domingo, setembro 25, 2022

O Corpo e a Pólis



"Ser inmortal es baladí; menos el hombre, todas las criaturas lo son, pues ignoran la muerte; lo divino, lo terrible, lo incomprensible, es saberse inmortal.”

El Aleph por Jorge Luis Borges, 1949.


Eu bem me lembro germinar em teu seio, cidade. Sinto, como se fosse ontem, o aroma dos cafés, a densidade da atmosfera sobre minha cabeça e meu corpo frágil tentando se equilibrar nas tensões e nos medos de estar em ti. Ainda semente eu esticava rizomas, rizoides e risadas entre tuas ruas estreitas e sem vida, firmando-me em tuas contradições. Como nas artérias de um ser, rodava, circulando nas vielas e cinemas do Allen para achar minhas saídas capilares que dessem em algum lugar bonito.

Sentia-me como aquelas toscas flores, margaridas, nascendo teimosas nas fendas do pavimento. Insistente, corajoso, intrépido, sempre acelerado pelos ventos da meninice que me arrastavam pelos bares, lares e aos subúrbios das moças. Embora tu não fosses meu solo fértil, foi só quando te vi à distância, um mapa, uma foto, cheia de formigas que transitavam como eu - cheias de pressa e de sonhos - que percebi que eu era só um fascículo da tua história, um breve sopro de vida que se deu ali por acidente. E ver a tal imagem era como me ver junto de ti, sabendo que como teu tempo e tuas histórias eu era também efêmero. Fez-me lembrar aquela canção de Caetano sobre a Terra, mas em uma escala menor, mais comedida e bem menos importante que a do Veloso, claro, mas com o mesmo delirante torpor de ver-se miúdo e, você, imune a tudo - gargalhando de nós.

Destes dias, preservo também a dor de ver como lhe agitaram as colunas, como roeram tua carne e ataram novas formas, geométricas, disformes, modernas... como esticaram-te feito as massas, afinando teu recheio, enfraquecendo-te para moer nas máquinas da modernidade e fundir as vigas que te colocaram de pé. Ao ver-te, cidade, eu me via também. Meus sonhos nas tuas ruas desbotando feito velhos arquivos, o soerguimento das minhas dores como se você zombasse da minha inocência. Se me espiavas ali, em cada instante, sabe como queimava, como doía... Hoje, já longe de ser moço, tornou-se difícil até mesmo me recordar de quem eu era, para onde queria ir.

Engraçado como n'outro dia tentei me lembrar como era minha postura, como era o ritmo da minha caminhada, como era o meu ar, se cansado, se triste, ou se confiante, sonhador. Brinquei de imaginar se algum estranho no trem me desenhou à distância como virou praxe nas estações mundo afora. Era por bem que não o tivessem feito. Não era uma imagem muito feliz aos olhos das moças que ele talvez quisesse impressionar. Parece-me, assim, outra vida, outra história para contar, com personagens e palcos novos, mais borrados do que vívidos, como um ator que se despede de um personagem. Admito que por muito tempo eu te culpei pelas minhas desventuras, achava que teu solo era a razão de tudo, um lugar que não me acolhia, uma maldição lovecraftiana que te arrebatou os bons ventos e envenenou a terra. Porém era eu que não te convidava para ser parte de mim, para ser minha casa, minha pólis. Eu era como uma presa em tua teia aracnídea, atado a teu leito sem desejar estar ali, sem te convidar para entrar, você sem me deixar sair. Não era pura a nossa história, como que maculada pelo meu empenho em te deixar, estando eu ali só por circunstância dos acasos, desventuras, escolhas antigas de ancestrais que repousam pesados como chumbo em algum lugar agora a quilômetros daqui.

Mesmo distante, eu não posso dizer se um dia te deixarei de verdade, ou, pelo menos, se haverá alguma forma de eu te esquecer, de não pensar em voltar a ti e aos teus horizontes mais belos. É improvável, dadas as minhas décadas, que responda precisamente para onde quero ir, onde quero estar, onde me sinto bem e sonhador. Acho que requisito de casa é onde o sonho é sereno, onde a fagulha da esperança acende sem razão, onde os toscos detalhes são trunfo maior. E não tem benta fronteira, sagrado templo onde eu me deito assim a ensaiar meus íntimos desejos. Onde eu pouso a cabeça no travesseiro, despreocupado com os tempos, os vícios do mundo e meu lugar neste tempo. Outro dia escrevi que eu me escondo na arte, que eu mergulho nos livros tantos que me cercam, tentando achar na enchente um lugar seguro, que chamei de refúgio. Talvez, então, minha Pólis não seja física, talvez seja ela um instante no tempo, um conjunto de palavras, de cenas, o próprio cinema, que se manifeste quando vejo, que me receba quando eu me ponho a ver, ler e escrever. A minha paz nasce aqui, no momento em que eu costuro a minha consciência em alguma lógica ora literária, ora terapêutica de achar sentido na linha de coser a história, ponto a ponto, causo a causo.

Talvez seja a minha pólis meu próprio corpo, minha morada que não se descola da minha consciência, como uma tartaruga que se recolhe dentro do casco e ali permanece segura, assustada, mas segura, e por óbvio não divide com ninguém aquele vazio. Minha pólis é, portanto, limitada à população de um, limitado a ser eu habitante e regente de uma morada, declamando poemas nas praças como um ato mnemônico da minha história. Uma sátira da Pólis dos gregos, sem conselhos ou assembleias, sem povo e somente um eco de muitas existências que me atravessaram na corredeira dos anos.

Meu corpo é minha pólis, e talvez as vozes de minha ágora clamem por um inédito e singelo ato de amor.

Meu corpo é minha pólis.

- A

 


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide