sexta-feira, setembro 08, 2023

Série Fragmentos - IV


4. Sobre o medo de escrever (ou Da cegueira)

"(...) Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem."

Ensaio Sobre a Cegueira por José Saramago (1995)


Vagando no trem de Fundo Céu, lembrei-me de Borges e sua cegueira. As costas arqueadas na cadeira de balanço, o café frio na mesa de canto, e sua voz rouca ditando sonhos, narrando causos e parágrafos sem que pudesse vê-los no papel. Para ele, escrever era sonoro, e seu confidente um diapasão de ideias, canalizando seu pulso criativo que passava por outras vias sensoriais para além da visão. Como seria viver nesse mundo, onde os pensamentos vagam altos e públicos naquilo que deveria ser de essência visual e íntima? Como a escuridão mutava, retorcia suas reflexões?

Estremeci de medo ao imaginar-me assim, questionando se eu teria a coragem de dividir minhas ideias cruas com um confidente, compartilhar do nascedouro as minhas intimidades e no olho d'água deixar brotar as inquietudes da alma. Para ele, bastaria só a ideia pujante para ferir a pele, atrair o olhar, mover o amor e infectar com ideias outros mortais? E se bastasse, o que fez o cego Borges quando lhe faltaram ouvidos munidos de penas? Quando na bolsa lhe escapou o punção metálico? Esqueceu? Deixou escapar?

Em meu microcosmo amador e desimportante, palavras nascem como sentimento, já vêem como que prontas para o mundo, ansiosas, não podem esperar muito até que ganhem forma no papel... E nesse pulso de existir me fazem refém para torná-las reais, até que as enxugo, retorço e moldo para que sosseguem sem muito me maltratar. Às vezes assaltam-me no trabalho, no banho pela manhã ou nas cobertas com minha senhora. E, no processo, perco-me, espeto o dedo na curiosidade de querer saber um pouco mais, de dar forma a um cubo disforme de argila virgem como um Rodin clandestino. Para cada palavra que escrevo, uma palavra a mais que me define, um pensamento a menos que faço segredo, um passo mais perto da minha consciência. Mas nunca esqueço, nunca ignoro o chamado da ideia. E de novo, pergunto-me o que o fez o cego Borges quando suas palavras o arrebataram num dia de solidão, no calar da noite, ou em um daqueles instantes de ansiedade e pesar.Talvez seja aí onde moram os fantasmas.

Sempre pensei que a beleza de escrever caminha lado a lado com a "desbeleza" de revelar-se. É como fazer sua sessão de terapia numa praça pública e esperar que as pessoas ignorem essa loucura ou admirem as suas incongruências, suas sandices. Portanto hoje me autorizo o mistério, largo a caneta e aceito perder tantas ideias quanto é possível perder, deixo escapar dúzias de parágrafos, sem me punir pela ânsia de traduzir qualquer sentimento muito íntimo. Serei o escritor sem pena, a aberração, Borges em seu esquecimento mais tolo na ida ao mercado. Apesar de um ser de muita coragem, sou também um ser de muito medo, um paradoxo. 

No próximo empenho prometo contar-lhes uma ficção, uma mentira que me ocorrer na volta pra casa, espiando transeuntes ou pensando na assustadora previsão de tempos mais sombrios. Algo menos meu e mais teu. 


-A


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

sábado, agosto 12, 2023

Série Fragmentos - III

 


3. Uma manhã nas florestas em que meditei observando a despedida de uma raposa.


"(...) Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então, as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão (...)"

  As Intermitências da Morte por José Saramago (2005)
 

Deixo aqui de pronto, nua e crua, a triste curiosidade que me ocorreu ao ver partir tantos e tantos pequenos animais que encontro nas florestas onde caminho. Quando acometidos por alguma chaga, alguma dor, eles recolhem-se em ninhos de espinhos e arbustos a esperar sua hora de partida, sempre enroscados em arvoretas, sozinhos, miúdos, encolhidos, seguros... É uma cena sem choro, sem raiva, sem medo ou injúria, mas que eu, irredutivelmente humano, atribuía lamento e pesar.

Ainda é inconcebível para minha estreita e limitada inteligência imaginar que a natureza coube de selecionar para todos os seres, menos para nós, o não-luto, a não-despedida, pois que somos - dirá o leitor - esse vórtex de culpa que não vai e não deixa ir. Para nós, a memória é como o petróleo do tempo, o negrume turvo que afia as culpas e perece as belezas. E para além do não-luto somos vítimas de um perverso esquecimento, máquinas de desmemoriar, brutas rochas de instantes, de fluxos vazios e imprecisos de quilojoules tentando ordenar o caos, mas que cedem ao impermanente rio que corre e dilui o que foi, e até o que é agora, hoje, teu. Neurônios são por natureza engenhosos, sádicos e criativos. Centelhas que acendem sem motivos, desligam sem aviso, motores que nos dirigem como vagalumes numa noite sem luar. Figuras enlutadas em trânsito, propósitos buscando iguais.

Olhando a despedida de uma raposa, vi que a pureza dos animais mora na impossibilidade de interpretar a memória e dar sentido a ela. Não fazem velórios, não marcam datas... Vivem, protegem, reúnem-se e educam-se sem que isso seja um ritual, sem que seja uma norma, um grande evento. São impulsos de um sagrado misterioso e perpétuo... Distante da sua morada, ela protegia os seus, afastava os predadores dos pequenos e preservava seu miúdo corpo; sem sustos, sem arrependimentos, e em absoluta graça. Ainda que eu recebesse uma centena de vezes aquela mesma lição, não saberia dizer o que aqueles olhos serenos me contavam. O impulso de entender não superou a vontade de partir, de recuar.



-A


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quinta-feira, junho 22, 2023

Série Fragmentos - II


2. Memória de um menino, charada para um adulto


"(...) El tiempo es la sustancia de que estoy hecho. El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río; es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre; es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego. El mundo, desgraciadamente, es real; yo, desgraciadamente, soy Borges."

Nueva refutación del tiempo por Jorge Luis Borges en Otras inquisiciones (1952)


Lembro de visitar uma amiga quando garoto e, intrigado, observá-la vigiar o tempo nervosamente. Na sala havia três relógios: o seu de pulso, o de cordas na parede da cozinha e o andar crescentemente nervoso de sua mãe de um lado a outro, marcando um tic-tac paralelo, informal. Mais preciso que os ponteiros eram os pés de tamanco-madeira que golpeavam o tablado oco que dava para o porão. A fúria nos pés da senhora faziam levantar uma fina camada de poeira que dançava quase que se apoiando nos poucos raios de sol que cruzavam as feias cortinas bordadas, que já passavam dos 40, talvez 50 anos. Como um badalar de sinos, o som abafado do caminhar da velha chocava-se no tablado de tatajuba e se combinava ao coração pesado no meu peito, marcando os passos e meus respiros. O silêncio obsceno da figura amarga e autoritária parecia aguardar o deslize da presa e revelava qualquer coisa de diversão ali. Não soube decifrar se ela esperava uma resposta ou um choro - que é uma resposta menos verbal e mais humana se comparado a um mero jogo de palavras ou um pedido de desculpas, se é que um era devido.

Hoje, ao revisitar a cena, concluo que quando criança tudo é demais, tudo é verdadeiramente grave, súbito e delicioso. As dimensões da nossa experiência de vida, nossa condição humana, são dobradas, quadruplicadas, tanto em tempero quanto em quantidade. Essa sensação, suponho, só passa depois dos 40, quando já se viveu e viu o suficiente, e a surpresa e as emergências vão se decompondo em micro ou nanopulsos de responsabilidade e compromisso. Algo que eu secretamente chamo de homeopatia da vida e das cores. Onde um erro é bem menos fatal que antes, e uma mágoa é somente uma mágoa, há de voltar, há de passar. Quando deixamos a meninice, somos veneno e antídoto caminhando lado a lado.

Até hoje eu me agarro a essa memória, tentando lembrar o que fizera de errado; se fora um vaso derrubado, um descuido com a louça, ou se chegamos para além do horário combinado. Eu talvez jamais descubra o porquê de seus lábios mordidos, dos olhos fugidios e dos ombros baixos na ausência de culpa. Ou o motivo de tamanha vigia do tempo... Certa hora ficou tarde - minha mãe provavelmente esperava por mim, embora eu não tivesse pista do seu humor - e eu tive de deixá-la ali, meio contrariado com o que parecia ser meu maior ato de covardia. Apesar de minha fuga e dessa charada travestida de memória, eu desejei intensamente que você ficasse bem e em paz, velha amiga.


- A



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quarta-feira, maio 31, 2023

Série Fragmentos - I

1.  Me deixa em paz (ou O dia em que acordei pensando nas Minas Gerais)


"La soledad le había seleccionado los recuerdos, y había incinerado los entorpecedores montones de basura nostálgica que la vida había acumulado en su corazón, y había purificado, magnificado y eternizado los otros, los más amargos" 

Cien años de soledad por Gabriel García Márquez, 1967.


Evitar a dor, como Alaíde Costa advertia, é impossível. E nos embalos dessa poesia eu refletia sobre a dor que causam o tempo e a idade. Nem mesmo concluí meus 30 anos e já me palpita o coração pelo medo da potência dos minutos que me escorrem as mãos. Penso na minha vontade incontida de agarrá-lo pela gola da camisa e de pedir pra que ele pare. Pare pra que eu desfrute do sorriso de minha mãe, para que eu possa admirar mesmo de longe a força dos meus pais, para que eu me encante com a juventude dos meus irmãos e com o desejo inesgotável da minha menina... Pare para que eu não me dissolva no meu pequeno apartamento, arranhando as paredes de agonia, para que o relógio se sossegue manso, que enfim sustente-me no instante, na minha paz de um domingo preparando um bom almoço, acompanhado de uma cerveja e um bom som. Pare para que eu consiga um pulso de reflexão sobre meus dias, meu passado, presente e futuro, num breve silêncio contemplativo pra saber se eu aprendi algo, se cresci, se melhorei, se abandonei velhos hábitos e vivi. Não é o medo da partida, mas o desejo puro, como de respirar fundo um ar novo, talvez inédito. Medo de nunca experimentar esse não-tempo, de não poder participar do aterrorizante e lindo fenômeno no qual ele, o tempo, por uma breve distração, esqueça de passar. Medo de jamais poder olhá-lo em retrospectiva e entender-me sem que nesse processo eu o veja passar e o consuma como em outra tarefa qualquer. Medo de que o tempo seja uma força que nos impulsiona somente para frente, e que o que passou seja somente uma fantasia dos antigos e dos arrependidos.

Lembrar é, intrinsicamente, um ofício de quem está só, ou dos que temem viver assim.

- A


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domingo, setembro 25, 2022

O Corpo e a Pólis



"Ser inmortal es baladí; menos el hombre, todas las criaturas lo son, pues ignoran la muerte; lo divino, lo terrible, lo incomprensible, es saberse inmortal.”

El Aleph por Jorge Luis Borges, 1949.


Eu bem me lembro germinar em teu seio, cidade. Sinto, como se fosse ontem, o aroma dos cafés, a densidade da atmosfera sobre minha cabeça e meu corpo frágil tentando se equilibrar nas tensões e nos medos de estar em ti. Ainda semente eu esticava rizomas, rizoides e risadas entre tuas ruas estreitas e sem vida, firmando-me em tuas contradições. Como nas artérias de um ser, rodava, circulando nas vielas e cinemas do Allen para achar minhas saídas capilares que dessem em algum lugar bonito.

Sentia-me como aquelas toscas flores, margaridas, nascendo teimosas nas fendas do pavimento. Insistente, corajoso, intrépido, sempre acelerado pelos ventos da meninice que me arrastavam pelos bares, lares e aos subúrbios das moças. Embora tu não fosses meu solo fértil, foi só quando te vi à distância, um mapa, uma foto, cheia de formigas que transitavam como eu - cheias de pressa e de sonhos - que percebi que eu era só um fascículo da tua história, um breve sopro de vida que se deu ali por acidente. E ver a tal imagem era como me ver junto de ti, sabendo que como teu tempo e tuas histórias eu era também efêmero. Fez-me lembrar aquela canção de Caetano sobre a Terra, mas em uma escala menor, mais comedida e bem menos importante que a do Veloso, claro, mas com o mesmo delirante torpor de ver-se miúdo e, você, imune a tudo - gargalhando de nós.

Destes dias, preservo também a dor de ver como lhe agitaram as colunas, como roeram tua carne e ataram novas formas, geométricas, disformes, modernas... como esticaram-te feito as massas, afinando teu recheio, enfraquecendo-te para moer nas máquinas da modernidade e fundir as vigas que te colocaram de pé. Ao ver-te, cidade, eu me via também. Meus sonhos nas tuas ruas desbotando feito velhos arquivos, o soerguimento das minhas dores como se você zombasse da minha inocência. Se me espiavas ali, em cada instante, sabe como queimava, como doía... Hoje, já longe de ser moço, tornou-se difícil até mesmo me recordar de quem eu era, para onde queria ir.

Engraçado como n'outro dia tentei me lembrar como era minha postura, como era o ritmo da minha caminhada, como era o meu ar, se cansado, se triste, ou se confiante, sonhador. Brinquei de imaginar se algum estranho no trem me desenhou à distância como virou praxe nas estações mundo afora. Era por bem que não o tivessem feito. Não era uma imagem muito feliz aos olhos das moças que ele talvez quisesse impressionar. Parece-me, assim, outra vida, outra história para contar, com personagens e palcos novos, mais borrados do que vívidos, como um ator que se despede de um personagem. Admito que por muito tempo eu te culpei pelas minhas desventuras, achava que teu solo era a razão de tudo, um lugar que não me acolhia, uma maldição lovecraftiana que te arrebatou os bons ventos e envenenou a terra. Porém era eu que não te convidava para ser parte de mim, para ser minha casa, minha pólis. Eu era como uma presa em tua teia aracnídea, atado a teu leito sem desejar estar ali, sem te convidar para entrar, você sem me deixar sair. Não era pura a nossa história, como que maculada pelo meu empenho em te deixar, estando eu ali só por circunstância dos acasos, desventuras, escolhas antigas de ancestrais que repousam pesados como chumbo em algum lugar agora a quilômetros daqui.

Mesmo distante, eu não posso dizer se um dia te deixarei de verdade, ou, pelo menos, se haverá alguma forma de eu te esquecer, de não pensar em voltar a ti e aos teus horizontes mais belos. É improvável, dadas as minhas décadas, que responda precisamente para onde quero ir, onde quero estar, onde me sinto bem e sonhador. Acho que requisito de casa é onde o sonho é sereno, onde a fagulha da esperança acende sem razão, onde os toscos detalhes são trunfo maior. E não tem benta fronteira, sagrado templo onde eu me deito assim a ensaiar meus íntimos desejos. Onde eu pouso a cabeça no travesseiro, despreocupado com os tempos, os vícios do mundo e meu lugar neste tempo. Outro dia escrevi que eu me escondo na arte, que eu mergulho nos livros tantos que me cercam, tentando achar na enchente um lugar seguro, que chamei de refúgio. Talvez, então, minha Pólis não seja física, talvez seja ela um instante no tempo, um conjunto de palavras, de cenas, o próprio cinema, que se manifeste quando vejo, que me receba quando eu me ponho a ver, ler e escrever. A minha paz nasce aqui, no momento em que eu costuro a minha consciência em alguma lógica ora literária, ora terapêutica de achar sentido na linha de coser a história, ponto a ponto, causo a causo.

Talvez seja a minha pólis meu próprio corpo, minha morada que não se descola da minha consciência, como uma tartaruga que se recolhe dentro do casco e ali permanece segura, assustada, mas segura, e por óbvio não divide com ninguém aquele vazio. Minha pólis é, portanto, limitada à população de um, limitado a ser eu habitante e regente de uma morada, declamando poemas nas praças como um ato mnemônico da minha história. Uma sátira da Pólis dos gregos, sem conselhos ou assembleias, sem povo e somente um eco de muitas existências que me atravessaram na corredeira dos anos.

Meu corpo é minha pólis, e talvez as vozes de minha ágora clamem por um inédito e singelo ato de amor.

Meu corpo é minha pólis.

- A

 


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domingo, julho 03, 2022

Meu refúgio



"¿Qué hace un autor con la gente vulgar, cómo ponerla ante sus lectores y cómo hacerla interesante? Es imposible dejarla siempre fuera de la ficción, pues la gente vulgar es en todos los momentos la llave y el punto esencial en la cadena de asuntos humanos; si la suprimimos se pierde toda probabilidad de verdad."

Capítulo IV de la novela “El Idiota”, de Fiódor Dostoiévski.

Epígrafe de Los premios por Julio Cortázar, 1960.

Meu refúgio

Meu refúgio é a arte. E quando a vida doída, sofrida, me mata, quando o sorriso da moça me assalta, eu me escondo no livro, no cine, na carta, na música velha e bebida barata.

Meu refúgio é a arte. E quando ouço na esquina dos bares as tuas velhas canções, me estalam no peito funestas paixões.

Meu refúgio é a arte. E quando exausto me deito e praguejo calado, espero ansioso brilhar da soleira teu riso cansado.

Meu refúgio é a arte. E quando não houver mais refúgio, quando tudo for vácuo, hei de abrir o livro, lembrar dos teus lábios, adormecer nas rodas do tempo a dor do passado.

Meu refúgio é a arte. E quando lembra minha boca teu gosto de fel, eu volto à pena, à tinta e ao papel, lamento a chaga que se abriu por descuido, repito qualquer bordão de mãe, algum causo antigo.

Meu refúgio é a arte. E quando tu me ofereces abrigo ou caminho, eu desvio o trajeto, me faço abjeto, p'ra que ao deixares meu teto não lhe doa também a falta que sinto.

Meu refúgio é a arte. E quando partires p’ra longe, quando deixares o ombro, quando fores de outrem, serás também fraco abraço de neurônio, novo espaço de um parágrafo, de cena, sala da filosofia que se esgueira nas voltas do meu dia.

Meu refúgio é a arte. E quando cansar-me da rima, da mais tola e estúpida métrica mínima, vou então cantar à sorte de não mais ver-te em tudo, nem no verde, nem no outro, nem nas moças bonitas ou no medo. Do mundo.

Meu refúgio é a arte. E quando eu quiser me esconder, me guardar de ti, não será pessoa ou moeda a me encontrar aqui. Será enfim o choro, o artista e minha teimosia que irão me salvar dessa crua agonia.

Meu refúgio é a arte. E quando teus olhos me fitarem de canto, tentando achar meu riso, o mais bobo, talvez seja então tempo de choro, de mágoa e de pranto.




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quinta-feira, janeiro 02, 2020

Todas as ignescências


Hasta lo inesperado acaba en costumbre cuando se ha aprendido a soportar. (Julio Cortázar, Todos los fuegos el fuego, 1966.)

Divisava então o espírito
Que o hipnótico vestido ornava
No topo da cabeça desciam os fios.
Pensava ser sangue, pensava ser raiva
Timidez até, mas era lava...

A brasa imperativa escorria-lhe, ora leve, ora bruta, pelos ombros. Eram ombros fugidios, nobres, como se o tempo tecesse voltas mais longas em volta de ti e retesasse a corrente dos segundos, minutos e das horas. Um maneirismo curioso dos olhos fazia-na mais notável quando sem a intenção encontrava os meus à distância e recolhia-os ao copo e à vista. Não tinha porquê – eu pensava com os cubos de gelo a derreter em meu copo... Doía-me a fuga!

Apesar de já bem moço, era de gênio dócil, não haveria de fazer-lhe mal nenhum. Justificaria essa sentença por não ter sido marcado pela cicatriz da rudeza ou da impulsão, por isso pacientemente brincava de medir os passos até a ponta dos teus dedos miúdos, brancos como a pele – e de me ver ensaiar algumas palavras de mais ação. Dado o tempo que amadureceu essa narrativa, decerto me esqueci de guardar nos palácios da memória que foi que dissera para prender-lhe a atenção. Não precisou força para que o oposto ocorresse, pois – regra feita e antiga – não se brinca com a tez e a temperatura dos cabelos. Arderam-me as bochechas logo que pousou em mim os apertados olhos em um sorriso silencioso. E veja tu que não sou de causo ou anedota. O sorriso viera de presente (!), gratuito e sem medo. A lava seguia escorrendo pelas mãos, entre os dedos, o que não escondia de fato a minha surpresa.

O som e a multidão corroíam os tímpanos e despertavam os pudores. Era eu a presa ou a raposa? Num susto, lembro-me, sugeri a fuga ao primeiro badalar da madrugada. Eu já com os sentidos marcados, desejando silenciosamente que a boca rubi pousasse serena sobre a minha. E o fez, como se não fosse preciso cerimônia ou convencimento... Tímida e lentamente como eu desejei que fosse, provando-lhe a eletricidade que agora inundava meu rosto corado de intenções. Era uma espécie de confissão ou teste, o qual passara sem entender a razão. Minha mente inebriada de ideias muito à frente do que aquele tempo nos oferecia, travando uma batalha intensa com a necessidade de controlar os arrepios que me indicavam aonde ir. Era tempo, mas talvez retrato. Acalma-te.

Bem perto, tomava-lhe as mechas ainda sem a familiaridade que desejava, organizando - enquanto sentia a respiração misturada à minha - os fios mais rebeldes que se fundiam aos meus. Sentia-os fazerem cócegas pelo meu corpo, aventurando-se atrás das orelhas, braços e pescoço. Eram levados pela pouca brisa para conversar com os meus curtos e discretos como mandava o ofício de professor. Sabia já de pronto que talvez fosses tu a flor da moita, ou alguma ninfa, sinal de sorte. Havia certo tempo que eu não sentia os músculos cederem assim, pouco rijos; não diria frouxos porque não cai bem, mas amenos, calmos, desalarmados. Era eu já um corpo celeste em órbita, um errante planeta como o de Trier, porém sem a responsabilidade de destruir, apenas de criar à luz refletida da íris mais viva que qualquer melanócito se pôs a colorir. Os olhos não fitavam somente a minha face, mas a minha história, despiam-me sem que eu tivesse escolha, viam-me através e sorriam de volta enquanto as mãos corriam as costas já um pouco agitadas. Devia ser uma maldição e uma benção carregar aqueles orbes, quanto poder...

Os copos tilintavam no ritmo dos corpos – ou seria o inverso? – enquanto suprimidas minhas gargalhadas se abafavam na sua pele, a qual desprendia uma fragrância nova e pura que eu começava a conhecer. Tínhamos a cadência da perdição, e eu precisava não achar saída. A noite avançava fria sobre aquela miríade de prazeres, enquanto no abrigo abaixo da escada eu a tinha hipnotizada em minhas mãos e hipnotizava-me também junto aos padrões repetidos do vestido estampado que, lisérgico, eu projetava arrancar devagar. Olhava a renda a tentar organizar algumas ideias, porém cada pequeno movimento – por mais suave e frugal que fosse – roubava minha concentração. Cada um contribuía um pouco mais para a confusão dos desenhos, convidando-me a uma breve e atrevida alucinação. Queria poder materializá-los mais uma vez para que entendesse como eles me encaravam; deviam ser polígonos ou fractais monocromáticos, alinhados como os astros o fizeram naquela noite impossível, um desenlace de moedas lançadas, dados e acasos.

Havia, claro, retumbante na minha mente aquela canção que brincava sobre dez decisões inteiras que moldam nossa vida, aquela que caçoa da pouca consciência que temos da maioria delas, talvez cinco... Eu temia que aquela fosse uma em meio a essa estranha estatística, mas era demais para aquele sopro de tempo. Desejo, assim, de forma isolada e súbita, sempre me sai como uma pequena alegria e uma pequena morte; um paradoxo que entre os dedos eu tento agarrar enquanto teimoso escapa pelos dedos em tom de despedida. E talvez fosse a hora. Chamavam-nos à porta, hora de ir, já o glamour, as gargalhadas e a música silenciaram-se sem que pudesse notar – decerto efeito das hipnoses vindas do vestido a embaralhar a razão.

Desconectar-me daquele templo pareceu-me um pecado – ainda que fosse herege. Recuar daquele impulso era a semente, a essência dos erros mais infantis... O rosto fumegava ao compasso dos tecidos, derme, epiderme e alma... As palavras falharam em ganhar vida, e nessa falta nasceu este escrito, vontade de redimir o desconcerto do relato. Se fosse hora de partir, ficaria enraizado ao instante, sincronizando minha respiração e permitindo que cada pensamento derretesse em contato com os fios de magma. Na saída, como uma surpresa, um presente, ela pousou brincalhona no estofado já um pouco envelhecido do carro que nos esperava sob o sereno. As gotículas desenharam na nossa ausência centenas de pequenas bolhas de água sobre a lataria alva como a pele da dama. No caminho de casa, eu pisava gentilmente o acelerador, fazendo durar cada fração de milha. Temi, porém, que adormecesse, mas ela teimou em me vigiar na direção, colecionando minhas dezenas de expressões a confessar um prazer discreto e ingênuo de tê-la entregue à companhia. No alto falante um som delicado começou com Tomoko Aran ou Taeko Onuki, que durou pouco até eu desejar vê-la espreguiçar sobre os lençóis brancos. Fuzilou-me a lembrança de que por descuido ou receio havia esquecido de estica-los. Acelerei; junto a uma enorme antecipação por ver os cabelos tingirem rubro a branquidão quase estéril do aposento, lembrando-me das anedóticas e risíveis críticas dos amigos. Jamais saberiam desse pequeno prazer, o quanto ele me remetia a um canvas vivo e imaculado, o qual eu jamais pararia de contemplar se me fosse assim dada a chance de escolher aquela que ali deitaria.

A complexa rede, a aquarela de pele, corpo e palavras me fizeram absorto em prová-la. Ainda que parcialmente sinestésico, o paladar torna as experiências mais intensas, dado que junto dele a audição de um prazer secreto se fazia desvendado ali mesmo enquanto eu saboreava devagar as suas belezas. Talvez fosse um ponto fraco ou uma virtude que eu descobria, ambos sendo um privilégio construído às pressas mesmo quando me indagava sobre meu cansaço de fazê-la estremecer as pernas. Não tinha tantas possibilidades assim, era um estranho vício que reverberava na história, o risco somado ao impulso, à pulsão de fazer-nos um, participar e sentir surgir eruptivo de sua voz, músculos, olhos e pele o que eu costumava brincar de supernova – cientificismo até nessas danças. Erupção que somente o vermelho mais puro de um estudo de cores saberia explicar. Era linda, era bela, palavras pouco fiéis à imagem que tento aqui provocar. Linda e bela ou outro adjetivo remetem a figura estática e dada à contemplação, inerte. O que eu via e tocava era apoteótico - e não se espante sobre o divino – eu poderia ficar horas contracenando com ela no ninho que guardava as brasas a chamuscar o linho, formando curiosas voltas e desenhos que eu escolhi conhecer. Embaraço, não o de vergonha, mas o físico. Fio sobre fio, corpo sobre corpo, e força. Manifesto do desejo, menos cálido talvez, mas a própria falta de conhecimento dos atalhos da dama fez-me genuinamente mais ávido a versar-me nas letras de seu corpo. A esse ponto eu me queimava nas madeixas rubis e a deixava costurar-se no encontro dos móveis até se aquietar num prazer que apenas à vista eu poderia partilhar. Não havia pressa, somente uma natural ansiedade por tentar encontrar um final, que ali era tão improvável quanto nomear as personagens de um romance russo. Ela não era só um caleidoscópio a mudar em minhas mãos a cada gesto, mas um fractal orgânico de pensamentos, sensações e prazeres, onde quanto mais eu acessava mais me perdia; acompanhado de suas deliciosas gargalhadas de êxtase e sadismo a me ver num falso e imaginário controle – tão logo arrebatado pela força de suas pernas a me manter ali subjugado aos seus caprichos cruéis.

Sua boca já se tingia de carmim quando notei que por impulso ela mordia os lábios tão forte que superava a razão de se frear. Pouco a pouco – e isso eu jamais esqueceria – ela esculpia uma cicatriz profunda que eu pude sentir – e aqui eu faço uma pequena menção ao ritual do cisco de Nabokov - pois como num beijo eu quis sentir com a ponta da minha língua o pequeno corte derivado de seu impaciente deleite. Era poético, eu dissera, embora pense ser o único a vê-la assim. Também não creio haver humano capaz de pensar isso como transparentes e subjetivas poesias, dado que um ato tão instintivo e já desprovido de brilho, raramente guarda essas pequenas luzes. E talvez não haja precedentes que narrem história gêmea à minha a título de comparação. Mas isso eu não saberia dizer por certo.

 Enfim, voltemos. Sua boca pulsava ao ranger dos dentes, enquanto a minha tentava sarar a dor advinda do gozo. Ela se mordia e trocava a ordem dos gestos, como se quisesse me contar de um delírio qualquer. O vestido pousava fora da cena e eu me segurava para não olhar, competindo com a luz e sombra refletidos na pele da moça, tudo isso sincronizado com o calor dos cabelos e discretos pelos, queimando-me e fazendo-me senti-la úmida, ardente e sensível a qualquer micromovimento que eu arriscava. Sua voz balbuciava lentamente ao meu ouvido enquanto eu pousava a cabeça nos ombros para inundar os tímpanos com suas confusões. Os lábios ainda carmim se escondiam entre os dentes a mordê-los e enterrá-los num jogo dialético de um apetite inefável.

Eu já ofegava, ansioso e refém de sentimentos que agora nem a idade me ajudaria a descrever. Assustei-me um pouco com a cadência de dois em um só, mas talvez fosse só a euforia de tudo acontecendo de novo. E de novo. A essência da descoberta, o sorriso sádico que escapa às aparências, a mão que encontra um rosto rebelde, ironicamente com ternura e volúpia.

Ao final, quando a virtual meia noite se fez concreta, os raios de sol de um meio-dia veranil irrompiam da janela. A consciência despertava-nos daquele fragmento de tempo, presente das incalculáveis coincidências. Ambos trêmulos, eu já me perguntava sobre como iria dirigir até a casa da pequena com os sentidos tão consumidos pelas marcas que ela deixara. Não podia insistir, regra simples da modernidade, para que repousasse ali, embora não só do simples prazer meu riso frouxo se fazia ali evidente no rosto, mas a chance de tê-la aninhada nos meus ombros também. Como na ida, acelerei o mais devagar que pude para levá-la até sua casa. Era justa a troca que eu propunha, inconsciente do risco de esperar mais ouro daquele dia, mais do que o acaso me presenteara sem a devida retribuição de minha parte.

Um beijo longo selou sua despedida, enquanto uma movimentação estranha no jardim agitou-a na descida do automóvel. Os olhos claros me fitaram uma última vez, suficiente para que eu reafirmasse a realidade que de forma juvenil eu tateava.

Na minha volta para casa, a cena se repetia... Os móveis se liquefazendo, outros emergindo, uma tensão que uma faca seria capaz de fatiar... Até que um inocente e puro sono me arrebatou como se eu imergisse num oceano imponderável, escuro. Na estante, ao lado, o telefone me chamava minutos depois sem sequer respeitar minha boba e particular alegria de um amante. Atendi. Uma voz rouca, tão velha quanto o tempo pode alcançar, me achou ainda meio torpe procurando os óculos. Uma voz masculina arrastada que eu reconheci logo, a qual me fez baixar os olhos em reprovação. Não esperava isso tão cedo.

_ Sr. A? Doutor Bauman falando. Precisamos conversar. De súbito me alarmei com aquela voz, pondo-me de pé, olhos abertos e um pequeno suspiro de consentimento correu minha garganta ainda queimada pelas centelhas da noite passada.

_ Ah, naturalmente. - respondi, entendendo meu papel – vou me vestir. Não cabia contestação. As coisas eram como tinham de ser. E havia também aquela velha frase de que as coisas acontecem por alguma razão. Coisa que eu sempre rechacei sem dar dois dedos de prosa.

O som oco do telefone se encaixando na alavanca seguiu retumbando na minha cabeça por alguns minutos. Sorri com certa ironia, mas guardei as vozes da noite nas salas mais interessantes do palácio, antes que meu compromisso varresse dali qualquer vestígio. Dr. Bauman não iria se zangar com um pequeno atraso e um deslize como esse. Não é assim que terapeutas operam. Cheguei ao consultório com duas batidas na porta, ao que a criatura frágil e antiga me atendeu. Olhou-me nos olhos com certa compaixão e crítica, pondo de lado as cerimônias que temos no começo de cada sessão. Eu sabia que a tarde ali seria demorada, pois havia muito por dizer. E precisava. A máquina de café apitou um som agudo avisando-nos de que o elixir que nos mantinha acordados havia ficado pronto. O velho me passou a xícara que segurava com as mãos trêmulas, a fumaça me alertando do quão quente estava. Num longo suspiro ele iniciou sem que eu antes pudesse me preparar. Copiei o suspiro como se elaborasse as ideias com ele.

_ Não há mistérios. – eu disse logo - Aconteceu mais uma vez.




A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

sexta-feira, setembro 27, 2019

Flora.




Essa história deveria ser escrita a quatro mãos, mas eu, teimoso que sou, terminei por antecipar sem saber se você iria um dia pousar suas penas para me ajudar a narrar essas belezas. Assim como nós, ela é um produto de dois, e será injusto se jamais soubermos o que teus olhos vêem.


***

02 de outubro, 06:26

Mal o dia amanhecia e com os primeiros raios de sol suas íris jaboticaba já me espreitavam na beira da cama. Eram olhos curiosos e ansiosos como jamais vira antes, ferozes até. Não importava o dia da semana, circunstância ou data comemorativa para que ela procurasse meu vagaroso despertar antes que o alarme de cabeceira me chamasse para a realidade. Esticando-se na pontinha dos pés diminutos, Flora me achava imerso em algum sonho desimportante, entrecortando a respiração para não me alertar de súbito. Tão logo seu ar se esgotava nos pequeninos pulmões, ela juntava mais numa mistura de gargalhada e desespero brincalhão, seguidos do gesto mais puro de esconder o rosto nas mãos, como se desaparecesse da cena.

Com os mesmos frágeis pezinhos ela se esforçava para não fazer crepitarem as tábuas que revestiam o chão frio da casa, andando como os gatos dos desenhos animados ou, como ela gostava de dizer, Shere Khan, o tigre malvado do Mogli... tensa, ansiosa, calculista.  Embora ela não soubesse, com o simples ranger da porta eu já espiava a sua invasão, achando graça das suas tranças que escorriam delicadas pelos ombros, a balançar de um lado para outro. Eu sempre me achava intrigado sobre como aqueles cabelos tão grandes se equilibravam naquele tamanho mínimo de gente – e me lembrava da garota de Gabo em “Do Amor e Outros Demônios” cujos cabelos não paravam de crescer. Eram negros como a parte mais escura da noite e o esmero das voltas que eles davam se traduziam em experiências engraçadas e metafísicas que só os pais céticos sentem com um quê de inação – eu incluso entre estes descrentes. Ver aquele ser me fazia perplexo, e às vezes sorrindo bobo para tamanha alegria e calma, duvidando em parte das possibilidades de essa pessoa ocupar esse lugar no tempo e no espaço junto a mim, sendo parte do que sou, do que eu sinto e do que eu penso, a depositar toda a sua confiança e admiração num par que se fez um para que ela existisse e que se colocava ali a amá-la e acalmá-la. Essa reflexão jamais a alcançaria, talvez somente quando tivesse os seus, talvez numa conversa mais difícil no futuro, ou quando se percebesse família.

Esses pensamentos rapidamente se dissolviam no meu estado sonolento, substituídos por um rosnado e um salto para assustá-la, ao qual ela retribuía correndo animada pela casa dizendo que o papai zumbi bonzinho tinha acordado para levá-la à padaria.

Quando “o papai zumbi bonzinho” não acordava – e não era raro -, chamava-me aos sussurros, fingindo ecos inexistentes no quarto, repetindo as palavras papai, zumbi e bonzinho em volume decrescente, que eram logo absorvidas pelos meus sonhos mais superficiais. Sua mãe não tinha a mesma sorte de ver aquela cena, dado que o sono pesado garantia 30 minutos preciosos de preguiça dominical - tempo suficiente para acontecerem as voltinhas do balé, as acrobacias em uma perna só e o progresso com o ensaio da dança de formatura. Eu não hesitava em abraçar Carola, mesmo que repousando ao meu lado em seu impecável robe, pois ela me mataria se a fizesse perder a pequena girando e cantando a convidá-la para a doce aventura pelos Reinos da Rua de Baixo. Apesar disso, ela rejeitou dessa vez o convite com uma manha serena, um beijo doce e um carinho nos meus pesados cabelos: “sua vez, você sabe” – ela dizia entredentes e de olhos fechados. Corrigia - perfeccionista que era - as tranças de Flora para não “impressionar” e também a minha franja. O recado estava dado e a missão de levar a princesa até o reino dos doces era só minha.

Então, em uma roupa qualquer, calcei os chinelos ao pé da cama (frios), talvez ainda meio tonto por levantar rápido demais. Isso ajudava na interpretação do papai zumbi bonzinho que acordava faminto por pães e chocolates, e também era o ritual favorito que Flora encontrava pela manhã.

No trajeto, acoalada em meus dedos ela contava e inventava histórias; contos que me faziam crer na possibilidade de haver dons hereditários de alguma forma. Os enredos eram tão democráticos que até a formiga que carregava um pequeno graveto até seu ninho ganhava contornos complexos: uma família, um terapeuta e uma aventura até o terrível império dos cupins para resgatar a rainha. As maritacas, que se amontoavam nas palmeiras da estreita rua, cantavam para ela que hoje o padeiro havia feito um bolinho de chuva especial. Do outro lado, o solitário gatinho esperava na porta da casa de rações pelo seu fiel dono, que sairia em poucos minutos para levá-lo ao parque de diversões dos felinos - um lugar secreto que somente os sacerdotes gatínicos conheciam. As histórias eram as mais diversas e muitas vezes eu tinha vontade de registrá-las em um caderno para contar-lhe depois de alguns anos. Ao lado de Flora, fiel e atento, o estimado amigo canino a ouvia sem se distrair, agitando a cauda a cada interpelação sem perder uma palavra sequer de seu monólogo. O pelo denso e caramelo do animal brilhava com o tímido sol primaveril enquanto ela o acariciava para não perdê-lo de vista. Os olhos da pequena sorriam junto de seus dentinhos que se intercalavam com banguelas, denunciando seu conforto ao receber a brisa e o cheiro de pãozinho quente.

Quando pisamos na soleira da padaria, seus olhos gigantes fotografaram cada vitrine, cada estufa e cada novo adorno do que ela chamava de santuário do apetite – eu adorava esse nome. Ainda grudada à minha mão direita, a miúda me seguia pelos corredores a sacudir as tranças e com um grau de animação sobrehumano. Os olhinhos brilhavam ao fitar bolos esculturais, tortas dos mais variados sabores até acertarem em cheio o balcão de guloseimas. Havia algo de místico sobre esse ritual, encantador até para quem passava por nós a ver o entusiasmo de Flora a contar cores, sabores e, hipnotizada, exibir suas janelinhas. Quando eu perguntava o que levar para a mamãe, ela se punha a pensar com uma dedicação invejável. Os dedos nervosos coçavam o topo da cabeça, mostrando o medo de errar a escolha, a indecisão e incerteza nas suas formas mais viscerais. Talvez ela pensasse que isso iria lhe custar os momentos de preguiça e cócegas que teria sob os pesados cobertores de Carola – e como eram bons estes cobertores. Estava frio naquele dia e o noticiário prometia chuviscos logo mais. Perfeito para café da manhã na cama, giz de cera e cabaninha a tarde toda comigo e Carola – que provavelmente passava um café distraída e se alongava para divertir a pequena. “O chocolate de gatinho!” – ela fez sua escolha – “A mamãe gosta dele, mas daquele mais forte... Eu acho, hihi.”. Ela havia acertado em cheio, e o rapaz do balcão já atirava dois deles na sua mão que mal conseguia coordenar a guia do cãozinho e os dois tabletes que a alcançavam. Eu então ficava com a parte mais trabalhosa de escolher os pães e um bolinho mais discreto para equilibrar os trocados. Missão cumprida.

Com medo de derreter as guloseimas, Flora passou-os a mim para que ficassem na sacola. Sua ansiedade estava mais em como ela imaginava o rosto de sua mãe a medir a surpresa por esse pequeno agrado do que qualquer outra coisa. Ela amava, assim como eu, presentear, ainda que não soubesse que era, ela mesma, um presente todo dia para nós, renovando-se e crescendo. Entrando de novo em casa, ela encontrou a mãe como eu imaginava que estivesse: um potinho de sorvete nas mãos e a expressão engraçada de ser pega fazendo algo errado. “Já voltaram?” – Carola sempre se surpreendia com nossas passadas largas por causa do chão de lava – “Tem café, seus bobos. Me flagraram assaltando a geladeira”. Essa frase era uma melodia aos ouvidos. Atravessei a sala antes de Flora,  para estalar um beijo em Carola e arrumar a cesta de pães. Tímida, a pequena se aproximou faceira e fez a indagação: “Adivinha, adivinha, o que eu tenho na minha mãozinha?”. Carola se abaixou com as mãos correndo-lhe as tranças, já um pouco desfeitas, até que com as costas das mãos acariciou as bochechas de Flora, terminando no queixo que era um clone perfeito do seu. Ver as duas frente a frente me agoniava por tamanha semelhança. De mim, Flora guardava o nariz e a boca de coração (e talvez o amor pelos bichos e as flores), o restante era indubitavelmente a potência de Carola traduzida na sua mais bruta forma. Uma oportunidade de imaginá-la criança, coisa que poucas fotografias me mostravam. “Deixa ver... Um passarinho? Uma cartinha?” – Carola via, segurando o riso, a embalagem de chocolate que mal cabia na palma da mão daquele bichinho.  “Não!” – Flora gargalhava de ansiedade - “É chocolate de gatinho pra você, ué.” Entregando para a mãe, devagarzinho ela voltava a esconder o rosto nas mãos, ao que Carola reagia com um beijo e um cheiro. Dois passinhos para trás na direção da mesa e Flora sentou-se esperando que nos juntássemos a ela. Olhei meio desconsertado para Carola, que mais uma vez segurava o riso, decodificando aquela situação junto comigo. Comportada e quietinha, Flora, quase como uma súplica para levarmos tudo pra cima, olhava para nós esperando a decisão. Eu sabia o que a miudeza esperava de nós. “Vamos lá para cima, Carola, está frio aqui!” – eu dizia, teatralmente esfregando as mãos, batendo os queixos e com o riso já solto. “Claaaaro, está muito frio, muito mesmo. Não tem lugar melhor que coberta e TV.” – Carola prosseguiu com a cômica dramaturgia.

Os olhos da pequena brilharam como se os pares de jaboticaba tivessem dentro de si uma luz própria, branca, intensa, solar... O sorriso alargou-se quase em câmera lenta; totalmente diferente da corrida até o quarto, mais rápido que o som da proposta de Carola. Antes que a alcançássemos, ouvimos vindo do quarto um grito-risada, como eu gostava de definir. Um grito que não se resolvia sobre ser risada ou apenas uma expressão de surpresa. Ela sabia fazer isso bem.

Quando eu espiei pela porta, antes de entrar no quarto, vi que Carola havia montado não uma cabaninha, mas uma verdadeira fortaleza. Eu jamais alcançaria tamanha perfeição arquitetônica usando apenas os móveis e as roupas de cama. Estava lindo, e não demoramos muito até cobrirmos Flora de beijos e cócegas naquele castelinho. Deitamos com ela sobre as almofadas gigantes e eu contei mais uma de minhas histórias inventadas; dessa vez sobre um valioso quadro renascentista que guardava um segredo milenar de um tesouro perdido no Caribe. Eu podia respirar seu amor ali, atmosférico, denso e puro. Lacrimejei, discretamente, lágrimas límpidas que foram secas rapidamente pelas mangas de Carola, que me viu tentar disfarçar e franziu o narizinho em reprovação logo depois de mastigar um pedaço do chocolate que ganhara momentos antes. Apostaria minha vida que ela também respirava o mesmo ar que eu naquele instante e que foi mais rápida em enxugar as suas ‘bandeiras’.

Não demorou muito até que Flora repousasse, imersa na minha história. Aquela fortaleza era nossa casa dentro de uma casa dentro de outra casa ainda menor (uma casca de noz), e não havia lugar mais seguro que aquele instante. Protegidas dos ruídos do mundo, das tristezas-belezas apagadas que adoecem a modernidade. Eu e Carola tentávamos desenrolar os braços da pequena, evitando qualquer barulho ou movimento brusco que a acordasse. Moleque como eu era, foi difícil não rir da carinha serena e a babinha que se formava no canto da boca daquele serzinho.  As almofadas que sustentavam aquele corpo eram maiores que Flora, que parecia agora flutuar em nuvens de algodão.

Já fora da fortaleza de lençóis e móveis, estiquei-me na cama chamando Carola para um último cochilo até retomarmos o pique. Jogando-se na cama com o cuidado de um lince, ela deitou a cabeça no meu ombro a suspirar. Parecia calma e entregue ao presente, dedicada a sinestesicamente viver aquele dia, sem angústias e sem estranhos dilemas. Eu entendia bem dessas dualidades.

Imitando Flora com meus dedos no caminho da padaria, deixei que Carola porém acoalasse nos meus braços, pernas e corpo. Sinal de entrega e tranquilidade, votos de paz. Vibrei por dentro, respirando-a e sentindo a eletricidade correr sua pele. Um choque de galáxias inteiras, uma experiência cósmica dos nossos universos, como aquele pequeno planetinha que repousava ali em nossa órbita sem parar. Flora. Quasar de vida. Pulsar de sonho. Amor.


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por W Kenedy Siqueira.

segunda-feira, outubro 22, 2018

Minh'alma e os suspiros de Carola



Éramos eu, ela e deus naquele monstro de 36 cômodos entre quartos, salas de estar e alcovas sem muita utilidade. Se não fosse para sustentar as obscenidades de meus 23 mal selecionados empregados (divididos entre motoristas, limpadeiras e técnicos em ócio), eu destramaria aquelas saletas todas e faria de todas elas o santuário para Carola, meu sol. Um só quarto, enfeitado com quadros oitocentistas e fragrâncias a gosto de seu bem estar.

Do lado de fora, vejo mil metros quadrados de uma grama desbotada que custou-me os olhos  infectarem-se por um negrume fúngico horrendo. Fiquei sabendo após algum tempo, através de um veterinário amigo da família, que os vira-latas do jardineiro levaram tal praga para minhas dependências e fizeram “esmeralda” virar “carvão". Era como na mente de Carola, quando andaram os pensamentos vindos de estranhas e desafortunadas companhias que, mal sabia ela, desviavam-na e reproduziam suas mágoas apenas com uma roupagem mais bonita.  Se visse os tais fungos ela ia torcer-se de gastura e dar quatro voltas em seu nariz arrebitado tamanho o desgosto. “Simão, quantas vezes eu falei que não quero essas pestes na minha propriedade?”, eu não sabia se o nome era esse mas prosseguia com o cenho franzido. “Mas seu César eles são coitados demais, ora ora." Talvez fosse mesmo Simão, ou ele não queria me corrigir pra não ser despedido precocemente, pois eu preservava a duras penas uma falsa fama de patrão maquiavélico para evitar as pilhagens dos empregados de má índole. Eram pequenas taças, óleos e até grampos de tamanha insignificância que até um mendigo recusaria sem avaliar. Talvez trocassem por cachaça ou só colocassem na estante pra contar vantagem sobre o marido que queimava as sobrancelhas nos fornos das metalúrgicas, vai saber.

Assim eu perdia as estribeiras; de toda forma iria borrifar um dos meus remedinhos mortais o quanto antes, pois não queria fazer feio na cerimônia com aquela casa cheirando a mofo.
Na parte leste do meu castelo estou eu, regando com aplicação meus dentes-de-leão recém-transplantados da sacada de uma amiga. Não estavam lá essa maravilha, mas progrediam com os bons produtos e húmus que os nutria. Eram de um amarelo vibrante que me doía o coração pensar que em poucas semanas seriam devorados pelas tantas lagartinhas que ali se aninhariam e tão logo empupariam para dar luz ao meu aguardado presente. Pouco a pouco cada asinha delicada iria cobrir o vestido de Carola em sua cinturinha de moça, escondendo as discretas anáguas e os sapatos que mandei trazerem da magasin mais elegante de Paris.

Já me via titubear um pouco, e a cada passo de Carola em minha direção meu estômago se encolheria de nervoso e armaria uma explosão de choro misturado em riso. Foram difíceis nossos tempos, atribulados e complexos, e por isso uma emoção de alívio e admiração crescia dia após dia.

                                                                                          ***

Lembro-me como se fosse ontem. Os pais de Carola deixaram-na bem cedo. Não por doença, como deves pensar, ou alguma fatalidade dessas difíceis de prever. Deixaram-na, por esquecimento e descuido, à própria sorte. Eu, inocentemente, não sabia muito bem como aquilo iria estilhaçar aos miúdos uma vidraça tão linda. De meu lado, restava-me dedicar a ela minhas melhores histórias e sonhos tranquilos. Fazia-lhe a cama para aquecer seus pés e a enrolava em meus longos braços para que se sentisse, enfim, em casa. Chamava-lhe passarinho quando, sentada em meu colo, ela se aninhava para um cochilo; e, discretamente, tentava como um menestrel lhe distrair de dores e dilemas. Eram canções difíceis de compreender, confesso, mas nelas havia versos que acredito serem impossíveis de recitar sem que agora uma lágrima role a face desavisada. Lembro-me da minha indignação e da minha luta com seus pais na varanda de minha casa, a tentar alertá-los dos erros e dos perigos desse gesto – talvez alertando a mim mesmo do mal que faziam a ela. Carola era já nesse tempo minha preciosidade, minha cor, e mesmo na minha meninice eu confrontei com alguma maturidade (escassa!) o que eu mal podia compreender. Os dois me olharam torto, julgavam-me petulante, talvez esperando que eu fosse um resignado e tolo homem de sorrisos. Mas não era.

As engrenagens do tempo rolaram pouco a pouco apesar das rusgas. E, de tão empenhada, aquela mocinha virtuosa não se deixou derrubar. Juntou os caquinhos e foi assim correndo atrás de pequenos sonhos. Sabia equilibrar pratos e rodar no eixo. Os dedos dos pés já calejados e as ataduras firmes mantinham-na ali, de pé. Com algumas economias conseguiu finalmente se dedicar às letras. Desejava ser professora, ensinar como ninguém podia fazê-lo. De tão prodigiosa, aos seus pares causava certa inveja, como se ofuscasse sem querer os privilégios de tantos tolos a competir atenção.
Os ventos sopravam distintos depois de seu início com as didáticas superiores. Tão logo ia progredindo com os estudos, conseguiu uma chance de mostrar seu valor em um ginásio da capital. Era um trabalho simples, como lhe prometeram no começo, mas que logo apareceram alguns nós para repetir os roteiros desleais que eu também havia vivenciado em minhas empreitadas por dinheiro. Eram novos ataques à vidraça, mesmo que discretos. Já nesse período havia deixado para trás algumas belezas, recrudescendo na dança e na caridade, talvez por não conseguir se olhar e se achar nessa grande e temerosa bagunça de sentimentos.

Ainda que fosse difícil ela resistia. Afinal, derrotas eram coisas muito raras, mesmo que ela insistisse em dizer que pouco caminhara até ali. Curioso isso, pois eu via uma jornada diferente, árdua sim, porém repleta de sucessos e de confrontações tão complexas quanto uma partida profissional de xadrez. Ela era mais míope que eu nesse tempo, e talvez por isso tenha se perdido um pouco nessa leitura. Logo ela, tão boa com os livros!

A miopia levou-a a caminhos um pouco espinhosos e que sacrificaram minhas canções e meu pouco espaço. Ainda que de ballet eu entendesse muito pouco, tentava me equilibrar na habilidade que tinha de esperar por dias melhores, sabendo respeitar suas estranhas, porém legítimas escolhas e danças. No fundo, me entristeci, posto que não podia dar as respostas prontas ou escolher por ela, por mais angustiante que fosse assistir a tudo por uma crua e dolorosa lente. E, nessa dança, a música tocava alta, mas sem compasso. Eu fazia o possível para acompanhar, mas não era fácil me fazer diapasão ao mesmo tempo em que os dias engoliam as virtudes da minha pequena. Eu rodava sem parar, tentando me manter no enquadramento. Como as marés, indo e vindo.

Foi quando meu pouco recurso me levou a ter ideias mais criativas. Lidar com a escassez ainda era uma vantagem nos meus dias. Aliás, percebo que a abundância e a opulência, as cartas marcadas, as bajulações e refeições artificiais só provam o quão vazio pode ser um desejo e tão frágil uma verdade. História sem poesia, como que uma fórmula copiada em outros tantos roteiros e amores, é mera distração. São como receitas obtidas em um jornal de grande circulação, um manual sintético e frio que ela talvez tenha se perdido por decerto não tê-los lido com os belos óculos que vira e mexe perdia.

Meu primeiro presente fora um livro, que dizia a ela sobre amor. Que cruel distinção.

À parte essa constatação, lembro-me como travei uma batalha incessante para tirá-la daquele caos. Eu corria contra o tempo atrás de um sobrado e uma carroça que nos levasse aos pequenos paraísos que circundavam a capital. Era uma das poucas ambições que eu tinha além de tentar conhecer o mundo e levar meu pouco mas valioso saber para além das searas da nobreza. Eu sonhava desde o primeiro dia em vê-la da janela da sala preparar um café preto sem açúcar e reclamar da falta do requeijão. Num breve sorriso eu sairia porta afora no intento de achar a mercearia aberta, para daí retornar e pegá-la em um profundo cochilo matinal no velho sofá.

Talvez em um golpe de sorte e de certa insistência, consegui um trabalho numa venda próxima da casa de minha mãe. Pagavam um salário honesto que logo cuidei de converter num cantinho adorável com uma linda vista e um quintal. Escolhi quase instantaneamente, ao julgar perfeito para Carola ali descansar suas tantas cicatrizes e pôr as ideias em ordem. Se quisesse dançar, pintar, correr, morar ou amar, havia espaço. Levei-a uma primeira vez, para que ela sentisse certa inspiração, segurança, que confiasse em cada centímetro quadrado daquele humilde porém vivo sossego. A casa tinha um coração que batia rápida e intensamente toda vez que ela pisava aquele pezinho pálido de sabonete nos tacos quentes que mandei colocarem. De começo ela olhou com certa desconfiança, tateou com cautela feito um cervo na campina. Mas depois se acostumou ao cantinho, as antigas e novas histórias chegando aos ouvidos, tornando-se uma música calma, baixa e familiar. Por vezes, às fantasias, via-a se esticando no colchão, liberando as tensões de um dia cansativo de trabalho, mas logo me jogando um sorriso e correndo até o banheiro para um xixi, um arrepio e um banho quente. Digo arrepio, pois era como sempre acontecia, e eu adorava olhá-la, sem graça, se envergonhando por isso. Também a sentia tomando minhas roupas e vestindo-as como pijamas. Os elásticos acompanhando suas lindas curvas e, de súbito, peça a peça, nenhuma se emprestaria a mim novamente. Até mesmo as roupas a haviam escolhido, tamanho o propósito daquele fragmento de tempo. E ela ainda me perguntaria o porquê de minhas pupilas estarem tão grandes.

Carola teve roubado de si certo brilho. E por isso se meteu em redemoinhos de pensamentos e sabotagens mil. Era um resultado de uma vidraça que eu não conseguia proteger por inteiro, mas que agora poderia tirar da vista de tantos vizinhos e cruéis almas para tratar com paciência e cuidado. Ela pouco sabia dessa vontade, julgava-me louco. Mas eu tinha nos dedos cada mínimo passo, cada mínimo gesto que arrancaria dela um sorriso sem pesares e sem dúvidas. Não era um novo capítulo que precisávamos, era uma música distinta e mais serena. Longe das coisas comuns e do cotidiano vazio que tanto a consumia.

                                                                                        ***

Agora, em nosso castelo, tento retomar a concentração para regar as plantas e preparar o humilde presente. Decidi fazer seu vestido porque faltava o ofício da rendeira às vésperas e porque sabia que nenhuma saberia fazer o que eu pretendia até então. Pode parecer cruel a ideia de borboletas compondo uma veste, mas aquela frágil vidraça precisava de um reparo à altura. Nem mesmo ela percebia seus próprios passos e os dava meio sem olhar. Por vezes jogando ao vento algumas luzes que a mantinham acesa. As pequenas asinhas talvez lhe contassem uma história de metamorfose, de cura. Estágios que passam, com o nascimento de uma nova criatura. Era claro que ela se perdera desde o dia em que lhe faltou alguns pilares, e buscou em outros cantos essa falta. As asas – e ela sabia disso – não eram para voar, mas para rapidamente revisitar seus jardins, olhar para si  e testemunhar sua própria força, seu valor e sua transformação. Asas de borboleta, escamas que acumulam histórias e dedicação, que a escondem, camuflam do mal que o mundo faz e das rotas maquiadas de belezas que certamente ali não estão. Seriam os dias de dezembro a trazerem-lhe a paz numa arriscada viagem para o mar, todos lhe abraçando as dores e asas aos poucos sendo dispensadas, pois ela haveria de ter superado cada dor e cada tristeza. Não seria em vão, restava saber quando notaria.

Distraída, ela entrou pela porta do quarto, na direção da sacada onde eu me debruçava sobre as plantas. As roupas ainda eram as minhas, um livro na mão cujo título falava exatamente sobre consertar algo. Com um sorriso tímido, puxei-a pelas mãos e, à beira da lareira, contei histórias novas e sobre como seria amanhã: uma caminhada pela pequena mata, um esfumaçado gato a nos perseguir e um suspiro alto de calma e amores. Mirei nela as tais lentes, um desenho lindo de um tempo em que ela carregava menos medo e havia menos ruído. Hoje são muitas pessoas, muito barulho. Eu sabia as causas e tinha entre os dedos as mais belas formas de um tempo feliz, agora cada vez mais iminente. Em noites febris cheguei a amaldiçoar quem lhe fizera tanto mal, mas hoje em mim somente a ternura me move em sua direção.

Carola olhou-me nos olhos e viu minha alma, nua, exposta, verdadeira. E acreditou em cada palavra. Os lírios desabrochavam perto dali junto com uma esperança a cantar nossa história. Seríamos novas e lindas vidas. Vê?

quinta-feira, outubro 18, 2018

Sobre lírios inomináveis e covardes fugas.



Um bom guisado de carne, batatas e cenouras cozidas no vapor. Era só o que serviria naquela noite. Era engraçado como o hábito de Carlos de beber enquanto cozinhava o atrapalhava tanto na dinâmica da cozinha. Os legumes estavam já um pouco passados, a carne ainda era uma incerteza e as batatas ainda mais. Era como uma corda bamba para um inexperiente bêbado. Ele sabia que o vinho que comprara bastaria para três ou quatro jantares opulentos, mas o atraso de Giselda o forçara - além de roer as unhas e se lançar no parapeito de sua sacada por algumas dezenas de vezes – a também beber além da conta e esvaziar a humilde adega que seu salário magro podia sustentar. Ele acumulou as recomendações dos entendidos do assunto e foi pouco a pouco se preparando pelos meses que se seguiram até que a jovem aceitasse, enfim, suas ininterruptas e entediantes súplicas. Ao se debruçar na sacada ele aproveitava para sentir o cheiro das ervas recém-regadas que sua mãe, tão solidária, havia levado como presente de aniversário. Eram ervas de toda sorte que ele ainda se atrapalhava para tentar usar em suas empreitadas ao fogão. O bom moço já estava pouco sóbrio, por vezes errando a porta do quarto para checar as horas no velho relógio que reformou - um presente de sua avó. Mas, ainda esperançoso, talvez o efeito do etanol lhe roubando um pouco a capacidade de distinguir certo e errado, provável e improvável, ele se divertia com as novas sensações que o visitavam naquela noite. Esperar era uma excitante e inexplicável infinidade de possíveis roteiros, os quais ele mal se segurava para descobrir. Cada porta cerrada era uma nova história, um fio de lã de um novelo múltiplo e perigoso, teias nas quais ele, voluntário, iria se prender. Livros e contos não lidos, esse era o exercício daquela noite. A descoberta.

Giselda, ao contrário, estava pedindo seu quinto Martini há alguns quilômetros dali, dando o "tempo das moças" para então cair no alçapão que - não podia mentir - lhe causava certos tremores de medo e excitação. Já havia dispensado alguns aventureiros que não se aguentavam em suas frustrações, cadeiras e copos cheios. Tão logo o lobo frontal se despedia dos desmiolados e estúpidos rapazes, eles se animavam para importuná-la. Era curioso como o pingue-pongue que Cortázar tão inocentemente descreveu na novela do cruzeiro sem capitão era terrivelmente mais bobo e fútil no mundo real. Eram vazias interpelações e os discursos só não causavam vômito porque desperdiçar um Martini feito com tanto esmero seria uma lástima. A vantagem de se embebedar no Blues era a boa amizade que mantinha com Jacques, o barman franco-brasileiro que a protegia de qualquer armadilha desse tipo. No entanto, aquele era o pior lugar no qual ela podia se arriscar numa noite densa e provocante. Estava longe da casa de Carlos e talvez os tostões do táxi já tivessem se transmutado paradoxalmente em álcool. Não era alquimia, era vontade de se perder um pouco.

Enquanto, distraída, Giselda dava voltas com a delicada taça nas mãos, evitando revirar a bolsa para constatar seu descuido com a conta, mal sabia que seu par colocava em prática o que havia treinado por toda a semana, testando a receita e aprimorando aquilo em que a boa vida não conseguiu lhe letrar, a culinária. Apesar de todo esse empenho, ela não estava realmente esperando um jantar. A descrença em relação a Carlos se dava principalmente pelo desajeitado modo como ele propôs aquele encontro, um erro de convidar sem convidar, apostando que a mera insinuação seria o bastante para atraí-la ao seu covil. Giselda, apesar de ter se aborrecido com os péssimos modos do homem, já havia passado por coisas piores - mesmo que ela não as classificasse assim. E, de alguma maneira habituada, disse um sim apressado, porém farto em curiosidade por ver que aquela criatura peculiar havia elaborado as circunstâncias perfeitas para que nada escapasse de seus atentos olhos de folha seca.

Colocou-se então de pé; e, consertando a barra do vestido preto de lustrosas e pequeninas contas, reuniu o dinheiro que tinha, dobrou-o sobre o balcão e deu uma piscadela para Jacques que, num movimento charmoso com a cabeça, entendeu logo sua despedida. Após um último e longo murmúrio, a moça deu um passo firme em direção à porta, decidida a terminar o que começara. No caminho até a saída os adornos do vestido acariciavam os ouvidos mais atentos. Era lindo e ao mesmo tempo intrigante aquele caminhar, como que destacado da realidade, flutuante até. Mesmo que munida de muita segurança, a moça ainda se lembrava dos momentos em que teve de se sujeitar a humilhantes esperas em frente a interfones e esquinas frias. Torcia para que não fosse assim. Sua esperança morava na ideia de que Carlos fora o primeiro a evitar o tosco protocolo e pôr as cartas todas na mesa, esquivando-se de uma refeição artificialmente deliciosa e tão maquiada quanto uma gueixa em seu primeiro e triste treinamento. Ela já teve de aturar tudo toscamente posto a mesa, com cores falsas e um conforto que contava uma história previsível. Se começava assim é porque iria se deteriorar em alguns dias e ela voltaria a ser apenas um pedaço de carne, ridicularizada em rodas de conversas e um trofeuzinho estúpido ao lado de alguém semelhante aos aventureiros de bares e festas sem importância que arrastam multidões. Já fora vítima dos jogos de impressionar... Isso a balançava de vez em quando, mas Carlos ainda era um fio de esperança naquela selva em que se propôs a caminhar. Ele havia dito que a esperaria com a mais zelosa pontualidade e que ela não iria se arrepender. E, por mais raro que isso fosse, acreditou, e tomou um táxi até onde o dinheiro dava.

Distantes dali os pensamentos do homem orbitavam o possível desapontamento de sua convidada ao perceber a falta do vinho. A comida, que, na melhor das hipóteses, seria pouco apetitosa, o preocupava na mesma medida. Como um soco o desespero lhe arrebatou e o fez procurar as chaves no bolso da camisa com algumas pancadas no peito. Precisava comprar mais vinho. Cada segundo longe de casa era a chance de Giselda chegar, e de também ir embora caso o interfone, sozinho, não a recebesse como ele gostaria. Via-se numa espécie de indecisão, uma sinuca angustiante e sem saída – teria ele de pagar a conta? O lugar mais próximo onde poderia repor as poucas garrafas da estante ficava a algumas quadras de sua casa, sem qualquer garantia de estar aberto, pois eram dias estranhos esses de crise. Apesar disso, precisava jogar com a roda da fortuna, uma decisão óbvia, já que a mera possibilidade desta noite existir já era uma evidência de que nem sempre tudo estaria sob controle. Era uma jogada de risco, de fato, mas sua vida fora monótona demais até então. Num golpe único reuniu a carteira, as chaves e o chapéu, abrindo a porta com a delicadeza de um gigante, a pressa lhe consumindo a sutileza. Descendo as escadas, – evitava o elevador sempre com defeito e malcheiroso – deparou-se com Ana, a vizinha dos gatos, fazendo estranhos ruídos para atrair um bichano que havia escapado. Um boa noite breve se seguiu sem resposta, e ele já não escutava mais o que se passava em torno de si. Os degraus pareciam mais estreitos, porém antes que fosse possível qualquer acidente ele já estava na calçada, mirando a direção do mercado. Inspirou forte pela última vez, atravessou a monótona rua que levava ao seu apartamento e rumou semi-cambaleante ao seu destino. As vielas e curvas do bairro ainda tinham alguma vida, cães ladravam a noite e outros bêbados os acompanhavam em cantorias tristes. Ele sentia certa vontade de compor o coral, talvez por acreditar que a moça não viria. Contudo sua curiosidade estava mais aguçada que o normal. Seus passos o apressavam a cada metro que cumpria naquela procissão, a embriaguez se despedindo aos poucos, levada pelas lufadas de ventos que irrompiam dos morros que cercavam o bairro de Santana.

Perto dali, Giselda contava as últimas moedas do táxi, agradecendo a gentileza do moço ao dar um desconto amigável. Precisaria caminhar pouco até que finalmente concluísse sua parte no trato. O salto ainda lhe fisgava um pouco os calcanhares, mas o álcool anestesiava ligeiramente o mau jeito das pernas, sobretudo agora que o Martini fazia sua cabeça e brincava com suas ideias. Acelerando o passo, avistou o mercado fechado, em cuja porta uma luz bruxuleante anunciava uma oferta qualquer que ela não podia decifrar. Seria vinho? Salivou um pouco ao lembrar-se do último Malbec que experimentou na companhia de sua amiga Julia, mas sabia que Carlos haveria de escolher algo próximo disso – haja vista que ele logo perguntou o que ela iria tomar. Serpenteou por algumas esquinas e julgou estar próxima da casa de seu anfitrião. Seus pensamentos desorganizados a obrigavam a ligar uma espécie de piloto automático, fato que a removeu parcialmente da realidade. Esse descuido foi o bastante para que numa curva - ou reta, mas ela precisava de uma justificativa para sentir menos culpa – um muro orgânico e não muito robusto a interrompeu na caminhada. Um rosto familiar se abriu na medida em que o chapéu coco descia para uma reverência estranha. A moça despertou do transe martínico e seus olhos pediram uma trégua. Apertou-os com pressa e viu a figura de Carlos, elegante e com uma fala nervosa que ela não compreendeu muito bem. Ele estava alegre, como sempre, um sorriso quase infantil. Ela sentiu certo prazer naquela presença tão familiar e amigável, ele era um abrigo. Conteve-se um pouco, mas os calcanhares cederam ao magnetismo daquela companhia. Sua cabeça acertou em cheio o ombro de Carlos, amortecida pelo delicioso sobretudo italiano do qual ele repetidamente reclamava não poder usar no intolerável inverno dos trópicos. Um tímido oi quebrou a tensão, ao mesmo tempo em que ele lamentava o mercado fechado e a falta de vinho. Giselda, numa espécie de sono e abraço, balbuciou algumas palavras inaudíveis, enquanto ele pedia a ela educadamente a permissão para em seus braços irem para casa, pois o jantar já esfriava e ele ia se sentir extremamente culpado pelo fracasso das duas únicas opções que ele reservou para aquela noite.

Ao adentrarem o prédio, os chamados de felino de Ana ainda ecoavam pelo hall e pelas escadas. Ela ainda tinha esperança de encontrar o sortudo gatinho que havia descoberto como se livrar daquela prisão – pobre senhora. Giselda estava rendida, o corpinho já mole, guiado pelos braços igualmente fracos de Carlos, que tirava forças do carinho e da sorte de tê-la ali para chegar até seu apartamento. Subindo as tortas escadas do prédio cinquentenário, já se podia sentir o cheiro da receita inundando o terceiro andar. Logo que abriu a porta o relógio badalou onze vezes anunciando o quase fim da noite. Também em onze passos Giselda se guiou pelo sonoro cuco e cambaleou na direção do quarto. Ao passar pela penumbra da cozinha a jovem elogiou de forma brincalhona o cheiro da comida. Passou reto, ignorando o olfato atraído pelo guisado, dando uma gargalhada maldosa que fez Carlos pensar que era o mais puro sarcasmo. Ele estava menos ferido com toda a circunstância. Os floreios do vinho e do jantar eram uma estúpida desculpa para encontrá-la, mas estava orgulhoso de ter conseguido ao mesmo terminar essa etapa. Claro que ele também havia ensaiado algumas coisas pra dizer, mas não sabia se ela ouviria com tanta atenção, dado o estado em que chegou. Antes que ele a espiasse no quarto, foi até as panelas para guarda-las e reunir o jogo de talheres que havia preparado conforme as dicas de sua mãe. Se alguém pudesse fotografar aquele cantinho perderia parcialmente o fôlego, tamanho o capricho e simetria da mesa, a composição dos quadros, livros (tinha muitos livros) e o cheiro doce que partia dos móveis, dos lençóis e da brisa vinda da janela de correr.

Ao passar pela porta do quarto, Carlos viu aquela criatura de pele alva se projetando pelo extenso colchão em um perfeito contraste com a falta de luz ambiente. As contas do vestido entoavam uma suave melodia conforme sua convidada se acomodava e puxava o cobertor para si. Era um momento tão único que ele jamais ousaria interromper para lhe oferecer qualquer ajuda. Fora dali, os chiados de Ana já haviam cessado e ele sabia que a noite terminava nesse instante. Antes de voltar sua atenção a Giselda, ele se perguntou se o pobre gatinho havia retornado ou achado melhor destino. Torcia pela felicidade dos pobres bichinhos que habitavam o prédio. Este devaneio durou pouco, até que teve a ideia de ir até o banheiro da suíte e se olhar no espelho, procurando qualquer fragilidade no tecido dos sonhos. Se de fato fosse, queria permanecer um pouco mais, deliciando-se da presença de sua amada.

Lembrou-se do ruidoso relógio e desligou-o sem pestanejar.  Ao atravessar o quarto, Carlos ia pisando com cautela no piso de tacos, torcendo para não despertar a moça. Chegando na beirada de sua cama, acomodou-se no extremo de seu colchão, evitando roubar de Giselda algum calor que fosse indelicado ou impróprio. O teto da casa parecia sugar a atmosfera, deixando o ar cada vez mais rarefeito, levando dele algum resquício de sobriedade.

Quase fechava os olhos quando Giselda, abruptamente, se virou na sua direção. Como que em um movimento de susto e tensão... Os lábios entreabertos e secos lançavam nele um hálito do que ele logo reconheceu serem as flores aromáticas de um bom dry Martini. Deixou-se levar pela onda inebriante da bebida enquanto se esforçava para separar dela o perfume que se impregnou no sobretudo que esqueceu de tirar. Em outras ocasiões ele se amaldiçoaria por tamanho descuido, mas um involuntário sorriso se abriu na sua face agora em chamas de tanto desejo. Ele sabia que tinha de saborear cada segundo, cada ciclo de respiração de sua companhia. Era claro como o dia que no primeiro raio de sol o lírio que comprara para adornar o quarto estaria já um pouco murcho. Mas seu maior receio era de que a essa altura ela já tivesse feito o bilhete e esquecido propositalmente seu xale sobre a escrivaninha. Um ciclo que iria se repetir, e que ele mal podia esperar pela próxima rodada. E adormeceu em um sono despreocupado.