"¿Qué hace un autor con la gente vulgar, cómo ponerla ante sus lectores y cómo hacerla interesante? Es imposible dejarla siempre fuera de la ficción, pues la gente vulgar es en todos los momentos la llave y el punto esencial en la cadena de asuntos humanos; si la suprimimos se pierde toda probabilidad de verdad."
Capítulo IV de la novela “El Idiota”, de Fiódor Dostoiévski.
Epígrafe de Los premios por Julio Cortázar, 1960.
Meu refúgio
Meu refúgio é a arte. E quando a vida doída, sofrida, me mata, quando o sorriso da moça me assalta, eu me escondo no livro, no cine, na carta, na música velha e bebida barata.
Meu refúgio é a arte. E quando ouço na esquina dos bares as tuas velhas canções, me estalam no peito funestas paixões.
Meu refúgio é a arte. E quando exausto me deito e praguejo calado, espero ansioso brilhar da soleira teu riso cansado.
Meu refúgio é a arte. E quando não houver mais refúgio, quando tudo for vácuo, hei de abrir o livro, lembrar dos teus lábios, adormecer nas rodas do tempo a dor do passado.
Meu refúgio é a arte. E quando lembra minha boca teu gosto de fel, eu volto à pena, à tinta e ao papel, lamento a chaga que se abriu por descuido, repito qualquer bordão de mãe, algum causo antigo.
Meu refúgio é a arte. E quando tu me ofereces abrigo ou caminho, eu desvio o trajeto, me faço abjeto, p'ra que ao deixares meu teto não lhe doa também a falta que sinto.
Meu refúgio é a arte. E quando partires p’ra longe, quando deixares o ombro, quando fores de outrem, serás também fraco abraço de neurônio, novo espaço de um parágrafo, de cena, sala da filosofia que se esgueira nas voltas do meu dia.
Meu refúgio é a arte. E quando cansar-me da rima, da mais tola e estúpida métrica mínima, vou então cantar à sorte de não mais ver-te em tudo, nem no verde, nem no outro, nem nas moças bonitas ou no medo. Do mundo.
Meu refúgio é a arte. E quando eu quiser me esconder, me guardar de ti, não será pessoa ou moeda a me encontrar aqui. Será enfim o choro, o artista e minha teimosia que irão me salvar dessa crua agonia.
Meu refúgio é a arte. E quando teus olhos me fitarem de canto, tentando achar meu riso, o mais bobo, talvez seja então tempo de choro, de mágoa e de pranto.
A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide