sexta-feira, maio 21, 2010

A caixa preta.




Era no despertar preguiçoso da vaga manhã, no banho de águas mornas à luz natural ou no chão gelado a provocar arrepios que eu me punha a recordar a bailarina. Ontem à noite, apesar da brisa cortante trazida pelo tempo seco do inverno londrino, decidi deixar o sobrado setecentista em que vivia com meus fantasmas para me dirigir ao teatro municipal decadente. Equipei-me com três ou quatro moletons de cores sóbrias, os quais me davam certo ar de homem parrudo e tomei nas mãos o molho de chaves. Era comum eu checar exatamente dezesseis vezes os trincos das janelas da sacada e quartos, além de pousar o bloqueio de madeira sobre o vão central que dividia os dois ambientes da casa. Só a partir daí, então, me era concedido o direito de deixar a casa e atolar os pés na neve densa que se acumulara por desleixo no portão interno. A todo o momento eu amaldiçoava a administração pública por tamanho inconveniente, para tão logo concluir a inocência da mesma e minha absoluta condenação. A pontapés enérgicos retirei o gelo que cobria a altura da minha canela; voltei a praguejar durante o ritual da segurança residencial e, quando me dei com o relógio, o tempo destinado ao percurso até o teatro se esgotara. O cartaz da germânica de pêlo dourado reluzente figurava minha mente de maneira aflitiva, agitada, zombando da personalidade sistemática que desenvolvi e da distração por seus olhos azulados, quase frios, a me encarar no momento em que soube de sua vinda à capital inglesa.

Após cruzar as adjacências de minha toca, dobrei uma dúzia de esquinas em velocidade moderada, pois mesmo que relutasse em imprimir um ritmo intenso para chegar a tempo na exibição de ballet, manco de nascença seria razão para dores nas articulações e músculos, agravadas ainda pelas baixas temperaturas daquele dezembro castigante. No trajeto, encontrei-me com ex-solistas da orquestra local jogando xadrez, dos quais testemunhei glória e fama agora degenerados pela idade mórbida. Acenei a eles com um sorriso sem muita empolgação ou elegância, arrastando aquela perna - estigma de desgraça - a alimentar minha hipocrisia: a situação deles não me era incômoda.

Segui sem muitas cerimônias em direção a meu destino. Tateei os bolsos a fim de tomar as trinta libras nas mãos e, fotografia mental de desesperança, vi meu porta-níqueis descansado no criado ao lado da cama. Ensaiei imediatamente os verbetes mais chulos que aprendi na meninice mas o que me assaltou de sobremaneira foi uma frequência suave em minhas costas, masculina, austera:

_ D. Garcia, não pertence a você este amontoado de notas e moedas ?

Tomei-lhe o embrulho da mão em uma fração de segundos. Encarei ofegante em seguida o corpo delgado e suntuoso de Mario Vargas, que exibiu a mim um sorriso sincero com dentes tão brancos quanto um banco salino. Era um homem equilibrado, companheiro, sereno; possuía duas belas filhas e uma dedicada e por vezes negligente esposa a aguardá-lo no lar. Já deduz-se a imensa discrepância existente entre nós, porém Marito, como era chamado pelos vizinhos, guardava em sua água-furtada o mesmo que eu apreendia no sobrado tristonho de meu avô: um violoncelo, objeto motivador de nossa desavença pretérita. Ria-se.

Quando ainda me dedicava às tantas partituras e suítes dos mais consagrados músicos do velho mundo, convidava com sustenidos e escalas híbridas de Dó e Ré as damas em desabroche da região. Isto se seguia sempre por muitas semanas, ao passo que meu ego inflava às segundas e quintas-feiras com aqueles elogios pomposos, os olhares provocantes, bem como a periodicidade com que ocorriam minha exibições de quando em quando. Mas como tudo há de findar cedo ou tarde, meu título de 'solista da sacada' não chegou a completar anos. A razão de tamanha tragédia dá-se pelas musas espectadoras - aquelas ingratas - que trocaram a genialidade de Bach pelas cacofonias dos clássicos de bolero interpretados pelo Vargas, agora oportunista e plagiador de meu talento com o instrumento.

É bem verdade que o que senti não passou de ciúmes tolos, confesso, porém Marito jogou baixo, trapaceou, ato fundamental para desencadear minha hibernação vitalícia, minha esporulação social. Mas deixemos o compatriota de lado para retornar à anedota de maior relevância.

Não era capaz de conviver com a inconsciência daquele sujeito a me olhar inofensivamente. A ser sincero, parecia-me que ele desconhecia qualquer fato que fosse razão de minha rabugice incurável.

_ Tome cuidado, D. Garcia, sabes dos perigos deste horário e ousa portar quantia expressiva ! - exclamou com tom paterno.

_ Tenho meus propósitos, Mario. Além disso, sei muito bem me cuidar, obrigado. - sagaz, categórico, do jeito que merecia.

Deixei-o estático para trás e prossegui sem agradecer na odisséia anatômica de lutar contra o peso morto que era minha perna. Aproximando-me da fachada do teatro municipal, a funcionária da cabine de bilhetes, uma senhora de cabelos negros artificiais e pele ulcerada, ensaiou de longe dizer-me sobre o início da apresentação. Sabia do atraso ao chegar no local, era notório, contudo me bastou a "senha" para conseguir uma entrada de acesso ao camarim da alemã em poucos minutos.

A longa espera me rendeu algumas espiadas em seus pertences, afinal, estava entediado, e ela, sendo apludida por uma multidão estupefata. Soube de seu nome logo quando vi o cartaz publicitário, - Pina Bausch - semelhança sobrenatural com minha progenitora, traços agudos característicos do povo germânico, uma flor ! Como uma criança curiosa, eu vasculhava tudo o que se mostrava no cômodo, pentes de cabelo, escovas de dente, luzes e uma volumosa parafernália de maquilagem e roupas de dança espalhadas por todo o lugar, das quais eu me deliciava em inspirar o aroma feminino de delicadeza incomparável. Subitamente fez-se silêncio. Por instinto, corri à porta que dava para o lado de fora e colei meu ouvido na tentativa de captar algo que me orientasse da vinda da dançarina. Ouvi um ribombar de cadeiras arrastadas, conversas animadas de homens, gargalhadas femininas e um 'clique' tão próximo à porta que fui obrigado a piscar os olhos tão rapidamente quanto o que me empurrou para trás.

Uma mocinha de média estatura, indumentária flamingo e pele cor de neve atingiu-me com olhos curiosos, parecendo não temer, mas desafiar. Era Pina Bausch, boquiaberta e encabulada como só ela podia ser:

_ Que fazes aqui em meu-- o que foi que você fez com minhas coisas ?! - a bailarina, cuja face alva tornara-se avermelhada após percorrer com seus olhinhos o camarim bagunçado, não dominava seu questionamento a ponto de embaralhar as perguntas que queria fazer.

Era um tanto óbvio não haver explicação alguma para conceder à dama, e o Inverno de Vivaldi, sinfonia tão admirada pelos críticos da música, primeiro movimento para ser específico, brincava em minha mente; ora tentando calar o agressivo interrogatório empreendido pela bailarina, ora esforçando-se para me alertar do silêncio mortal que cultivava na cena. Julguei ser menos arriscado, portanto, praticar o intento sem delongar minha hipnose em função da beleza infinita de Pina. Para tanto, lancei-me sobre ela a fim de abafar o grito que ameaçara dar. Em seguida tapei-lhe a boca com esforço e usei a outra mão para girar a chave fixa na porta, pois a execução de meu ritual não podia ser interrompida em hipótese alguma. Suavemente a dominei nos braços e imaginei retumbar nos tímpanos a valsa preferida de minha mãe, tocando acelerada, como o coração de meu par pequenino. Cerrei os olhos transparecendo desconfiança, pois temia que a moça me fugisse no Gran Finale. Seus bracinhos finos acompanhavam minha condução impecável em três giros consecutivos, e logo a música tornava-se rápida, mais rápida e, quando iria atingir o tempo de 1/16, a dama, sem energias, desfaleceu com a cabecinha tombada para trás.

Cuidadosamente, coloquei-a sobre o estofado de couro artificial e corri à penteadeira. Uma variedade imensa de tesouras se mostrava a minha disposição, mas escolhi a de cabo metálico acinzentado, a mais reluzente delas, como também a maior. Retornei ao corpo vulnerável da afamada artista acompanhado de uma expressão que era a soma de medo e pressa, além de dominado por um tremor a que já me acostumava a apresentar em momentos semelhantes.

Fazendo uso de um golpe furtivo, levei a mão a sua nuca macia, ergui a tesoura à altura de meus ombros e desprendi detrás de sua orelha um cachinho dourado para ser alvo de minha ferramenta. A tesoura, faminta, levou o fragmento com um corte reto de precisão inigualável, fato que me deixou atônito, perplexo. Depositei a relíquia germânica em um envelope que trazia no bolso do segundo moletom, a salvo. Certifiquei-me depois de que nenhum vestígio de minha identidade ficava no cômodo caótico de Pina Bausch e despedi-me da dama com um beijo nas bochechas rosadas que provocou um estalo engraçado, o qual me inspirou uma risadinha sapeca no cruzar do corredor extenso da saída. No dado instante, esqueci-me até mesmo de mancar feito um pirata no retorno para casa, e, sorte grande de apostador de cavalos, a neve dera uma trégua providencial. Adentrei os portões de casa em pouco menos de seis minutos. Subi as escadas a galope em direção ao meu quarto, onde a caixa preta, com inscrições douradas em sua tampa, trazia no título 'Memórias da Mamãe' e me esperava ansiosa para adicionar mais um emblema dos fantasmas dela. O cachinho da bailarina, portanto, se misturava, naquele momento, a uma diversidade de outros objetos, bem como naufragava em minha memória a exemplos de tantos outros "assaltos".

Deixei-me, enfim, cair no colchão macio de minha cama, digerindo, no despertar, no banho e na falta do chinelo, minhas últimas reminiscências dos olhos miúdos de Pina encarando-me com ingenuidade no cartaz-convite.


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog http://porleonardo.blogspot.com/.

sábado, maio 15, 2010

O engenheiro, o cronista e o amante.

Já bradava com certo vigor o relógio da Praça Central das Luzes, quando a meia-noite se fora e uma nova hora se inaugurava no dia nascente. Esse clamor mecânico foi determinante para a fuga do jovem, vez que havia vivido centenas de experiências um tanto quanto anormais para o cotidiano limitado a postilas e livros das mais variadas ciências. A fuga, como convém ser explanado, fez com que chegasse em casa com andar de falsa embriaguez, além de uma camisa alva em recortes de amarrotamento, uma calça até então intacta e um tênis consideravelmente sujo em relação aos demais que se apresentaram na cerimônia do Engenheiro. Vamos aos desdobramentos.

Deu-se lá pelas nove da noite um compromisso imediato, irrecusável, o qual serviria talvez de distração para minha mente ocupada por prismas e cores primárias indistintas: uma colação de grau. Trata-se de uma celebração ambígüa e controversa a colação, pois, a ser sincero, a euforia maior reside apenas na sensação do aluno de distanciar-se das penitências acadêmicas, ao passo que familiares e amigos provocam ruídos ensurdecedores de uma alegria artificial e efusiva, fazendo uso de faixas, apitos, confetes e serpentinas - inclusive me ocorreu um acesso de fúria quando uma destas se chocou contra minha cabeça e provocou risinhos aos autores do crime: malditos.

Pus-me em uma indumentária parcialmente adequada ao evento: uma camisa social vítima de branqueadores químicos, uma calça escura para o contraste agressivo e um tênis à aleatoriedade a que submeto meu dia-a-dia dos calçados. É claro que não me sentia um verdadeiro galã de novelas latinas (mesmo sendo bregas e um tanto estranhos), mas dirigi-me ao carro conduzido por meu pai, o qual mostrava-se elegante e suficientemente preparado para um prolongamento noturno; eu, tolo, a uma ou duas ovações e um retorno murcho para casa. Enfim, chegamos ao local do evento, logo após procurar por uma vaga de estacionamento por quase doze minutos. O Engenheiro, com seu nome já exposto à multidão ansiosa pelos discursos extensos e redundantes, vestia uma roupa capaz de chamar a atenção até mesmo de um cego distraído, e despertou-me dó do pobre homem. Neste momento também senti certa vaidade por estar vestindo algo simples, discreto e sutil, mas não deixei de ler nos olhos do formando a sincera alegria de desertar o exército da razão e equações. Pensei prontamente: "Que seja, sento-me."

Os ciclos de homenagens a patronos, padrinhos, paraninfos e pára-quedas iam se estendendo ao infinito, quando me espetou, touro após golpe desferido por toureiro, um magnetismo voluntário à inspiração - afinal, havia prometido a uma leitora que me esforçaria por criar algo atraente - porém envergonhei-me de sobressalto: o Engenheiro já começara a saltar de felicidade após receber da diretora da instituição um diploma, bem como a registrar com políticos oportunistas fotos de foco horrendo e fotógrafos de igual categoria. Minha mente se ausentara daquele recinto caloroso. As palmas, as conversas e o frenesi ali instalados cediam lugar ao absoluto silêncio das idéias, e o texto, este texto, se construía em isômeros mil em minha imaginação poderosa e desordenada. Havia, portanto, abandonado minha função ao ir à colação de grau para receber uma pancada forte na cabeça proveniente de uma roda de saltos comemorativos de uma família agressiva ao lado, e, por consequência, para piorar minha condição, o Engenheiro já estava em terra firme sendo abraçado por minha sempre atenta avó e cumprimentado formalmente pelos demais familiares. Chegou até mim com uma leve distorção na face, que tão logo interpretei por estranheza, mas ignorou e acolheu-me em um abraço compreensivo porém não recebido com igual afeto, pois ele arrebatara ao espaço a conclusão da valiosa publicação.
Não o amaldiçoei de todo, uma vez que o incorreto na circunstância era o ser que lhe escreve, mas entristeci-me no momento, apesar de que não houve tempo hábil para chorar mágoas, pois que o fim da "animada" celebração fora declarado.

Em substituição do retorno para casa, tão esperado por mim e pelo sr. Teclado, meu pai sugeriu uma confraternização que fez-me torcer o nariz de desânimo e aos outros convidados, urrarem de alegria. O fato de ter me comportado de maneira egoísta na colação ainda me perturbava durante o trajeto para o 'bar', mas o conto fervia em minhas entranhas, sobretudo as frases de efeito e as descrições mais rebuscadas. Ah!, como era bom planejar e fugir à histeria do ambiente e dar voz ao caldeirão de verdades... no entanto, este meu aspecto cronista era tão canalha quanto um marido infiel ou uma esposa negligente. Semi-desprezível, até.

Tão logo me aproximava do parágrafo anterior quando despertei com toques frenéticos no vidro, e deparei-me com uma tia gesticulando com braveza para que eu deixasse o carro. Distraí-me mais uma vez, e meus companheiros não hesitaram em deixar-me para trás; depois soube que a mesma tia só se ocupou de chamar por mim por notar que havia esquecido a bolsa de maquiagens no porta-luvas do veículo. Meus passos se faziam automáticos em direção à entrada do restaurante, o qual trazia características modernistas fajutas, isto é, uma sacada mal projetada, uma tentativa falha de construir um palco e um cantor de voz semelhante à de Djavan, porém mesclada à de Herbert Viana ou qualquer coisa do gênero - não me recordo ao certo.

Quando surgi pelas escadas, acompanhado de meu andar tímido, os presentes, que não se mostravam tristes ou tímidos como meus pés, berraram meu nome com vigor e, junto desse instante, doze badaladas certeiras no relógio da Praça Central das Luzes se faziam ouvir como nunca na cidade-domitório. Sentei-me após acenar para os mais próximos, isto é, os familiares, pois na dada ocasião até o garçom ousou me cortejar à mesa e me servir um refrigerante de cola. Agradeci-o com cavalheirismo, e o texto fixou-se ali: acabara.
É claro que não me encaixava naquela circunstância com naturalidade, leitor que zomba e ri, tampouco era meu desejo fazê-lo, mas observo agora que eu era como um viajante no tempo em um jogo dos sete erros, porém eu convergia todos os sete, como uma desventura épica.

Meu refrigerante já se encontrava na metade do recipiente, quando perdi-me nas armadilhas de um amante-cronista ao criar engenhosidades com a ficção: eu anseava por criar, desmontar, remontar e inventar, o que por consequência originou Camila Osório, uma dama inexistente, de mentira, fruto de um amor real que se mostra um pouco desconfortável com minha forma semi-formal de conversar, mas acha interessante, vez que se sente atraída por coisas "diferentes".

Todavia "Camila" é um assunto sobre o qual não pude ainda pensar, e meus esforços se concentrarão unicamente nos traços de seu perfil psicológico e também físico. E para aqueles mais atentos que ficaram curiosos por saber como se fez minha fuga, o que me resta dizer é que custou-me muito criar um motivo lógico para pagarem-me um taxi até minha casa, envolvendo matemática e argumentos infundáveis que somados ao álcool se mostram perfeitamente coerentes.