quinta-feira, junho 22, 2023

Série Fragmentos - II


2. Memória de um menino, charada para um adulto


"(...) El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges."

Nueva refutación del tiempo por Jorge Luis Borges en Otras inquisiciones (1952)


Lembro de visitar uma amiga quando garoto e, intrigado, observá-la vigiar o tempo nervosamente. Na sala havia três relógios: o seu de pulso, o de cordas na parede da cozinha e o andar crescentemente nervoso de sua mãe de um lado a outro, marcando um tic-tac paralelo, informal. Mais preciso que os ponteiros eram os pés de tamanco-madeira que golpeavam o tablado oco que dava para o porão. A fúria nos pés da senhora faziam levantar uma fina camada de poeira que dançava quase que se apoiando nos poucos raios de sol que cruzavam as feias cortinas bordadas, que já passavam dos 40, talvez 50 anos. Como um badalar de sinos, o som abafado do caminhar da velha chocava-se no tablado de tatajuba e se combinava ao coração pesado no meu peito, marcando os passos e meus respiros. O silêncio obsceno da figura amarga e autoritária parecia aguardar o deslize da presa e revelava qualquer coisa de diversão ali. Não soube decifrar se ela esperava uma resposta ou um choro - que é uma resposta menos verbal e mais humana se comparado a um mero jogo de palavras ou um pedido de desculpas, se é que um era devido.

Hoje, ao revisitar a cena, concluo que quando criança tudo é demais, tudo é verdadeiramente grave, súbito e delicioso. As dimensões da nossa experiência de vida, nossa condição humana, são dobradas, quadruplicadas, tanto em tempero quanto em quantidade. Essa sensação, suponho, só passa depois dos 40, quando já se viveu e viu o suficiente, e a surpresa e as emergências vão se decompondo em micro ou nanopulsos de responsabilidade e compromisso. Algo que eu secretamente chamo de homeopatia da vida e das cores. Onde um erro é bem menos fatal que antes, e uma mágoa é somente uma mágoa, há de voltar, há de passar. Quando deixamos a meninice, somos veneno e antídoto caminhando lado a lado.

Até hoje eu me agarro a essa memória, tentando lembrar o que fizera de errado; se fora um vaso derrubado, um descuido com a louça, ou se chegamos para além do horário combinado. Eu talvez jamais descubra o porquê de seus lábios mordidos, dos olhos fugidios e dos ombros baixos na ausência de culpa. Ou o motivo de tamanha vigia do tempo... Certa hora ficou tarde - minha mãe provavelmente esperava por mim, embora eu não tivesse pista do seu humor - e eu tive de deixá-la ali, meio contrariado com o que parecia ser meu maior ato de covardia. Apesar de minha fuga e dessa charada travestida de memória, eu desejei intensamente que você ficasse bem e em paz, velha amiga.


- A



A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide