais tenaz de gerar sua resolução.


E aí se entregavam às putas, às damas, às bichas e aos homens, que de braços abertos recebiam com candura os desvairados para acertar-lhes as idéias e sorver deles um pouco dos desatinos e se embebedar das virtudes da confusão e da loucura que jamais haviam experimentado. Descubro, depois de velho, que esse era o maior dos luxos. Esse era o começo da minha compreensão da crueza das existências; que não bastava acumular e não se entregar à correnteza nobre do deslumbramento, mas precisava me municiar de desequilíbrios e perambular pelas mentes e pelos corpos.


Eu agora deixo de ser um Torres e passo a ser Ana, Valentina, Samuel e Jasmim.  Agora eu passo a ser muitos num mesmo percurso, buscando reencontrar-me com o prazer da vida e do amor próprio para receber o que hoje me completará nas mal vistas noites de Quito e das casas de Madame Desiré. Agora me declaro um cidadão do mundo, despossado de meu auto-controle. Nu.