sexta-feira, abril 30, 2010

Do dever pátrio e outras coisas mais.


Já irrompiam imponentes do firmamento algumas flechas delgadas quando, impiedosamente, se apresentaram as tantas onomatopéias do rádio-relógio. A face refletia em tom amargo exatamente o que liam os orbes preguiçosos: 7:00 AM - consideravelmente cedo perante a alteração de sua rotina após a revolução promovida pelos educadores do estado que agora vagueavam sua manhã sem pudor. Pôs-se de pé em igual medida dos olhos e ensaiou preparar-se para o compromisso: os três representantes das forças armadas ainda sorriam em sua mente e davam as instruções para o processo de inserção de cabeça para baixo (!), isto é, seria incluído no grupo de fuzileiros e arrebatados ao vácuo os sonhos, a Ciência, o nobel e os louros da glória.

Moveu-se, enfim, após avaliar as tantas restrições impostas àqueles que fugiam ao compromisso pátrio. Mas o desejo do instante era o de adotar um nome mais simples, quiçá indígena, pois diziam as más línguas que os ocupantes da alta hierarquia louvavam os "milicos" de nome impronunciável e estes encabeçavam as convocações do ano vigente. Ciente disso, a passos soturnos, discurso praguejante, localizou a Junta Militar do município - uma casa de arquitetura moderna, jardins de samambaias descuidadas, uma árvore vítima do açoite do outono e a pintura quebradiça - para tão logo as peripécias do destino se anunciarem presentes. A fila, que se estendia por alguns metros, era composta de cavalheiros memoráveis; músculos salientes, semblantes corajosos, poucas palavras e rudeza gêmea ao touro seduzido por rubro lenço. O jovem, capaz de difundir pessimismo pela imagem desgostosa, adentrou a olhos baixos o cômodo mal cheiroso e intercedeu com exímia delicadeza a funcionária com seu nariz torcido, da qual escapou um 'pois não' sem réplica audível: o moço de braços finos e dedos longos encontrava-se imóvel diante de uma fotografia ilustrativa de Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac - Olavo Bilac, aos minimalistas - além do título em fonte expressiva de patrono do exército pregada a uma parede sebosa, oposta à entrada estreita.

Se fosses tu um leitor atento, notaria que a razão de tamanho espanto encontra-se no texto anterior, cujo enredo distorce a realidade do parnaso (agora patrono) além de sugerir uma vingança de gerações de letras. Olavo, assistindo à nova etapa dada a sua vida, muito ousada até, tramou malícias, aliou-se ao destino e deu partida a uma sucessão de perversões e tormentas ao indivíduo que o exaltou em artigo não muito importante à contemporaneidade.
Duas ou três interjeções se seguiram da distração pela foto, e um choque, talvez o mais aborrecedor deles, no ombro o despertou da divagação onírica do momento:

__ Por favor, apresente em ordem de importância a documentação exigida para efetuação de seu alistamento.

A última palavra pesara como pesou a Bilac em outra circunstância; a mulher pareceu ainda exceder o valor da retórica, porém o jovem ignorou a ênfase e destemido empunhou furtivamente a tarifa última dos débitos de água, a cartilha que o impedia de ser um indigente e duas pequenas fotos recém-reveladas - as quais pareciam retratar o pavor inerente ao propósito da fotografia, um horror. As mãos, úmidas de suor causado pelo nervosismo, sacudiam os papéis em ritmo intenso. A brisa do bolor seguia em contra-dança para em seguida ilustrar um sorriso que se fez nos lábios rosados e assimétricos da militar, que pareceu ter notado algo suficientemente discreto na situação.

A dama-soldado de testa ampla, nariz aquilino, retidão e bondade de espírito não hesitou em preencher com invejável destreza a ficha cadastral padrão que poria o quase homem na rede de cidadãos aptos a servir o país em guerras sem propósito. Havia chances de escapar a essa tarefa, claro, contudo os três representantes das forças armadas, em seu rapel holográfico fajuto, ainda o convidavam para aquela missão absurda, quase desumana.

Ao pé da folha de cadastro, junto ao espaço destinado ao emissor, vinha impresso o nome do reservista em fonte de homenagem aos míopes e em ordem de arquivo, ou seja, com o sobrenome seguido do vocativo ordinário. Naquele caso, o LAMOUNIER, denso e confuso, e o ARTHUR berravam num tom aquático de verde para a redatora escrivã. Ela fixou a vista sobre o conjunto das letras - o que fez o garoto suspeitar de analfabetismo funcional - porém, no instante em que concluía a reflexão sobre o sobrenome destacado, a dama-soldado bradou com toda a energia e regionalismo:

__ Ó, você é parente do tenente ! Ô, tenente Almir, vem cá ver !

Jamais entendi decerto o que os livros queriam dizer quando descreviam o arrepiar dos pêlos da nuca; mas neste episódio, principalmente após derrubar a cadeira em que me sentava e causar um estrondo colossal, me chocar com todos os candidatos que ansiosamente aguardavam o término do preenchimento da lista e bater em retirada daquele lugar após conhecimento do vínculo com o tal tenente, obtive todos os recursos para traduzir o fato em palavras. A comicidade existe, claro, porém eu temi pela Ciência e pelo exame médico que um amigo, supostamente selecionado no mesmo processo, vivenciou em traumas e sequelas psicológicas. Toques e falta de pudor era algo comum no consultório da afamada médica Rose, sobre a qual eu imaginava ombros largos, voz grave ressonante e masculinidade superior à de qualquer pugilista tri-campeão mundial. Me sobrara tempo de perambular pela região para me certificar de que eles não procuravam por mim, e não o faziam.

Também não pense, leitor que contorce e ri, que me distraí quanto ao culpado desta coincidência; pois o Sr. Bilac não me escapa do próximo escárnio. Confesso também que sinto-me agora como uma garota presunçosa que conheço, a qual de tão avessa aos escribas nacionais tapou os ouvidos (e também os olhos) ao que é arte e conceito aqui nascidos. E se pudesse dissolver sua condecoração, oh Príncipe dos poetas, saiba que o faria agora.

quarta-feira, abril 21, 2010

O parnaso desafiador.


O esforço herculano de se criar a mais bela e perfeita ordem poética, e de encantar a dama-corte com métrica, lirismo e rimas admiráveis, fez da trindade parnasiana o símbolo nacional da pompa e vaidade inerentes à literatura. O nome do ícone, Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac - Olavo Bilac aos minimalistas -, não sugestiona por completo a razão pela qual evidencio o "Príncipe dos poetas" aqui, sobretudo por caracterizar falta grave no cumprimento da lei neoliberal que prevê um modelo intenso de incondicional e enérgica concorrência, tal qual dita o modelo capitalista. Mas sigamos com o aristocrata das letras, pois este já se mostra impaciente e um tanto aborrecido.

Era costume bárbaro da época - transição dos séculos XIX e XX - haver entre os nobres escritores uma espécie de rivalidade abstrata. Aquele que saisse vitorioso dos desafios adquiria a principal fonte de propulsão sócio-política dos personagens da época, isto é, se o indivíduo publicasse a obra de maior valor crítico era imediatamente condecorado com a projeção mídica e os louros da glória pública. Com nosso querido amigo Bilac a realidade do tinteiro não foi diferente. Envolveu-se em centenas de batalhas "sangrentas", conquistou prêmios, modestas recompensas, invejáveis títulos, e tão logo mostrou-se co-autor de um movimento gerador das mais intensas discussões intelectuais: o Parnasianismo.

Contudo, ao visualizar a expressão deformada de espanto das faces que me lêem atentas, considero coerente o questionamento do leitor ao levantar a problemática: "Mas que diabos está dizendo? Fugiu ao foco, aposentou a ferramenta reflexiva, filosofia não mais há, degenerou as boas frases..." - mas alto lá, detentor de orbes amuados, deixe que me explique em seguimento do enredo.

Das ocorrências mais comuns em território fluminense, aquela que causava maior sublevação entre os habitantes era o surgimento de forasteiros de aparência hostil e sinistra. Eles logo se retiravam após duas ou três noites em hotéis de alta classe dos bairros meridionais da capital, e levavam todos a crer em movimentações bancárias de porte colossal. Porém nenhum ser que se mostrava amante da vida ousava se aproximar daquelas figuras obscuras e cheias de mistério, exceto um, aliás, uma, e era Amélia de Oliveira, irmã de um certo poeta e amor palpitante do "Príncipe".
O estrangeiro do qual Amélia se aproximara havia chegado à cidade há pouquíssimos dias, e alegou à dama que um inconveniente ocorrera e suas economias se haviam desaparecido. Ela se dispôs prontamente a auxiliá-lo na busca por um abrigo, pois em sua casa estava sujeita a reprovações do irmão, sempre bem-humorado, e do pai, que, apesar de nem sempre se encontrar na cidade, mantinha olhos indiretos sobre a moça.

Desenhando os mais variados caminhos a fim de reconhecer algum generoso conhecido que cedesse teto ao mais novo amigo, Amélia passava pela principal via da metrópole quando divisou um sobrado intimidador e seissentista - dezoito janelas que sorriam aos admiradores nas ruas, duas portas avermelhadas que separavam a saída dos empregados e pintura de alvidez recente. Esta vista engatilhou a lembrança de um baile que a moça um dia fora, embora lhe falhasse a razão da comemoração e o vestido de gala usado para valsar com bons partidos. Resolveu bater à porta e arrancou do companheiro um grito de dor após puxar seu pulso com ansiedade.

_ Sr. Olavo ! Há alguém em casa ? - toc, toc; sua mão doera como nunca - Sr. Olav-- !

Um homem de postura ereta, retidão de espírito e nariz adunco aparecera no vão da pesada porta. Apresentava traços caricatos, ora finos, ora grossos, um par de lentes arredondadas e olhar pesaroso, cansado. Levou a mão à cabeça e desferiu com movimento suave um golpe em seu chapéu de côco, o qual caiu na palma de sua mão com igual rapidez:

_ Olá, D. Amélia, que trazes tu aqui a essa hora do dia com sujeito desconhecido em sua companhia ? - Bilac se aproveitava do descuido do estranho para analisá-lo por completo: vestimenta de alfaiate, sapatos lustrados, bengala inglesa e chapéu arredondado. Um símbolo de requinte e nobreza. Contudo nosso Príncipe sentia uma violenta corrosão transitar por todas as suas vísceras, bradando hinos de amor. Um ciúme ácido, amargo e indiscreto o desconfortava.

A dama de enfeitados cabelos ensaiou responder à pergunta de Olavo com uma flexão vagarosa dos lábios, quando, interrompida com um toque denso de seu cortejador, silenciou-se para ouvir o monólogo diplomático:

_ Boa tarde, Sr. Bilac, sou Carlos Inácio Unaí Mendes , crítico literário, cronista, romancista e poeta. Resido atualmente em São Paulo e represento o núcleo de imprensa jornalística do tablóide Brasiliense; gostaria de lhe apresentar algumas obras e de passar a tarde em sua companhia, pois tenho completa noção de sua autoridade cultural perante a nação.

O poeta se assemelhava a uma estátua após o último verbete do sujeito desconhecido. Seu último ato, involuntário inclusive, foi o de arriscar um "sim" em baixo tom de voz, virar as costas aos visitantes e chocar a porta contra a armação que datava de dois séculos atrás. Ele conhecia até bem demais Carlos Inácio, e este homem, embora desconhecesse o fato, foi a razão de centenas de noites insones e tentativas secretas de superação bordando versos simétricos, aluviando rimas, garimpando técnicas e arquitetando estilos.

O Senhor Bilac, como era também chamado pelos moradores das redondezas, escolheu um horário deveras incoerente para adentrar seu escritório úmido e empregnado pelo cheiro intoxicante do trabalho das traças. Sentou-se calmamente na cadeira confeccionada por seu avô, ainda a pensar na reação dos visitantes que deixara na porta de sua enorme fortaleza. Aquele móvel no qual se sentava resguardava a memória de suas primeiras empreitadas literárias: as cartas de amor, os bilhetes de aviso e até mesmo o requerimento para os inconvenientes que o perseguiam na época do colégio. O corpo desfacelando aos miúdos, dirigiu-se ao armário rústico e tomou para si o tinteiro junto à pena; retornou à mesa e, com um leve suspiro, pousou a pena que ainda teve tempo suficiente para gotejar e manchar o papiro amarelado e de qualidade questionável. O Príncipe ignorou seu descuido para pôr, sob uma invejável caligrafia, os dizeres "O Parnaso Desafiador", com um dedicatória provocadora no envelope preparado ao correio, uma vez que o texto seria dirigido ao Sr. Unaí Mendes.

No espaço dedicado à data, Olavo precisou de uma recordação. Olhou para o calendário torto da parede e divisou a concretização da dicotomia da Vingança: o dia, domingo, e o correio não viria buscar nada que ele se propusesse a criar.

segunda-feira, abril 12, 2010

O lirismo condicional.

Nesta manhã incolor e gelada (lê-se inquietante e depressiva), nenhum motivo tenho eu para pôr em papel ou em teclados aquelas anedotas frouxas e triviais que, apesar de tamanha insignificância inerente ao leitor, consigo maquiar com extensos e líricos parágrafos, além de viciar o diabo crítico pela naturalidade e recorrência das tolices tais. E foi nesta mesma manhã, especificamente no momento em que quase me sufocava no denso travesseiro de penas, que me ocorreu uma idéia (uma iluminação, como apontaria um Visconde peculiar), não semelhante apenas àquelas fixas e perturbadoras idéias, mas singela, proveitosa.

Tudo foi extremamente dinâmico; fato que tão logo me levou a suspeitar de que minha mente estivesse ansiosa por me transportar o pensamento reluzente, e sem hesitar prossegui com a reflexão involuntária - e digo involuntária pela circunstância em que estava inserido: sufocado, sonolento e, por assim dizer, amordaçado por um cobertor também muito pesado. Pensei em chamar por ajuda, mas minha avó jamais ouviria meus clamores com os ruídos ensurdecedores da lavadoura em estágio de centrifugação.

_ Certo, mente tola e hostil, você venceu seu próprio dono e merece os devidos galardões. Que queres tu depois de tão admirável triunfo ?

Em resposta, ou em absoluto silêncio, uma espécie rústica de apresentação de slides iniciou-se em meu delírio, e as lâminas projetadas em que julgo ser meu lobo frontal esboçavam fontes enormes de artigos que já se esvaíam da memória. Mas logo um padrão se estabelecia naquelas imagens, com vigor não só comparável ao de um alterofilista, e este apresentava-me em formato de denúncia minhas tantas técnicas de seduzir olhos indistintos - envergonhei-me prontamente, óbvio. O título daquele boletim pessoal de ocorrência trazia no título três malditas palavras : "O lirismo condicional" - das quais retirei propositalmente o que encabeça o presente artigo. E como também já lhe garanti a ausência de motivos pelos quais escreveria a anedota, leitor jurídico, não me açoita a responsabilidade de lhe conceder contos 'machadianos' memoráveis. E sigo.

A mente despertou por susto, e me parecera que a máquina terminara o estágio de centrifugação. Uma chance: "Vó!", e desta vez me certifiquei da realidade por um beliscão próximo ao ombro. Cuidadosa como sempre fora, veio como uma mãe ao detectar perigo acerca da prole, e trazia consigo uma xícara de café quente e um pão de aspecto novo.

_ Tome, Arthur, trouxe-lhe uma xícara de lirismo e um belo pão condicional, para que abandone de uma vez por todas estas conveniências literárias e saturadas de desarmonia. Ademais, três ou quatro comentam e lêem seus devaneios, e isto é suficiente para assumir uma postura de respeito e largar mão deste sentimentalismo juvenil imperfeito.

Suponho ter caído da cama, e a mente fazia escarninho de meu estado - maldita. Minha avó desaparecera do quarto, e de modo indelicado degluti toda a xícara junto do pão e, com onírico bem estar, sorri debilmente para acordar sob o efeito do tímido e caloroso sol.