quinta-feira, maio 19, 2011

Berro de cão mudo.


Cão, símile, meu santuário e súdito. Deitada com a cabeça zonza de tinto suave em seu peito virgem há e traz-me tanta alegria que o suspiro que eu emito é meu desencargo de paz, meu grunhido mais alto de prazer em sua forma bruta, secreta. Com minhas tantas fundamentais emoções, alma velha eu era só, e mais nada. Os odores que eu fazia exalarem das minhas dobras, articulações e de cada pontinho e segmento de pele tornou-se meu veneno a instilar minhas jogatinas de sedução e em ti fecundar sentimento, dependência - e eu conseguia.

Se movia-me arrastando os lábios, percorrendo e procurando seus braços magros e agudos, testemunhava uma selva de pelinhos erguerem-se atentos para meus próximos passos errantes, junto com arteriazinhas finas que se alongavam, esticavam e dilatavam: era o nascer de seu rubro excitar. Mais um a frente e eu era sua, mais um para trás, era meu - era nosso jogral particular das madrugadas insones. Despropositadamente, tropeçava em sua boca vermelha de tão doce e prendia-me entre seus joelhos que esmagavam-me como que negociando uma violência que pusesse à prova meu desejo; se já não bastassem aqueles bofetões às escuras ou os beliscões sem razão à espera do elevador cujos ruídos faziam hesitar o mais decidido suicida. Nosso ninho era uma absoluta desordem: fluidos, panos úmidos, gravatas (que para nós eram vendas), insegurança, dor e o infinito que populares nomeavam paixão.

Habituada a fazê-lo sempre após nosso ritual, levantei-me vestindo a camisola furta cor que tanto gostava de admirar; depois que senti o frio se apoderar das minhas extremidades e em seguida de todo o corpo, enrolei-me em um roupão de seda-vinho como das novelas nacionais. Mirava de pé a lua minguante pela persiana empoeirada - distraída, com cara e voz de criança - e a fumaça que partia preguiçosa de seu cigarro amentolado enchia o ambiente, criando uma dimensão sombria e de cômico terror barato.

__ Tsc, você aí deitado está me lembrando o Demétrio com aquelas filmagens indecentes. Está para existir menino mais bobo ! - odiava a minha voz quando ela ressoava por muito tempo sem réplica.

Você sabia bem disso. E era claro que tocar no nome de Demétrio seria torturar-te por mais alguns anos; contudo você manteve a pose de quem supera tabus e soprou a última baforada antes de apagar o filtro, deixando um sorriso escapar pré-maturo no canto da boca.

__ Eu não assisto às besteiras daquele moleque, Gabriela, você sabe. - declarava isso como se me contasse de um escândalo político qualquer que vira no jornal de sábado. - Posso apagar a luz ? Não gosto de me enxergar vulnerável como estou agora.

Você adorava essa palavra, justificava todas as suas angústias fantasiosas. As sobrancelhas arqueadas davam o tom antipático do discurso e eu não conseguia disfarçar a raiva infantil que nutria quando virou-se contra mim exibindo as costas nada musculosas e as costelas fracas que morriam nos quadris pontiagudos. Era sempre assim sua conduta: lembrava uma serpente. Ríspida, objetiva, letal. E dessa víbora que interpretavas, vi acender o abajur de seu criado e um oceano em projeção nascer devagarinho no seu corpo seminu. Hipnotizada, ali fiquei observando os peixinhos sem qualquer outro movimento, eram seus pensamentos mergulhando no universo que era você. Depois vi as estrelas-do-mar, as algas verdes desenhadas com pressa e aquela ciranda que girava cada vez mais rápido, te colorindo de azul, de amarelo, de sono e de verde-limão. Era lindo ao seu jeito, com aquela mansidão felina e ar de despreocupado.


__ Pare de me olhar com essa cara de horror, sua boba, está me dando arrepios.

Uma gargalhada seca seguiu-se e seu peito se encheu com um suspiro longo que o derrubou para o plano dos sonhos - dormira. E eu odiava quando adormecia no meio de uma quase-conversa.



N.A.: o desenho pertence ao artista Alisson Affonso que, indiretamente, cedeu a imagem.