segunda-feira, outubro 22, 2018

Minh'alma e os suspiros de Carola



Éramos eu, ela e deus naquele monstro de 36 cômodos entre quartos, salas de estar e alcovas sem muita utilidade. Se não fosse para sustentar as obscenidades de meus 23 mal selecionados empregados (divididos entre motoristas, limpadeiras e técnicos em ócio), eu destramaria aquelas saletas todas e faria de todas elas o santuário para Carola, meu sol. Um só quarto, enfeitado com quadros oitocentistas e fragrâncias a gosto de seu bem estar.

Do lado de fora, vejo mil metros quadrados de uma grama desbotada que custou-me os olhos  infectarem-se por um negrume fúngico horrendo. Fiquei sabendo após algum tempo, através de um veterinário amigo da família, que os vira-latas do jardineiro levaram tal praga para minhas dependências e fizeram “esmeralda” virar “carvão". Era como na mente de Carola, quando andaram os pensamentos vindos de estranhas e desafortunadas companhias que, mal sabia ela, desviavam-na e reproduziam suas mágoas apenas com uma roupagem mais bonita.  Se visse os tais fungos ela ia torcer-se de gastura e dar quatro voltas em seu nariz arrebitado tamanho o desgosto. “Simão, quantas vezes eu falei que não quero essas pestes na minha propriedade?”, eu não sabia se o nome era esse mas prosseguia com o cenho franzido. “Mas seu César eles são coitados demais, ora ora." Talvez fosse mesmo Simão, ou ele não queria me corrigir pra não ser despedido precocemente, pois eu preservava a duras penas uma falsa fama de patrão maquiavélico para evitar as pilhagens dos empregados de má índole. Eram pequenas taças, óleos e até grampos de tamanha insignificância que até um mendigo recusaria sem avaliar. Talvez trocassem por cachaça ou só colocassem na estante pra contar vantagem sobre o marido que queimava as sobrancelhas nos fornos das metalúrgicas, vai saber.

Assim eu perdia as estribeiras; de toda forma iria borrifar um dos meus remedinhos mortais o quanto antes, pois não queria fazer feio na cerimônia com aquela casa cheirando a mofo.
Na parte leste do meu castelo estou eu, regando com aplicação meus dentes-de-leão recém-transplantados da sacada de uma amiga. Não estavam lá essa maravilha, mas progrediam com os bons produtos e húmus que os nutria. Eram de um amarelo vibrante que me doía o coração pensar que em poucas semanas seriam devorados pelas tantas lagartinhas que ali se aninhariam e tão logo empupariam para dar luz ao meu aguardado presente. Pouco a pouco cada asinha delicada iria cobrir o vestido de Carola em sua cinturinha de moça, escondendo as discretas anáguas e os sapatos que mandei trazerem da magasin mais elegante de Paris.

Já me via titubear um pouco, e a cada passo de Carola em minha direção meu estômago se encolheria de nervoso e armaria uma explosão de choro misturado em riso. Foram difíceis nossos tempos, atribulados e complexos, e por isso uma emoção de alívio e admiração crescia dia após dia.

                                                                                          ***

Lembro-me como se fosse ontem. Os pais de Carola deixaram-na bem cedo. Não por doença, como deves pensar, ou alguma fatalidade dessas difíceis de prever. Deixaram-na, por esquecimento e descuido, à própria sorte. Eu, inocentemente, não sabia muito bem como aquilo iria estilhaçar aos miúdos uma vidraça tão linda. De meu lado, restava-me dedicar a ela minhas melhores histórias e sonhos tranquilos. Fazia-lhe a cama para aquecer seus pés e a enrolava em meus longos braços para que se sentisse, enfim, em casa. Chamava-lhe passarinho quando, sentada em meu colo, ela se aninhava para um cochilo; e, discretamente, tentava como um menestrel lhe distrair de dores e dilemas. Eram canções difíceis de compreender, confesso, mas nelas havia versos que acredito serem impossíveis de recitar sem que agora uma lágrima role a face desavisada. Lembro-me da minha indignação e da minha luta com seus pais na varanda de minha casa, a tentar alertá-los dos erros e dos perigos desse gesto – talvez alertando a mim mesmo do mal que faziam a ela. Carola era já nesse tempo minha preciosidade, minha cor, e mesmo na minha meninice eu confrontei com alguma maturidade (escassa!) o que eu mal podia compreender. Os dois me olharam torto, julgavam-me petulante, talvez esperando que eu fosse um resignado e tolo homem de sorrisos. Mas não era.

As engrenagens do tempo rolaram pouco a pouco apesar das rusgas. E, de tão empenhada, aquela mocinha virtuosa não se deixou derrubar. Juntou os caquinhos e foi assim correndo atrás de pequenos sonhos. Sabia equilibrar pratos e rodar no eixo. Os dedos dos pés já calejados e as ataduras firmes mantinham-na ali, de pé. Com algumas economias conseguiu finalmente se dedicar às letras. Desejava ser professora, ensinar como ninguém podia fazê-lo. De tão prodigiosa, aos seus pares causava certa inveja, como se ofuscasse sem querer os privilégios de tantos tolos a competir atenção.
Os ventos sopravam distintos depois de seu início com as didáticas superiores. Tão logo ia progredindo com os estudos, conseguiu uma chance de mostrar seu valor em um ginásio da capital. Era um trabalho simples, como lhe prometeram no começo, mas que logo apareceram alguns nós para repetir os roteiros desleais que eu também havia vivenciado em minhas empreitadas por dinheiro. Eram novos ataques à vidraça, mesmo que discretos. Já nesse período havia deixado para trás algumas belezas, recrudescendo na dança e na caridade, talvez por não conseguir se olhar e se achar nessa grande e temerosa bagunça de sentimentos.

Ainda que fosse difícil ela resistia. Afinal, derrotas eram coisas muito raras, mesmo que ela insistisse em dizer que pouco caminhara até ali. Curioso isso, pois eu via uma jornada diferente, árdua sim, porém repleta de sucessos e de confrontações tão complexas quanto uma partida profissional de xadrez. Ela era mais míope que eu nesse tempo, e talvez por isso tenha se perdido um pouco nessa leitura. Logo ela, tão boa com os livros!

A miopia levou-a a caminhos um pouco espinhosos e que sacrificaram minhas canções e meu pouco espaço. Ainda que de ballet eu entendesse muito pouco, tentava me equilibrar na habilidade que tinha de esperar por dias melhores, sabendo respeitar suas estranhas, porém legítimas escolhas e danças. No fundo, me entristeci, posto que não podia dar as respostas prontas ou escolher por ela, por mais angustiante que fosse assistir a tudo por uma crua e dolorosa lente. E, nessa dança, a música tocava alta, mas sem compasso. Eu fazia o possível para acompanhar, mas não era fácil me fazer diapasão ao mesmo tempo em que os dias engoliam as virtudes da minha pequena. Eu rodava sem parar, tentando me manter no enquadramento. Como as marés, indo e vindo.

Foi quando meu pouco recurso me levou a ter ideias mais criativas. Lidar com a escassez ainda era uma vantagem nos meus dias. Aliás, percebo que a abundância e a opulência, as cartas marcadas, as bajulações e refeições artificiais só provam o quão vazio pode ser um desejo e tão frágil uma verdade. História sem poesia, como que uma fórmula copiada em outros tantos roteiros e amores, é mera distração. São como receitas obtidas em um jornal de grande circulação, um manual sintético e frio que ela talvez tenha se perdido por decerto não tê-los lido com os belos óculos que vira e mexe perdia.

Meu primeiro presente fora um livro, que dizia a ela sobre amor. Que cruel distinção.

À parte essa constatação, lembro-me como travei uma batalha incessante para tirá-la daquele caos. Eu corria contra o tempo atrás de um sobrado e uma carroça que nos levasse aos pequenos paraísos que circundavam a capital. Era uma das poucas ambições que eu tinha além de tentar conhecer o mundo e levar meu pouco mas valioso saber para além das searas da nobreza. Eu sonhava desde o primeiro dia em vê-la da janela da sala preparar um café preto sem açúcar e reclamar da falta do requeijão. Num breve sorriso eu sairia porta afora no intento de achar a mercearia aberta, para daí retornar e pegá-la em um profundo cochilo matinal no velho sofá.

Talvez em um golpe de sorte e de certa insistência, consegui um trabalho numa venda próxima da casa de minha mãe. Pagavam um salário honesto que logo cuidei de converter num cantinho adorável com uma linda vista e um quintal. Escolhi quase instantaneamente, ao julgar perfeito para Carola ali descansar suas tantas cicatrizes e pôr as ideias em ordem. Se quisesse dançar, pintar, correr, morar ou amar, havia espaço. Levei-a uma primeira vez, para que ela sentisse certa inspiração, segurança, que confiasse em cada centímetro quadrado daquele humilde porém vivo sossego. A casa tinha um coração que batia rápida e intensamente toda vez que ela pisava aquele pezinho pálido de sabonete nos tacos quentes que mandei colocarem. De começo ela olhou com certa desconfiança, tateou com cautela feito um cervo na campina. Mas depois se acostumou ao cantinho, as antigas e novas histórias chegando aos ouvidos, tornando-se uma música calma, baixa e familiar. Por vezes, às fantasias, via-a se esticando no colchão, liberando as tensões de um dia cansativo de trabalho, mas logo me jogando um sorriso e correndo até o banheiro para um xixi, um arrepio e um banho quente. Digo arrepio, pois era como sempre acontecia, e eu adorava olhá-la, sem graça, se envergonhando por isso. Também a sentia tomando minhas roupas e vestindo-as como pijamas. Os elásticos acompanhando suas lindas curvas e, de súbito, peça a peça, nenhuma se emprestaria a mim novamente. Até mesmo as roupas a haviam escolhido, tamanho o propósito daquele fragmento de tempo. E ela ainda me perguntaria o porquê de minhas pupilas estarem tão grandes.

Carola teve roubado de si certo brilho. E por isso se meteu em redemoinhos de pensamentos e sabotagens mil. Era um resultado de uma vidraça que eu não conseguia proteger por inteiro, mas que agora poderia tirar da vista de tantos vizinhos e cruéis almas para tratar com paciência e cuidado. Ela pouco sabia dessa vontade, julgava-me louco. Mas eu tinha nos dedos cada mínimo passo, cada mínimo gesto que arrancaria dela um sorriso sem pesares e sem dúvidas. Não era um novo capítulo que precisávamos, era uma música distinta e mais serena. Longe das coisas comuns e do cotidiano vazio que tanto a consumia.

                                                                                        ***

Agora, em nosso castelo, tento retomar a concentração para regar as plantas e preparar o humilde presente. Decidi fazer seu vestido porque faltava o ofício da rendeira às vésperas e porque sabia que nenhuma saberia fazer o que eu pretendia até então. Pode parecer cruel a ideia de borboletas compondo uma veste, mas aquela frágil vidraça precisava de um reparo à altura. Nem mesmo ela percebia seus próprios passos e os dava meio sem olhar. Por vezes jogando ao vento algumas luzes que a mantinham acesa. As pequenas asinhas talvez lhe contassem uma história de metamorfose, de cura. Estágios que passam, com o nascimento de uma nova criatura. Era claro que ela se perdera desde o dia em que lhe faltou alguns pilares, e buscou em outros cantos essa falta. As asas – e ela sabia disso – não eram para voar, mas para rapidamente revisitar seus jardins, olhar para si  e testemunhar sua própria força, seu valor e sua transformação. Asas de borboleta, escamas que acumulam histórias e dedicação, que a escondem, camuflam do mal que o mundo faz e das rotas maquiadas de belezas que certamente ali não estão. Seriam os dias de dezembro a trazerem-lhe a paz numa arriscada viagem para o mar, todos lhe abraçando as dores e asas aos poucos sendo dispensadas, pois ela haveria de ter superado cada dor e cada tristeza. Não seria em vão, restava saber quando notaria.

Distraída, ela entrou pela porta do quarto, na direção da sacada onde eu me debruçava sobre as plantas. As roupas ainda eram as minhas, um livro na mão cujo título falava exatamente sobre consertar algo. Com um sorriso tímido, puxei-a pelas mãos e, à beira da lareira, contei histórias novas e sobre como seria amanhã: uma caminhada pela pequena mata, um esfumaçado gato a nos perseguir e um suspiro alto de calma e amores. Mirei nela as tais lentes, um desenho lindo de um tempo em que ela carregava menos medo e havia menos ruído. Hoje são muitas pessoas, muito barulho. Eu sabia as causas e tinha entre os dedos as mais belas formas de um tempo feliz, agora cada vez mais iminente. Em noites febris cheguei a amaldiçoar quem lhe fizera tanto mal, mas hoje em mim somente a ternura me move em sua direção.

Carola olhou-me nos olhos e viu minha alma, nua, exposta, verdadeira. E acreditou em cada palavra. Os lírios desabrochavam perto dali junto com uma esperança a cantar nossa história. Seríamos novas e lindas vidas. Vê?

quinta-feira, outubro 18, 2018

Sobre lírios inomináveis e covardes fugas.



Um bom guisado de carne, batatas e cenouras cozidas no vapor. Era só o que serviria naquela noite. Era engraçado como o hábito de Carlos de beber enquanto cozinhava o atrapalhava tanto na dinâmica da cozinha. Os legumes estavam já um pouco passados, a carne ainda era uma incerteza e as batatas ainda mais. Era como uma corda bamba para um inexperiente bêbado. Ele sabia que o vinho que comprara bastaria para três ou quatro jantares opulentos, mas o atraso de Giselda o forçara - além de roer as unhas e se lançar no parapeito de sua sacada por algumas dezenas de vezes – a também beber além da conta e esvaziar a humilde adega que seu salário magro podia sustentar. Ele acumulou as recomendações dos entendidos do assunto e foi pouco a pouco se preparando pelos meses que se seguiram até que a jovem aceitasse, enfim, suas ininterruptas e entediantes súplicas. Ao se debruçar na sacada ele aproveitava para sentir o cheiro das ervas recém-regadas que sua mãe, tão solidária, havia levado como presente de aniversário. Eram ervas de toda sorte que ele ainda se atrapalhava para tentar usar em suas empreitadas ao fogão. O bom moço já estava pouco sóbrio, por vezes errando a porta do quarto para checar as horas no velho relógio que reformou - um presente de sua avó. Mas, ainda esperançoso, talvez o efeito do etanol lhe roubando um pouco a capacidade de distinguir certo e errado, provável e improvável, ele se divertia com as novas sensações que o visitavam naquela noite. Esperar era uma excitante e inexplicável infinidade de possíveis roteiros, os quais ele mal se segurava para descobrir. Cada porta cerrada era uma nova história, um fio de lã de um novelo múltiplo e perigoso, teias nas quais ele, voluntário, iria se prender. Livros e contos não lidos, esse era o exercício daquela noite. A descoberta.

Giselda, ao contrário, estava pedindo seu quinto Martini há alguns quilômetros dali, dando o "tempo das moças" para então cair no alçapão que - não podia mentir - lhe causava certos tremores de medo e excitação. Já havia dispensado alguns aventureiros que não se aguentavam em suas frustrações, cadeiras e copos cheios. Tão logo o lobo frontal se despedia dos desmiolados e estúpidos rapazes, eles se animavam para importuná-la. Era curioso como o pingue-pongue que Cortázar tão inocentemente descreveu na novela do cruzeiro sem capitão era terrivelmente mais bobo e fútil no mundo real. Eram vazias interpelações e os discursos só não causavam vômito porque desperdiçar um Martini feito com tanto esmero seria uma lástima. A vantagem de se embebedar no Blues era a boa amizade que mantinha com Jacques, o barman franco-brasileiro que a protegia de qualquer armadilha desse tipo. No entanto, aquele era o pior lugar no qual ela podia se arriscar numa noite densa e provocante. Estava longe da casa de Carlos e talvez os tostões do táxi já tivessem se transmutado paradoxalmente em álcool. Não era alquimia, era vontade de se perder um pouco.

Enquanto, distraída, Giselda dava voltas com a delicada taça nas mãos, evitando revirar a bolsa para constatar seu descuido com a conta, mal sabia que seu par colocava em prática o que havia treinado por toda a semana, testando a receita e aprimorando aquilo em que a boa vida não conseguiu lhe letrar, a culinária. Apesar de todo esse empenho, ela não estava realmente esperando um jantar. A descrença em relação a Carlos se dava principalmente pelo desajeitado modo como ele propôs aquele encontro, um erro de convidar sem convidar, apostando que a mera insinuação seria o bastante para atraí-la ao seu covil. Giselda, apesar de ter se aborrecido com os péssimos modos do homem, já havia passado por coisas piores - mesmo que ela não as classificasse assim. E, de alguma maneira habituada, disse um sim apressado, porém farto em curiosidade por ver que aquela criatura peculiar havia elaborado as circunstâncias perfeitas para que nada escapasse de seus atentos olhos de folha seca.

Colocou-se então de pé; e, consertando a barra do vestido preto de lustrosas e pequeninas contas, reuniu o dinheiro que tinha, dobrou-o sobre o balcão e deu uma piscadela para Jacques que, num movimento charmoso com a cabeça, entendeu logo sua despedida. Após um último e longo murmúrio, a moça deu um passo firme em direção à porta, decidida a terminar o que começara. No caminho até a saída os adornos do vestido acariciavam os ouvidos mais atentos. Era lindo e ao mesmo tempo intrigante aquele caminhar, como que destacado da realidade, flutuante até. Mesmo que munida de muita segurança, a moça ainda se lembrava dos momentos em que teve de se sujeitar a humilhantes esperas em frente a interfones e esquinas frias. Torcia para que não fosse assim. Sua esperança morava na ideia de que Carlos fora o primeiro a evitar o tosco protocolo e pôr as cartas todas na mesa, esquivando-se de uma refeição artificialmente deliciosa e tão maquiada quanto uma gueixa em seu primeiro e triste treinamento. Ela já teve de aturar tudo toscamente posto a mesa, com cores falsas e um conforto que contava uma história previsível. Se começava assim é porque iria se deteriorar em alguns dias e ela voltaria a ser apenas um pedaço de carne, ridicularizada em rodas de conversas e um trofeuzinho estúpido ao lado de alguém semelhante aos aventureiros de bares e festas sem importância que arrastam multidões. Já fora vítima dos jogos de impressionar... Isso a balançava de vez em quando, mas Carlos ainda era um fio de esperança naquela selva em que se propôs a caminhar. Ele havia dito que a esperaria com a mais zelosa pontualidade e que ela não iria se arrepender. E, por mais raro que isso fosse, acreditou, e tomou um táxi até onde o dinheiro dava.

Distantes dali os pensamentos do homem orbitavam o possível desapontamento de sua convidada ao perceber a falta do vinho. A comida, que, na melhor das hipóteses, seria pouco apetitosa, o preocupava na mesma medida. Como um soco o desespero lhe arrebatou e o fez procurar as chaves no bolso da camisa com algumas pancadas no peito. Precisava comprar mais vinho. Cada segundo longe de casa era a chance de Giselda chegar, e de também ir embora caso o interfone, sozinho, não a recebesse como ele gostaria. Via-se numa espécie de indecisão, uma sinuca angustiante e sem saída – teria ele de pagar a conta? O lugar mais próximo onde poderia repor as poucas garrafas da estante ficava a algumas quadras de sua casa, sem qualquer garantia de estar aberto, pois eram dias estranhos esses de crise. Apesar disso, precisava jogar com a roda da fortuna, uma decisão óbvia, já que a mera possibilidade desta noite existir já era uma evidência de que nem sempre tudo estaria sob controle. Era uma jogada de risco, de fato, mas sua vida fora monótona demais até então. Num golpe único reuniu a carteira, as chaves e o chapéu, abrindo a porta com a delicadeza de um gigante, a pressa lhe consumindo a sutileza. Descendo as escadas, – evitava o elevador sempre com defeito e malcheiroso – deparou-se com Ana, a vizinha dos gatos, fazendo estranhos ruídos para atrair um bichano que havia escapado. Um boa noite breve se seguiu sem resposta, e ele já não escutava mais o que se passava em torno de si. Os degraus pareciam mais estreitos, porém antes que fosse possível qualquer acidente ele já estava na calçada, mirando a direção do mercado. Inspirou forte pela última vez, atravessou a monótona rua que levava ao seu apartamento e rumou semi-cambaleante ao seu destino. As vielas e curvas do bairro ainda tinham alguma vida, cães ladravam a noite e outros bêbados os acompanhavam em cantorias tristes. Ele sentia certa vontade de compor o coral, talvez por acreditar que a moça não viria. Contudo sua curiosidade estava mais aguçada que o normal. Seus passos o apressavam a cada metro que cumpria naquela procissão, a embriaguez se despedindo aos poucos, levada pelas lufadas de ventos que irrompiam dos morros que cercavam o bairro de Santana.

Perto dali, Giselda contava as últimas moedas do táxi, agradecendo a gentileza do moço ao dar um desconto amigável. Precisaria caminhar pouco até que finalmente concluísse sua parte no trato. O salto ainda lhe fisgava um pouco os calcanhares, mas o álcool anestesiava ligeiramente o mau jeito das pernas, sobretudo agora que o Martini fazia sua cabeça e brincava com suas ideias. Acelerando o passo, avistou o mercado fechado, em cuja porta uma luz bruxuleante anunciava uma oferta qualquer que ela não podia decifrar. Seria vinho? Salivou um pouco ao lembrar-se do último Malbec que experimentou na companhia de sua amiga Julia, mas sabia que Carlos haveria de escolher algo próximo disso – haja vista que ele logo perguntou o que ela iria tomar. Serpenteou por algumas esquinas e julgou estar próxima da casa de seu anfitrião. Seus pensamentos desorganizados a obrigavam a ligar uma espécie de piloto automático, fato que a removeu parcialmente da realidade. Esse descuido foi o bastante para que numa curva - ou reta, mas ela precisava de uma justificativa para sentir menos culpa – um muro orgânico e não muito robusto a interrompeu na caminhada. Um rosto familiar se abriu na medida em que o chapéu coco descia para uma reverência estranha. A moça despertou do transe martínico e seus olhos pediram uma trégua. Apertou-os com pressa e viu a figura de Carlos, elegante e com uma fala nervosa que ela não compreendeu muito bem. Ele estava alegre, como sempre, um sorriso quase infantil. Ela sentiu certo prazer naquela presença tão familiar e amigável, ele era um abrigo. Conteve-se um pouco, mas os calcanhares cederam ao magnetismo daquela companhia. Sua cabeça acertou em cheio o ombro de Carlos, amortecida pelo delicioso sobretudo italiano do qual ele repetidamente reclamava não poder usar no intolerável inverno dos trópicos. Um tímido oi quebrou a tensão, ao mesmo tempo em que ele lamentava o mercado fechado e a falta de vinho. Giselda, numa espécie de sono e abraço, balbuciou algumas palavras inaudíveis, enquanto ele pedia a ela educadamente a permissão para em seus braços irem para casa, pois o jantar já esfriava e ele ia se sentir extremamente culpado pelo fracasso das duas únicas opções que ele reservou para aquela noite.

Ao adentrarem o prédio, os chamados de felino de Ana ainda ecoavam pelo hall e pelas escadas. Ela ainda tinha esperança de encontrar o sortudo gatinho que havia descoberto como se livrar daquela prisão – pobre senhora. Giselda estava rendida, o corpinho já mole, guiado pelos braços igualmente fracos de Carlos, que tirava forças do carinho e da sorte de tê-la ali para chegar até seu apartamento. Subindo as tortas escadas do prédio cinquentenário, já se podia sentir o cheiro da receita inundando o terceiro andar. Logo que abriu a porta o relógio badalou onze vezes anunciando o quase fim da noite. Também em onze passos Giselda se guiou pelo sonoro cuco e cambaleou na direção do quarto. Ao passar pela penumbra da cozinha a jovem elogiou de forma brincalhona o cheiro da comida. Passou reto, ignorando o olfato atraído pelo guisado, dando uma gargalhada maldosa que fez Carlos pensar que era o mais puro sarcasmo. Ele estava menos ferido com toda a circunstância. Os floreios do vinho e do jantar eram uma estúpida desculpa para encontrá-la, mas estava orgulhoso de ter conseguido ao mesmo terminar essa etapa. Claro que ele também havia ensaiado algumas coisas pra dizer, mas não sabia se ela ouviria com tanta atenção, dado o estado em que chegou. Antes que ele a espiasse no quarto, foi até as panelas para guarda-las e reunir o jogo de talheres que havia preparado conforme as dicas de sua mãe. Se alguém pudesse fotografar aquele cantinho perderia parcialmente o fôlego, tamanho o capricho e simetria da mesa, a composição dos quadros, livros (tinha muitos livros) e o cheiro doce que partia dos móveis, dos lençóis e da brisa vinda da janela de correr.

Ao passar pela porta do quarto, Carlos viu aquela criatura de pele alva se projetando pelo extenso colchão em um perfeito contraste com a falta de luz ambiente. As contas do vestido entoavam uma suave melodia conforme sua convidada se acomodava e puxava o cobertor para si. Era um momento tão único que ele jamais ousaria interromper para lhe oferecer qualquer ajuda. Fora dali, os chiados de Ana já haviam cessado e ele sabia que a noite terminava nesse instante. Antes de voltar sua atenção a Giselda, ele se perguntou se o pobre gatinho havia retornado ou achado melhor destino. Torcia pela felicidade dos pobres bichinhos que habitavam o prédio. Este devaneio durou pouco, até que teve a ideia de ir até o banheiro da suíte e se olhar no espelho, procurando qualquer fragilidade no tecido dos sonhos. Se de fato fosse, queria permanecer um pouco mais, deliciando-se da presença de sua amada.

Lembrou-se do ruidoso relógio e desligou-o sem pestanejar.  Ao atravessar o quarto, Carlos ia pisando com cautela no piso de tacos, torcendo para não despertar a moça. Chegando na beirada de sua cama, acomodou-se no extremo de seu colchão, evitando roubar de Giselda algum calor que fosse indelicado ou impróprio. O teto da casa parecia sugar a atmosfera, deixando o ar cada vez mais rarefeito, levando dele algum resquício de sobriedade.

Quase fechava os olhos quando Giselda, abruptamente, se virou na sua direção. Como que em um movimento de susto e tensão... Os lábios entreabertos e secos lançavam nele um hálito do que ele logo reconheceu serem as flores aromáticas de um bom dry Martini. Deixou-se levar pela onda inebriante da bebida enquanto se esforçava para separar dela o perfume que se impregnou no sobretudo que esqueceu de tirar. Em outras ocasiões ele se amaldiçoaria por tamanho descuido, mas um involuntário sorriso se abriu na sua face agora em chamas de tanto desejo. Ele sabia que tinha de saborear cada segundo, cada ciclo de respiração de sua companhia. Era claro como o dia que no primeiro raio de sol o lírio que comprara para adornar o quarto estaria já um pouco murcho. Mas seu maior receio era de que a essa altura ela já tivesse feito o bilhete e esquecido propositalmente seu xale sobre a escrivaninha. Um ciclo que iria se repetir, e que ele mal podia esperar pela próxima rodada. E adormeceu em um sono despreocupado.

segunda-feira, outubro 15, 2018

A secura do ar daqui.



Era mais uma daquelas longas viagens que papai adorava fazer para encontrar cachoeiras ao redor da cidade. Em minha cabeça de criança era curioso como aqueles prédios e chaminés que se levantavam a cada dia ainda permitiam que em algum cantinho relicto da metrópole ainda houvesse tímidas quedas d’água para algum divertimento dos tristes operários e moribundos. Enquanto papai acelerava e contava alto como investigou nosso destino, o ronco do motor do carro acusava certo cansaço, uma indisposição para seguir a estrada. Eu, agarrado a toda inocência e total desconhecimento da situação, ignorava qualquer possibilidade das coisas não acabarem bem. De minha parte, confiança absoluta em todo o saber de mecânica que papai exibia em um diploma de curso técnico dependurado na parede da sala. Mesmo que fora da moldura, ficava ali grudado por uma cola de eficácia duvidosa, certamente uma tentativa de roubar a pouca clientela de Vilson, o mecânico oficial do bairro. De toda forma, se ele não se preocupou com os ruídos estranhos, eu jamais me preocuparia também.

Ainda que eu estivesse errado, verdade era que minha mãe creditava pouco ou quase nada as competências de papai com engrenagens e molas. A ela restavam apenas lábios machucados e a típica inquietação das mãos quando andávamos naquele Chevette 73. Para piorar a atmosfera de tensão, ela nutria aversão por esses lugares que papai procurava. Dizia que estávamos nos banhando nos dejetos das indústrias, o que eu, ainda abraçado à ignorância dos meus poucos dias, achava que era particularmente um luxo, talvez por não saber o que a palavra “dejetos” significava e ter uma admiração cega pelas fábricas que se abarrotavam nos subúrbios sujos daqui.

Eu tentava disfarçar para não magoá-la, mas eu não sabia esconder tão bem minha paixão por aventuras naquela caixa de sardinhas desgovernada. Mais do que a chegada, a viagem era o que mais me encantava. Meu gosto era pela aventura de viajar sentindo o cheiro de combustível vindo da saída de ar e ouvir no toca fitas os boleros do casamento de papai e mamãe. E amava ainda mais quando o desenho da pista se transformava numa longa e monótona reta, momento em que eu, imediatamente, esticava o pescoço por entre os bancos da frente e implorava para mamãe que me deixasse pôr a cabeça para o lado de fora. Ela, que sempre fora muito apegada à segurança de sua cria, em poucas oportunidades me deixou fazer este que era meu passatempo favorito em viagens assim tão longas. Mesmo pessimista eu procurava seus olhos de jabuticaba - os mais lindos que eu já vira -, sem dizer palavra, tentando achar um pouco de compaixão, um pouco de solidariedade com a criança mais agitada que já pisou essa terra.

Neste dia, num aceno breve ela assentiu e apontou com o nariz a direção da janela, ainda sem tirar o olho de mim, supervisionando militarmente cada movimento meu. Papai, por sua vez, me mirou com os olhos apertados pelo espelho, olhos que denunciavam que logo abaixo se abria um sorriso largo como só ele era capaz de fazer, talvez já prevendo minha súplica assim que apontou na reta e viu que ela se estendia por alguns quilômetros. Apesar de parecer bobo, nesse passatempo eu provava o melhor dos presentes.

Num movimento único me esgueirei pelos bancos e pousei um beijo nas bochechas pálidas de minha mãe em agradecimento; e, tão logo comecei a girar devagar a velha e emperrada manivela, brotou também a ansiedade pelo momento, a qual nascia na altura do meu estômago e se difundia por cada cantinho do meu ser, como a espera por alguém ou a expectativa de entregar um presente. Meus pensamentos eram tomados pela antecipação de como seria sentir novamente aquela sensação, de como eu poderia repetir cada etapa como se fosse a primeira. Apesar de haver certo prazer nesse lugar, eu não podia perder muito tempo nessas ideias. A estrada não iria me esperar. Nem mesmo papai iria me esperar. Éramos apenas eu e aquele pequeno instante.

Meu corpo magro e frágil mal conseguia girar o mecanismo, me obrigando a urrar timidamente para tirar força de algum lugar e enfim me libertar daquela prisão. Com um olhar de pena e madura paciência, mamãe se solidarizou com minha peleja. Após um longo suspiro que denunciava seu arrependimento, vi seu pálido braço atravessar na minha frente e alcançar a manivela que enfim me libertaria. Cada centímetro que descia do vidro era uma oportunidade para calcular se já seria o bastante para eu passar pelo espaço que se abria como um presente e um laço. Quando julguei possível lançar-me à janela, senti um forte golpe da brisa me acertar em cheio. O vapor e o cheiro de gasolina que antes partiam das entranhas do carro eram agora substituídos pelo cheiro das poucas árvores que cresciam em torno da estrada ou pela inundação das minhas narinas que mal distinguiam odores naquele momento, tamanha a abundância do ar que - ironicamente - me sufocava.

Papai sabia o que fazer nesse momento e acelerou ainda mais, enquanto eu suplicava ao universo para que inseto algum se encontrasse comigo naquele momento, por menor que fosse. Ali começava o melhor dos prazeres, a boca aberta e o ar soprando a umidade das minhas bochechas pouco a pouco, no ritmo em que minha expectativa crescia, até que nada mais sobrasse e a dormência das mucosas secas começasse a fazer formigar e me divertir. Eu sentia o ar correr por mim despretensioso, fazendo seu trabalho pouco a pouco, com esmero e capricho. Aos poucos eu quase adormecia, minha mente inebriada pelo total desprendimento de tempo e lugar.

 Porém, as previsões de mamãe estavam certas desta vez. O motor do carro não mentia e o diploma de papai se fez inválido. Começou pelo céu da boca a umidade retornar, as árvores, que antes passavam rápido e se amalgamavam num verde esmeralda que mais lembravam muros partidos em pedacinhos, agora já deixavam que suas folhas pudessem ser contadas sem pressa por qualquer transeunte.

Despertei de meu transe e fitei discretamente o rosto de mamãe, que me olhava de volta com certa pena do meu entusiasmo, dando breves risadas dos solavancos que eu fazia ao tentar fazer o carro nos dar mais uma chance. O olhar de papai se fez de sorriso a culpa, enquanto entreolhava sua companheira ao som do que devia ser Orlando Dias e aquela triste voz de uma solidão raramente reconhecida – e como doíam na alma essas canções...

Papai, resignado, foi levando o carro enfumaçado ao acostamento, planejando sua próxima tarefa, balbuciando alguns termos e procurando em suas memórias de garoto o que estaria acontecendo com o carro. Eu já me afundava no banco de trás, fechando o vidro e tentando organizar a juba quase impossível de pentear. Eu não estava satisfeito, posto que o vento não terminara o trabalho e havia boas milhas de reta para percorrermos. Já estávamos quase parados. E paramos, enfim.
Papai foi o primeiro a descer do carro, com uma pisada forte, um pouco desconsertada, e o cabelo ligeiramente desgrenhado por causa do nervosismo – o que ele mais gostava era de arrancar um sorriso do rosto da mamãe e atacá-la com cócegas em seguida – por isso ele não podia decepcioná-la de novo. Quando levantou o tampo do motor, foi recebido com uma lufada de ar quente e fumaça que o fez recuar. Tudo isso inaudível para mim, dado que os vidros, já fechados, não nos davam pista do que se passava lá fora. Minha mãe já havia deixado seus lábios em paz e agora atacava com certo vigor as unhas da mão esquerda. Ela estava certa... Enquanto eu aceitava que passaríamos algumas horas ali, esquecidos como brinquedos velhos aguardando meu pai desistir de sua teimosia e pedir ajuda, subitamente o vejo dando saltos por entre as bolhas de fumaça escura e fazendo um gesto nos chamando para fora. Sua expressão era tão infantil quanto a minha em meu ritual, e apontava na direção do sol, gritando o nome de minha mãe e arrancando às pressas a calça e desabotoando a camisa, quase que simultaneamente.

Lancei-me na direção da outra janela, procurando ver o que papai vira. De começo achei que ele estivesse sendo atacado por formigas lava-pé, mas ao me esgueirar um pouco mais vi que ele apontava para baixo, enquanto se despia. Alonguei bem meu pescoço para compensar a baixa estatura e, bem longe, abaixo de um longo declive, se estendia um lago límpido, refletindo como um espelho o firmamento. A campina ao redor balançava ao gosto do vento, que intenso soprava como eu tanto desejava antes de nosso naufrágio em terra firme. Lembrava-me os cabelos sedosos de minha mãe, dançando ora à esquerda, ora à direita. As ondículas na água brincando de morrer na borda.

Mas uma coisa me arrebatou de súbito, uma árvore que se erguia à beira do lago, imponente, segura e carregada de frutos que eu não sabia identificar. Era ao mesmo tempo um abrigo, uma sombra fresca e um trampolim para lago. Meus olhos se arregalaram involuntariamente tamanha alegria de saber que eu nadaria no lago ainda que a viagem – minha parte favorita - tivesse sido abreviada.

 Vi papai descer em disparada, como sempre, mas com ele minha mãe que já havia deixado o carro. Sem que eu pudesse perceber, ela apanhou uma cesta de comida, e correndo morro abaixo se equilibrava para não cair na pequena trilha que conduzia ao oásis. Eu me coçava para chegar logo lá, queria compensar o fracasso da viagem e do meu passatempo, mas me perdi na estranha hipnose de ver os dois tão felizes e serenos. O sol iluminava as mãos dadas e sorria para nós, amarelo manga. Permiti-me ficar ali a contemplá-los, sem causar qualquer ruído naqueles corações que se mostravam de novo sintonizados e alegres.  Minha mãe deixara as unhas em paz e suas mãos já repousavam nas de papai. Um batom vermelho devolvera o viço de seus lábios e o rubor das bochechas entregava sua felicidade. Ela cansara da fuga. E uma pequena lágrima rolou de seus olhos, como que libertando uma dor, um senão. 


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide