sexta-feira, setembro 08, 2023

Série Fragmentos - IV


4. Sobre o medo de escrever (ou Da cegueira)

"(...) Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem."

Ensaio Sobre a Cegueira por José Saramago (1995)


Vagando no trem de Fundo Céu, lembrei-me de Borges e sua cegueira. As costas arqueadas na cadeira de balanço, o café frio na mesa de canto, e sua voz rouca ditando sonhos, narrando causos e parágrafos sem que pudesse vê-los no papel. Para ele, escrever era sonoro, e seu confidente um diapasão de ideias, canalizando seu pulso criativo que passava por outras vias sensoriais para além da visão. Como seria viver nesse mundo, onde os pensamentos vagam altos e públicos naquilo que deveria ser de essência visual e íntima? Como a escuridão mutava, retorcia suas reflexões?

Estremeci de medo ao imaginar-me assim, questionando se eu teria a coragem de dividir minhas ideias cruas com um confidente, compartilhar do nascedouro as minhas intimidades e no olho d'água deixar brotar as inquietudes da alma. Para ele, bastaria só a ideia pujante para ferir a pele, atrair o olhar, mover o amor e infectar com ideias outros mortais? E se bastasse, o que fez o cego Borges quando lhe faltaram ouvidos munidos de penas? Quando na bolsa lhe escapou o punção metálico? Esqueceu? Deixou escapar?

Em meu microcosmo amador e desimportante, palavras nascem como sentimento, já vêem como que prontas para o mundo, ansiosas, não podem esperar muito até que ganhem forma no papel... E nesse pulso de existir me fazem refém para torná-las reais, até que as enxugo, retorço e moldo para que sosseguem sem muito me maltratar. Às vezes assaltam-me no trabalho, no banho pela manhã ou nas cobertas com minha senhora. E, no processo, perco-me, espeto o dedo na curiosidade de querer saber um pouco mais, de dar forma a um cubo disforme de argila virgem como um Rodin clandestino. Para cada palavra que escrevo, uma palavra a mais que me define, um pensamento a menos que faço segredo, um passo mais perto da minha consciência. Mas nunca esqueço, nunca ignoro o chamado da ideia. E de novo, pergunto-me o que o fez o cego Borges quando suas palavras o arrebataram num dia de solidão, no calar da noite, ou em um daqueles instantes de ansiedade e pesar.Talvez seja aí onde moram os fantasmas.

Sempre pensei que a beleza de escrever caminha lado a lado com a "desbeleza" de revelar-se. É como fazer sua sessão de terapia numa praça pública e esperar que as pessoas ignorem essa loucura ou admirem as suas incongruências, suas sandices. Portanto hoje me autorizo o mistério, largo a caneta e aceito perder tantas ideias quanto é possível perder, deixo escapar dúzias de parágrafos, sem me punir pela ânsia de traduzir qualquer sentimento muito íntimo. Serei o escritor sem pena, a aberração, Borges em seu esquecimento mais tolo na ida ao mercado. Apesar de um ser de muita coragem, sou também um ser de muito medo, um paradoxo. 

No próximo empenho prometo contar-lhes uma ficção, uma mentira que me ocorrer na volta pra casa, espiando transeuntes ou pensando na assustadora previsão de tempos mais sombrios. Algo menos meu e mais teu. 


-A


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

sábado, agosto 12, 2023

Série Fragmentos - III

 


3. Uma manhã nas florestas em que meditei observando a despedida de uma raposa.


"(...) Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então, as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão (...)"

  As Intermitências da Morte por José Saramago (2005)
 

Deixo aqui de pronto, nua e crua, a triste curiosidade que me ocorreu ao ver partir tantos e tantos pequenos animais que encontro nas florestas onde caminho. Quando acometidos por alguma chaga, alguma dor, eles recolhem-se em ninhos de espinhos e arbustos a esperar sua hora de partida, sempre enroscados em arvoretas, sozinhos, miúdos, encolhidos, seguros... É uma cena sem choro, sem raiva, sem medo ou injúria, mas que eu, irredutivelmente humano, atribuía lamento e pesar.

Ainda é inconcebível para minha estreita e limitada inteligência imaginar que a natureza coube de selecionar para todos os seres, menos para nós, o não-luto, a não-despedida, pois que somos - dirá o leitor - esse vórtex de culpa que não vai e não deixa ir. Para nós, a memória é como o petróleo do tempo, o negrume turvo que afia as culpas e perece as belezas. E para além do não-luto somos vítimas de um perverso esquecimento, máquinas de desmemoriar, brutas rochas de instantes, de fluxos vazios e imprecisos de quilojoules tentando ordenar o caos, mas que cedem ao impermanente rio que corre e dilui o que foi, e até o que é agora, hoje, teu. Neurônios são por natureza engenhosos, sádicos e criativos. Centelhas que acendem sem motivos, desligam sem aviso, motores que nos dirigem como vagalumes numa noite sem luar. Figuras enlutadas em trânsito, propósitos buscando iguais.

Olhando a despedida de uma raposa, vi que a pureza dos animais mora na impossibilidade de interpretar a memória e dar sentido a ela. Não fazem velórios, não marcam datas... Vivem, protegem, reúnem-se e educam-se sem que isso seja um ritual, sem que seja uma norma, um grande evento. São impulsos de um sagrado misterioso e perpétuo... Distante da sua morada, ela protegia os seus, afastava os predadores dos pequenos e preservava seu miúdo corpo; sem sustos, sem arrependimentos, e em absoluta graça. Ainda que eu recebesse uma centena de vezes aquela mesma lição, não saberia dizer o que aqueles olhos serenos me contavam. O impulso de entender não superou a vontade de partir, de recuar.



-A


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

quinta-feira, junho 22, 2023

Série Fragmentos - II


2. Memória de um menino, charada para um adulto


"(...) El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges."

Nueva refutación del tiempo por Jorge Luis Borges en Otras inquisiciones (1952)


Lembro de visitar uma amiga quando garoto e, intrigado, observá-la vigiar o tempo nervosamente. Na sala havia três relógios: o seu de pulso, o de cordas na parede da cozinha e o andar crescentemente nervoso de sua mãe de um lado a outro, marcando um tic-tac paralelo, informal. Mais preciso que os ponteiros eram os pés de tamanco-madeira que golpeavam o tablado oco que dava para o porão. A fúria nos pés da senhora faziam levantar uma fina camada de poeira que dançava quase que se apoiando nos poucos raios de sol que cruzavam as feias cortinas bordadas, que já passavam dos 40, talvez 50 anos. Como um badalar de sinos, o som abafado do caminhar da velha chocava-se no tablado de tatajuba e se combinava ao coração pesado no meu peito, marcando os passos e meus respiros. O silêncio obsceno da figura amarga e autoritária parecia aguardar o deslize da presa e revelava qualquer coisa de diversão ali. Não soube decifrar se ela esperava uma resposta ou um choro - que é uma resposta menos verbal e mais humana se comparado a um mero jogo de palavras ou um pedido de desculpas, se é que um era devido.

Hoje, ao revisitar a cena, concluo que quando criança tudo é demais, tudo é verdadeiramente grave, súbito e delicioso. As dimensões da nossa experiência de vida, nossa condição humana, são dobradas, quadruplicadas, tanto em tempero quanto em quantidade. Essa sensação, suponho, só passa depois dos 40, quando já se viveu e viu o suficiente, e a surpresa e as emergências vão se decompondo em micro ou nanopulsos de responsabilidade e compromisso. Algo que eu secretamente chamo de homeopatia da vida e das cores. Onde um erro é bem menos fatal que antes, e uma mágoa é somente uma mágoa, há de voltar, há de passar. Quando deixamos a meninice, somos veneno e antídoto caminhando lado a lado.

Até hoje eu me agarro a essa memória, tentando lembrar o que fizera de errado; se fora um vaso derrubado, um descuido com a louça, ou se chegamos para além do horário combinado. Eu talvez jamais descubra o porquê de seus lábios mordidos, dos olhos fugidios e dos ombros baixos na ausência de culpa. Ou o motivo de tamanha vigia do tempo... Certa hora ficou tarde - minha mãe provavelmente esperava por mim, embora eu não tivesse pista do seu humor - e eu tive de deixá-la ali, meio contrariado com o que parecia ser meu maior ato de covardia. Apesar de minha fuga e dessa charada travestida de memória, eu desejei intensamente que você ficasse bem e em paz, velha amiga.


- A



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quarta-feira, maio 31, 2023

Série Fragmentos - I

1.  Me deixa em paz (ou O dia em que acordei pensando nas Minas Gerais)


"La soledad le había seleccionado los recuerdos, y había incinerado los entorpecedores montones de basura nostálgica que la vida había acumulado en su corazón, y había purificado, magnificado y eternizado los otros, los más amargos" 

Cien años de soledad por Gabriel García Márquez, 1967.


Evitar a dor, como Alaíde Costa advertia, é impossível. E nos embalos dessa poesia eu refletia sobre a dor que causam o tempo e a idade. Nem mesmo concluí meus 30 anos e já me palpita o coração pelo medo da potência dos minutos que me escorrem as mãos. Penso na minha vontade incontida de agarrá-lo pela gola da camisa e de pedir pra que ele pare. Pare pra que eu desfrute do sorriso de minha mãe, para que eu possa admirar mesmo de longe a força dos meus pais, para que eu me encante com a juventude dos meus irmãos e com o desejo inesgotável da minha menina... Pare para que eu não me dissolva no meu pequeno apartamento, arranhando as paredes de agonia, para que o relógio se sossegue manso, que enfim sustente-me no instante, na minha paz de um domingo preparando um bom almoço, acompanhado de uma cerveja e um bom som. Pare para que eu consiga um pulso de reflexão sobre meus dias, meu passado, presente e futuro, num breve silêncio contemplativo pra saber se eu aprendi algo, se cresci, se melhorei, se abandonei velhos hábitos e vivi. Não é o medo da partida, mas o desejo puro, como de respirar fundo um ar novo, talvez inédito. Medo de nunca experimentar esse não-tempo, de não poder participar do aterrorizante e lindo fenômeno no qual ele, o tempo, por uma breve distração, esqueça de passar. Medo de jamais poder olhá-lo em retrospectiva e entender-me sem que nesse processo eu o veja passar e o consuma como em outra tarefa qualquer. Medo de que o tempo seja uma força que nos impulsiona somente para frente, e que o que passou seja somente uma fantasia dos antigos e dos arrependidos.

Lembrar é, intrinsicamente, um ofício de quem está só, ou dos que temem viver assim.

- A


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide