sexta-feira, agosto 26, 2011

Metástase.



Que eu fosse então seu brinquedo de estar, sua criança subordinada ou seu velho escravo sexagenário. Porque talvez só assim, mulher, na intrínseca dependência, eu aceite, enfim, calado, seus desvios e indiferenças, seus sadismos e perversões de fêmea adúltera. Sei que és a minha pequena incongruência de lados opostos que um dia se tocam no infinito e voltam a se desencontrar, mas é preciso aninhar isso, fazer algum sentido.

Sabe, chéri, você não é tão boa dona como se diz em noites regadas de álcool e infâmias; para tanto, vi que botou para os pobres o vestido carmim que comprei nas medidas erradas e por causa desse desnecessário capricho burguês - forjado a duras penas em Fundo Céu de uns tempos pra cá - desceu ao ralo meu suor disciplinado do posto-à-mesa e mesmerizou impúbere as juras secas do meu amor prosaico. E se ainda sorri imisciva exibindo essas indeléveis formas de alguém para quem o tempo decidiu não passar, se pra você é glorificante manter os grisalhos detrás do recorte das orelhas, ponha-se aqui em meu lugar que essa eu quero ver!


Realmente não sei o que é pior, Giselda, mas assumo que te olhar daqui da cama, cuspindo na pia e fazendo gargarejos enquanto ri, dói-me mais na alma que na vista; e cobrir-me a cabeça com o cobertor não resolve em nada, porque te conheço na mente ao desejo e te remonto quando convém; despida ou adornada com o bolerinho da mamãe, não importa. Conheço-te a cada centímetro de pele-neve, pele-atrevida ou em disfarces mil.

Bem capaz de eu ainda te deixar, mas enquanto o dia não vem e as palavras do discurso me fugirem aos lábios, vou enternecendo-a em amor barato e outras formas de chispar contigo para Samoa, Paris ou Viena, que é o que sonho - você bem sabe - desde a aula de geografia fatídica em que você me melou os panos. Balançava-se entre as minhas canetas parecendo inocente, criativa, contudo pronunciava já menina os caninos safados que transmutavam o anjo em cão e o cão em moça. Por mim, casávamos ali mesmo. O Mestre, como já caía bem em uma túnica, faria os votos e as bençãos. Você, entraria com a Vera dependurada nos ombros e eu colheria os feijõezinhos nos copos com algodão para montar seu bouquet. É bem verdade que os pimpolhos ficariam como araras num protesto, mas na escola secundária nunca foi hábito cultivarem nem mesmo os vaidosos lírios das literaturas aclamadas - por isso eles tinham de entender e fazer bonito no coro nupcial !

Eu sei que dirá que é insolúvel, oblíquo demais para válvulas de escape ou outras Clarices para comportar minhas expectativas. Também não tiro-lhe razão! Tanto já lhe provei que macho mesmo homem nenhum pode ser, e que hora ou outra uma mulher chega para tomar-lhe o que resta: e você chegou para mim. É sempre assim e o alazão está domado, embobece, morre. Todos morrem.

E tais cenas, assim logo de manhã, de você se emperequetando toda, já me furtam a força do trabalho para que eu a recupere só à noite - horário de suas abluções para encontrar Pedro Juán. Soube que ele tirou sorte grande no cassino Alvorada e você junto dele posando para jornais e revistas de estrelas. Por aqui, eu e meu rum amargoso comemoramos felizes a promoção de ajudante de almoxarifado, que renderá uns tostões a mais para os cigarros e as diálises.

Se eu bem quisesse desgraçar tudo para minha felicidade e vingança, denunciava-o por conta das sonegações que você me noticia e metia-lhe uns cem anos num cubículo fedido - com ratos e baratas disputando o almoço. Mas não, subtrair seus sorrisos é um crime insustentável para meu cotidiano e eu não seria capaz de conviver com a culpa que é seu pranto. Se bem que agora, com sua mãe defunta e as contas por pagar, tenho certeza de que viria correndo quando se visse desamparada e sem dinheiro para vestidos caros e noites de luxo nos "plazas" e "pallaces" da vida. É a luta pela sobrevivência, meu amor, e não tiro-lhe razão!

Se bem que há muitos meios de continuar respirando que fogem dessa perspectiva darwinista de que o egoísmo é mais afiado e venenoso que as presas da víbora mais assassina. Se bem que há outros meios de conduzir a vida que fogem dessa perspectiva neandertal de comer, foder e "comprar". Mas você faz pouco caso - acha que é tolice, que estou caducando - e me põe aqui a te esperar com o abajour queimado e uma pizza velha crescendo fungos na geladeira.

Ah, meu amor, onde foi que você começou a se perder mesmo ? Volto dia por dia para desvendar o mistério que é sua liberdade e nada faz sentido algum. Quanto mais me amou, Giselda, mais intensamente privou meus mimos e se desfez em flor; despetalando e involuindo sutilmente até minguar. Dói-me assim no peito. Finca, macera, roça e espeta, mas sigo esperando que você retorne às dezoito como outrora, trazendo meus biscoitos de polvilho e o café amargo da mercearia do seu primo Tristán; esperando que você desperte desse coma lúcido, peça desculpas por qualquer motivo e me embriague com aqueles beijos chorosos e soluçantes que só você sabe. Talvez seja mesmo uma utopia sem fundamento, mas aquele professor de geografia, com seu bigode seboso e barba por fazer, nos disse que os grandes fatos memoráveis nasceram de sonhos, embora tenha deixado os exemplos para a aula seguinte e tirado licença para não mais voltar. De toda forma ele devia ter alguma noção do que nos dissera - eu espero. Também não estou querendo aqui me justificar usando palavras de outros alguéns, portanto não me censure nessa exibição de sentimento senil e tampouco me obrigue a pedir o Zé para redigir essas coisas.

Aqui na firma estamos sempre muito ocupados com as metas e nos pedem favores o tempo todo. E se nos pegam debruçados sobre esse caderninho contando histórias de amores fracassados, ai, seremos mandados para a rua e terei de viver com as migalhas de papai. Deus me livre.





N.A.: o desenho pertence ao artista Alisson Affonso que, indiretamente, cedeu a imagem

quarta-feira, agosto 24, 2011

Cartas ao nosso anonimato.





18-07-86 - Hospital



Querida,


hoje eu resolvi deixar tudo assim, disperso, incoerente, caótico. Como de fato não vivo dia por dia com intensidade alguma, não importa se o dezesseis está antes do três ou se julho - no meu calendário - antecede maio. As coisas não precisam de uma cronologia adequada; deixa-se ir assim, sem pudor, e dane-se. É, tudo o que eu mais desejo é dizer isso para o mundo. A minha amargura é tamanha que mesmo as palavras simples me doem ao sair: obrigado, perdão e com licença se aposentaram há tempos do meu vocabulário. Me comunico em urros mal-humorados e ai de quem não entender.

Tudo está virado. Logo eu, tão falante, tão seguro! Por enquanto, só a vida em ficção, nosso amor platônico e aquele filme do Coppola que põem pra passar aqui têm me feito completo. Apostei em estrelas de mentira, em sóis distantes demais e perdi. Foi a beleza sedutora que me enganou, não você.


Saiba que não é questão de suicídio, desistência ou falta de vontade. Já não há mais motivos e eu não vejo utilidade nessas fugas permanentes. Ainda mais na idade em que estou, sinto-me em absoluto sono, cansaço e invalidez - não tenho energia para cartas de despedida e tiros no peito como o biruta do Vargas. Poderia ser um cadáver, que não saberia. Poderia ser um defunto e todos me abraçariam, trariam flores e me olhariam como homem digno. E falo isso porque a morte traz dignidade junto das desgraças: "Oh, puxa, André foi um homem e tanto!"; "Ah, que falta nos fará o Papa!" e por aí vai. A morte, por assim dizer, banaliza o coração pulsante e ri de qualquer um que ouse desafiá-la. Mas também traz boas coisas, apesar de meu limite há séculos já ter ido para o espaço e não ter como resgatá-lo dessa órbita inalcançável.


Agora percebo como é fugaz a nossa importância. Um tiro seco em peito aberto que me abriu os olhos para a concretude desconjuntada do mundo. Estar aqui ou deixar meu corpo desfalecer feito quebra-cabeça é uma ambigüidade abusada. Estando presente, já era pura ausência e - preto no branco - minha ausência não era notada. Grande coisa essa morbidez sádica. De toda maneira, tinha de estar lá, sempre postado como bom homem.



Eu realmente não sei o que devo fazer. Era, segundo minha lei, para tudo estar em seu devido lugar, pois, assim, a hesitação de deixar esse espaço e essas verdades não viria à tona. A certeza de criar e destruir é o que move os homens; e me move também. Ter a decência de me fazer como for - quadrado, retângulo ou linha - e, se insatisfeito estiver, botar-me em qualquer saco plástico e recomeçar até que alguém recicle: isso é viver com as chances e os azares. Contudo, essa prática é pouco corrente entre os meus e o fato é que lixo não retorna para a superfície; sedimenta e morre enviesado em seus próprios percalços até sumir; quando some. Mas não dá. Ser finito e irrecuperável é o humano. E eu, sem minha bússola, não sou nada mais que um itinerante. Minha dificuldade, para fins de comprovação, é ser comum e alimentar essa colônia mal sucedida de formiguinhas bem adestradas. Minha indigestão começa ao respirar o produto do trabalho alheio e ter a quem fazer considerações; ter de agradecer de olhos baixos e respeitosos as enfermeiras mal pagas e os cuidadores preguiçosos até que seus egos fartos inflem e me espremam contra as paredes elásticas até que essas se arrebentem.


Pois vá, minha querida Anônima. Trabalhe, ganhe, doe, lute. Seu pó, para sua infelicidade, não terá essas etiquetas, mas asseguro-lhe que – se sair daqui com o sorriso estampado e o termo de alta - isso não a impedirá de ser pó. Um pó de gente, que não fala nem se apresenta. Só descansa. Descansa suas conquistas e revive seus fracassos. Deixa-os borbulhando na memória dos teus e depois de digerido se torna vaguidão. Pois assim, fracasso por fracasso, tudo se molda como deve ser - infértil e fétido até que definha e os vermes da idéia vêm se alimentar. Roem cada camada e adentram pouco a pouco o arcabouço da intimidade. Te ferem e maculam até que não importe a vaidade para você tapar com as mãos o que te enrubesce as bochechas gordas. E assim é a dinâmica polvorosa que passa desapercebida nos nossos dias.


Disse-me um senhor daqui do hospital que o homem não foi feito para derrota. Tsc, quanta petulância. Talvez esse homem que pôs tanto significado numa frase de efeito não tenha enfrentado essas cadeiras dos infernos e a dor dessas agulhas filhas da puta que me picam de segundo em segundo. É assim o dia inteiro, meu bem, remédio atrás de remédio, e analgésicos que não acabam mais.


E é assim também que o dia termina: não há mais nada a se fazer. Eu não me suporto como antes, minha pele está horrível e minha voz já não disfarça as dores contidas. Os olhos marejados começam a gotejar no assoalho e, na minha pouca roupa, já vejo meus ossos cutucando a costura velha a ponto de rasgarem-lhe aos pedaços. E enquanto isso, tenho de ficar de olhos fechados, porque o trem passa rápido e ruidoso acima de nós. Imagino daqui de longe uns meninos olhando maravihados pela janela, uns adultos dormindo um sono perturbado. Sacoleiros, escritores e desempregados disputando um espaço na estação. Roqueiros de bermuda, com camisetas suadas, concorrem a prioridade com grávidas que estão a um passo de explodir em quem estiver por perto. Jornais populistas resumem o fim de semana na segunda-feira de futebol e menininhas vaidosas retocam o batom vermelho em lábios ressecados. Suas unhas, mal feitas; o chão, podre e imundo; e o ar, cianótico feito só, me sufocando e instilando veneno. Todos juntos para me compor estatelado nesse leito fedido. Os hospitais, sem dúvidas, são moradas provisórias daqueles cujo destino é o inferno; como que um aperitivo de toda a podridão e os excessos sulfurosos que lá se encontram. Os bons homens, esses de vida exemplar e conduta impecável, certamente morreram sós em camas aquecidas ou nos braços e afagos das esposas - foram felizes para o ‘céu’.


Acontece que aqui é ordem atrás de ordem: "Feche a porta, não tente entrar." Acelere de novo a maca: lá vamos nós. A claridade e as ferragens entrecortando o silêncio fazem a trilha sonora. Isso aqui nunca foi santuário de coisa alguma. E de novo: "Feche a porta; não tente sair, senhor. Na próxima estação tem cabos e fios de alta tensão. Será um instante breve: um choque. Se acabou sua viagem: fique atrás da linha amarela ou dentro do saco preto. Lá atrás."


Dê seu adeus e, se não tiver, dê a partida e lá vamos nós outra vez.

Já me cansei de mandar cartas à prefeitura para desviar a linha férrea que passa aqui atrás da minha ala de internação. Se não chegam até o gabinete do todo-poderoso, terei de ficar reclamando contigo por meio de quinze parágrafos e tal.


Tenho que dormir agora por causa do jejum restrito dos exames de amanhã. Tomara que sirvam aquelas bisnagas na hora do lanche porque suspeito que a sopa esteja estragada desde o final de semana. Se cuida e até sexta-feira.


Com amor, de seu eterno André.





A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog http://porleonardo.blogspot.com/.