
Era no despertar preguiçoso da vaga manhã, no banho de águas mornas à luz natural ou no chão gelado a provocar arrepios que eu me punha a recordar a bailarina. Ontem à noite, apesar da brisa cortante trazida pelo tempo seco do inverno londrino, decidi deixar o sobrado setecentista em que vivia com meus fantasmas para me dirigir ao teatro municipal decadente. Equipei-me com três ou quatro moletons de cores sóbrias, os quais me davam certo ar de homem parrudo e tomei nas mãos o molho de chaves. Era comum eu checar exatamente dezesseis vezes os trincos das janelas da sacada e quartos, além de pousar o bloqueio de madeira sobre o vão central que dividia os dois ambientes da casa. Só a partir daí, então, me era concedido o direito de deixar a casa e atolar os pés na neve densa que se acumulara por desleixo no portão interno. A todo o momento eu amaldiçoava a administração pública por tamanho inconveniente, para tão logo concluir a inocência da mesma e minha absoluta condenação. A pontapés enérgicos retirei o gelo que cobria a altura da minha canela; voltei a praguejar durante o ritual da segurança residencial e, quando me dei com o relógio, o tempo destinado ao percurso até o teatro se esgotara. O cartaz da germânica de pêlo dourado reluzente figurava minha mente de maneira aflitiva, agitada, zombando da personalidade sistemática que desenvolvi e da distração por seus olhos azulados, quase frios, a me encarar no momento em que soube de sua vinda à capital inglesa.
Após cruzar as adjacências de minha toca, dobrei uma dúzia de esquinas em velocidade moderada, pois mesmo que relutasse em imprimir um ritmo intenso para chegar a tempo na exibição de ballet, manco de nascença seria razão para dores nas articulações e músculos, agravadas ainda pelas baixas temperaturas daquele dezembro castigante. No trajeto, encontrei-me com ex-solistas da orquestra local jogando xadrez, dos quais testemunhei glória e fama agora degenerados pela idade mórbida. Acenei a eles com um sorriso sem muita empolgação ou elegância, arrastando aquela perna - estigma de desgraça - a alimentar minha hipocrisia: a situação deles não me era incômoda.
Segui sem muitas cerimônias em direção a meu destino. Tateei os bolsos a fim de tomar as trinta libras nas mãos e, fotografia mental de desesperança, vi meu porta-níqueis descansado no criado ao lado da cama. Ensaiei imediatamente os verbetes mais chulos que aprendi na meninice mas o que me assaltou de sobremaneira foi uma frequência suave em minhas costas, masculina, austera:
_ D. Garcia, não pertence a você este amontoado de notas e moedas ?
Tomei-lhe o embrulho da mão em uma fração de segundos. Encarei ofegante em seguida o corpo delgado e suntuoso de Mario Vargas, que exibiu a mim um sorriso sincero com dentes tão brancos quanto um banco salino. Era um homem equilibrado, companheiro, sereno; possuía duas belas filhas e uma dedicada e por vezes negligente esposa a aguardá-lo no lar. Já deduz-se a imensa discrepância existente entre nós, porém Marito, como era chamado pelos vizinhos, guardava em sua água-furtada o mesmo que eu apreendia no sobrado tristonho de meu avô: um violoncelo, objeto motivador de nossa desavença pretérita. Ria-se.
Quando ainda me dedicava às tantas partituras e suítes dos mais consagrados músicos do velho mundo, convidava com sustenidos e escalas híbridas de Dó e Ré as damas em desabroche da região. Isto se seguia sempre por muitas semanas, ao passo que meu ego inflava às segundas e quintas-feiras com aqueles elogios pomposos, os olhares provocantes, bem como a periodicidade com que ocorriam minha exibições de quando em quando. Mas como tudo há de findar cedo ou tarde, meu título de 'solista da sacada' não chegou a completar anos. A razão de tamanha tragédia dá-se pelas musas espectadoras - aquelas ingratas - que trocaram a genialidade de Bach pelas cacofonias dos clássicos de bolero interpretados pelo Vargas, agora oportunista e plagiador de meu talento com o instrumento.
É bem verdade que o que senti não passou de ciúmes tolos, confesso, porém Marito jogou baixo, trapaceou, ato fundamental para desencadear minha hibernação vitalícia, minha esporulação social. Mas deixemos o compatriota de lado para retornar à anedota de maior relevância.
Não era capaz de conviver com a inconsciência daquele sujeito a me olhar inofensivamente. A ser sincero, parecia-me que ele desconhecia qualquer fato que fosse razão de minha rabugice incurável.
_ Tome cuidado, D. Garcia, sabes dos perigos deste horário e ousa portar quantia expressiva ! - exclamou com tom paterno.
_ Tenho meus propósitos, Mario. Além disso, sei muito bem me cuidar, obrigado. - sagaz, categórico, do jeito que merecia.
Deixei-o estático para trás e prossegui sem agradecer na odisséia anatômica de lutar contra o peso morto que era minha perna. Aproximando-me da fachada do teatro municipal, a funcionária da cabine de bilhetes, uma senhora de cabelos negros artificiais e pele ulcerada, ensaiou de longe dizer-me sobre o início da apresentação. Sabia do atraso ao chegar no local, era notório, contudo me bastou a "senha" para conseguir uma entrada de acesso ao camarim da alemã em poucos minutos.
A longa espera me rendeu algumas espiadas em seus pertences, afinal, estava entediado, e ela, sendo apludida por uma multidão estupefata. Soube de seu nome logo quando vi o cartaz publicitário, - Pina Bausch - semelhança sobrenatural com minha progenitora, traços agudos característicos do povo germânico, uma flor ! Como uma criança curiosa, eu vasculhava tudo o que se mostrava no cômodo, pentes de cabelo, escovas de dente, luzes e uma volumosa parafernália de maquilagem e roupas de dança espalhadas por todo o lugar, das quais eu me deliciava em inspirar o aroma feminino de delicadeza incomparável. Subitamente fez-se silêncio. Por instinto, corri à porta que dava para o lado de fora e colei meu ouvido na tentativa de captar algo que me orientasse da vinda da dançarina. Ouvi um ribombar de cadeiras arrastadas, conversas animadas de homens, gargalhadas femininas e um 'clique' tão próximo à porta que fui obrigado a piscar os olhos tão rapidamente quanto o que me empurrou para trás.
Uma mocinha de média estatura, indumentária flamingo e pele cor de neve atingiu-me com olhos curiosos, parecendo não temer, mas desafiar. Era Pina Bausch, boquiaberta e encabulada como só ela podia ser:
_ Que fazes aqui em meu-- o que foi que você fez com minhas coisas ?! - a bailarina, cuja face alva tornara-se avermelhada após percorrer com seus olhinhos o camarim bagunçado, não dominava seu questionamento a ponto de embaralhar as perguntas que queria fazer.
Era um tanto óbvio não haver explicação alguma para conceder à dama, e o Inverno de Vivaldi, sinfonia tão admirada pelos críticos da música, primeiro movimento para ser específico, brincava em minha mente; ora tentando calar o agressivo interrogatório empreendido pela bailarina, ora esforçando-se para me alertar do silêncio mortal que cultivava na cena. Julguei ser menos arriscado, portanto, praticar o intento sem delongar minha hipnose em função da beleza infinita de Pina. Para tanto, lancei-me sobre ela a fim de abafar o grito que ameaçara dar. Em seguida tapei-lhe a boca com esforço e usei a outra mão para girar a chave fixa na porta, pois a execução de meu ritual não podia ser interrompida em hipótese alguma. Suavemente a dominei nos braços e imaginei retumbar nos tímpanos a valsa preferida de minha mãe, tocando acelerada, como o coração de meu par pequenino. Cerrei os olhos transparecendo desconfiança, pois temia que a moça me fugisse no Gran Finale. Seus bracinhos finos acompanhavam minha condução impecável em três giros consecutivos, e logo a música tornava-se rápida, mais rápida e, quando iria atingir o tempo de 1/16, a dama, sem energias, desfaleceu com a cabecinha tombada para trás.
Cuidadosamente, coloquei-a sobre o estofado de couro artificial e corri à penteadeira. Uma variedade imensa de tesouras se mostrava a minha disposição, mas escolhi a de cabo metálico acinzentado, a mais reluzente delas, como também a maior. Retornei ao corpo vulnerável da afamada artista acompanhado de uma expressão que era a soma de medo e pressa, além de dominado por um tremor a que já me acostumava a apresentar em momentos semelhantes.
Fazendo uso de um golpe furtivo, levei a mão a sua nuca macia, ergui a tesoura à altura de meus ombros e desprendi detrás de sua orelha um cachinho dourado para ser alvo de minha ferramenta. A tesoura, faminta, levou o fragmento com um corte reto de precisão inigualável, fato que me deixou atônito, perplexo. Depositei a relíquia germânica em um envelope que trazia no bolso do segundo moletom, a salvo. Certifiquei-me depois de que nenhum vestígio de minha identidade ficava no cômodo caótico de Pina Bausch e despedi-me da dama com um beijo nas bochechas rosadas que provocou um estalo engraçado, o qual me inspirou uma risadinha sapeca no cruzar do corredor extenso da saída. No dado instante, esqueci-me até mesmo de mancar feito um pirata no retorno para casa, e, sorte grande de apostador de cavalos, a neve dera uma trégua providencial. Adentrei os portões de casa em pouco menos de seis minutos. Subi as escadas a galope em direção ao meu quarto, onde a caixa preta, com inscrições douradas em sua tampa, trazia no título 'Memórias da Mamãe' e me esperava ansiosa para adicionar mais um emblema dos fantasmas dela. O cachinho da bailarina, portanto, se misturava, naquele momento, a uma diversidade de outros objetos, bem como naufragava em minha memória a exemplos de tantos outros "assaltos".
Deixei-me, enfim, cair no colchão macio de minha cama, digerindo, no despertar, no banho e na falta do chinelo, minhas últimas reminiscências dos olhos miúdos de Pina encarando-me com ingenuidade no cartaz-convite.
Após cruzar as adjacências de minha toca, dobrei uma dúzia de esquinas em velocidade moderada, pois mesmo que relutasse em imprimir um ritmo intenso para chegar a tempo na exibição de ballet, manco de nascença seria razão para dores nas articulações e músculos, agravadas ainda pelas baixas temperaturas daquele dezembro castigante. No trajeto, encontrei-me com ex-solistas da orquestra local jogando xadrez, dos quais testemunhei glória e fama agora degenerados pela idade mórbida. Acenei a eles com um sorriso sem muita empolgação ou elegância, arrastando aquela perna - estigma de desgraça - a alimentar minha hipocrisia: a situação deles não me era incômoda.
Segui sem muitas cerimônias em direção a meu destino. Tateei os bolsos a fim de tomar as trinta libras nas mãos e, fotografia mental de desesperança, vi meu porta-níqueis descansado no criado ao lado da cama. Ensaiei imediatamente os verbetes mais chulos que aprendi na meninice mas o que me assaltou de sobremaneira foi uma frequência suave em minhas costas, masculina, austera:
_ D. Garcia, não pertence a você este amontoado de notas e moedas ?
Tomei-lhe o embrulho da mão em uma fração de segundos. Encarei ofegante em seguida o corpo delgado e suntuoso de Mario Vargas, que exibiu a mim um sorriso sincero com dentes tão brancos quanto um banco salino. Era um homem equilibrado, companheiro, sereno; possuía duas belas filhas e uma dedicada e por vezes negligente esposa a aguardá-lo no lar. Já deduz-se a imensa discrepância existente entre nós, porém Marito, como era chamado pelos vizinhos, guardava em sua água-furtada o mesmo que eu apreendia no sobrado tristonho de meu avô: um violoncelo, objeto motivador de nossa desavença pretérita. Ria-se.
Quando ainda me dedicava às tantas partituras e suítes dos mais consagrados músicos do velho mundo, convidava com sustenidos e escalas híbridas de Dó e Ré as damas em desabroche da região. Isto se seguia sempre por muitas semanas, ao passo que meu ego inflava às segundas e quintas-feiras com aqueles elogios pomposos, os olhares provocantes, bem como a periodicidade com que ocorriam minha exibições de quando em quando. Mas como tudo há de findar cedo ou tarde, meu título de 'solista da sacada' não chegou a completar anos. A razão de tamanha tragédia dá-se pelas musas espectadoras - aquelas ingratas - que trocaram a genialidade de Bach pelas cacofonias dos clássicos de bolero interpretados pelo Vargas, agora oportunista e plagiador de meu talento com o instrumento.
É bem verdade que o que senti não passou de ciúmes tolos, confesso, porém Marito jogou baixo, trapaceou, ato fundamental para desencadear minha hibernação vitalícia, minha esporulação social. Mas deixemos o compatriota de lado para retornar à anedota de maior relevância.
Não era capaz de conviver com a inconsciência daquele sujeito a me olhar inofensivamente. A ser sincero, parecia-me que ele desconhecia qualquer fato que fosse razão de minha rabugice incurável.
_ Tome cuidado, D. Garcia, sabes dos perigos deste horário e ousa portar quantia expressiva ! - exclamou com tom paterno.
_ Tenho meus propósitos, Mario. Além disso, sei muito bem me cuidar, obrigado. - sagaz, categórico, do jeito que merecia.
Deixei-o estático para trás e prossegui sem agradecer na odisséia anatômica de lutar contra o peso morto que era minha perna. Aproximando-me da fachada do teatro municipal, a funcionária da cabine de bilhetes, uma senhora de cabelos negros artificiais e pele ulcerada, ensaiou de longe dizer-me sobre o início da apresentação. Sabia do atraso ao chegar no local, era notório, contudo me bastou a "senha" para conseguir uma entrada de acesso ao camarim da alemã em poucos minutos.
A longa espera me rendeu algumas espiadas em seus pertences, afinal, estava entediado, e ela, sendo apludida por uma multidão estupefata. Soube de seu nome logo quando vi o cartaz publicitário, - Pina Bausch - semelhança sobrenatural com minha progenitora, traços agudos característicos do povo germânico, uma flor ! Como uma criança curiosa, eu vasculhava tudo o que se mostrava no cômodo, pentes de cabelo, escovas de dente, luzes e uma volumosa parafernália de maquilagem e roupas de dança espalhadas por todo o lugar, das quais eu me deliciava em inspirar o aroma feminino de delicadeza incomparável. Subitamente fez-se silêncio. Por instinto, corri à porta que dava para o lado de fora e colei meu ouvido na tentativa de captar algo que me orientasse da vinda da dançarina. Ouvi um ribombar de cadeiras arrastadas, conversas animadas de homens, gargalhadas femininas e um 'clique' tão próximo à porta que fui obrigado a piscar os olhos tão rapidamente quanto o que me empurrou para trás.
Uma mocinha de média estatura, indumentária flamingo e pele cor de neve atingiu-me com olhos curiosos, parecendo não temer, mas desafiar. Era Pina Bausch, boquiaberta e encabulada como só ela podia ser:
_ Que fazes aqui em meu-- o que foi que você fez com minhas coisas ?! - a bailarina, cuja face alva tornara-se avermelhada após percorrer com seus olhinhos o camarim bagunçado, não dominava seu questionamento a ponto de embaralhar as perguntas que queria fazer.
Era um tanto óbvio não haver explicação alguma para conceder à dama, e o Inverno de Vivaldi, sinfonia tão admirada pelos críticos da música, primeiro movimento para ser específico, brincava em minha mente; ora tentando calar o agressivo interrogatório empreendido pela bailarina, ora esforçando-se para me alertar do silêncio mortal que cultivava na cena. Julguei ser menos arriscado, portanto, praticar o intento sem delongar minha hipnose em função da beleza infinita de Pina. Para tanto, lancei-me sobre ela a fim de abafar o grito que ameaçara dar. Em seguida tapei-lhe a boca com esforço e usei a outra mão para girar a chave fixa na porta, pois a execução de meu ritual não podia ser interrompida em hipótese alguma. Suavemente a dominei nos braços e imaginei retumbar nos tímpanos a valsa preferida de minha mãe, tocando acelerada, como o coração de meu par pequenino. Cerrei os olhos transparecendo desconfiança, pois temia que a moça me fugisse no Gran Finale. Seus bracinhos finos acompanhavam minha condução impecável em três giros consecutivos, e logo a música tornava-se rápida, mais rápida e, quando iria atingir o tempo de 1/16, a dama, sem energias, desfaleceu com a cabecinha tombada para trás.
Cuidadosamente, coloquei-a sobre o estofado de couro artificial e corri à penteadeira. Uma variedade imensa de tesouras se mostrava a minha disposição, mas escolhi a de cabo metálico acinzentado, a mais reluzente delas, como também a maior. Retornei ao corpo vulnerável da afamada artista acompanhado de uma expressão que era a soma de medo e pressa, além de dominado por um tremor a que já me acostumava a apresentar em momentos semelhantes.
Fazendo uso de um golpe furtivo, levei a mão a sua nuca macia, ergui a tesoura à altura de meus ombros e desprendi detrás de sua orelha um cachinho dourado para ser alvo de minha ferramenta. A tesoura, faminta, levou o fragmento com um corte reto de precisão inigualável, fato que me deixou atônito, perplexo. Depositei a relíquia germânica em um envelope que trazia no bolso do segundo moletom, a salvo. Certifiquei-me depois de que nenhum vestígio de minha identidade ficava no cômodo caótico de Pina Bausch e despedi-me da dama com um beijo nas bochechas rosadas que provocou um estalo engraçado, o qual me inspirou uma risadinha sapeca no cruzar do corredor extenso da saída. No dado instante, esqueci-me até mesmo de mancar feito um pirata no retorno para casa, e, sorte grande de apostador de cavalos, a neve dera uma trégua providencial. Adentrei os portões de casa em pouco menos de seis minutos. Subi as escadas a galope em direção ao meu quarto, onde a caixa preta, com inscrições douradas em sua tampa, trazia no título 'Memórias da Mamãe' e me esperava ansiosa para adicionar mais um emblema dos fantasmas dela. O cachinho da bailarina, portanto, se misturava, naquele momento, a uma diversidade de outros objetos, bem como naufragava em minha memória a exemplos de tantos outros "assaltos".
Deixei-me, enfim, cair no colchão macio de minha cama, digerindo, no despertar, no banho e na falta do chinelo, minhas últimas reminiscências dos olhos miúdos de Pina encarando-me com ingenuidade no cartaz-convite.
A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog http://porleonardo.blogspot.com/.