quarta-feira, maio 21, 2025

Dezessete horas (ou Bilhete para a senhorita C)


"— Você deve ser a última pessoa no mundo que ainda diz essas coisas às mulheres. — Sorria, divertida, olhando-me como se fosse um bicho estranho. — Que breguices você diz, Ricardito!

— O pior não é dizer. O pior é que as sinto. São verdade. Você me transformou num personagem de telenovela. Eu nunca disse essas coisas a ninguém."

—  Travessuras da Menina Má (2006) por Mario Vargas Llosa (p. 127)


Era madrugada  dessas desperdiçadas e toscas  quando bateu-me à porta a bailarina. Embora atravessada por amores múltiplos, escolheu-me em um sopro de sorte e acaso, fazendo-me o garoto que encontra o bilhete premiado ou o mítico palito de picolé. Jamais saberei decerto se era merecedor de todo aquele desejo ou se era apenas zombaria de mais um perverso capítulo da minha biografia. No choque de dois drinques, sofá de bares e batom, prendi-me em sua teia de Faraday em um misto de eletricidade e magnetismo, ora capturado, ora apunhalado pelos ferais olhos verdes que me mediam e atravessavam tal qual um predador calculando o momento certo de atacar a presa, ingenuamente sem saber que todos os momentos eram certos, avenidas inteiras de lábios, ombros e perfumes. 

No cartaz do teatro, seu rosto contrastava com a imaginária e pacífica Nova Iorque ao fundo. As sombras — mímicas de corpos — delineavam a coreografia que me impediu de saber quem era ela nas silhuetas-mil detrás das cortinas. Dentro do meu peito, um leve terror vendo no escuro a sua vida de pura potência. Mares croatas, Barcelona, arranha-céus e, no dedo, uma solitária safira, signo de fidelidade e amor eterno. Na corda bamba da conversa, um voto de confiança. Os dedos entrelaçados e os olhos em perfeita sincronia como se mantidos por um fio invisível que não os deixavam desencontrar no desvio da cena, sem ponto de fuga ou garçom no horizonte. "Veja-me que te vejo também". Porém tua dança era dança de sombras. Ainda que eu quisesse saber mais e tudo de ti, nos palcos ou ao meu lado, eu teria apenas tênue fragmento, pistas de um mistério insolúvel, crônica ao invés de novela, ensaio ao invés de espetáculo, palavra ao invés de sinfonia.

No entardecer, uma chuva fina de primavera nos molhou de mansinho. Na soleira de casa, as roupas um pouco úmidas deixavam-na como um reflexo natural da chegada. A colônia soprada pelo movimento de pendurar o casaco me lançou uma dica do sabor da tua pele, que reclamava do frio e do ar ligeiro que sopravado teto. "Deixa que eu te ajudo." De novo os olhos de lince me olhavam de baixo para cima, lábios semiabertos, uma súplica para minhas inquietudes. O caminhar cuidadoso e felino disfarçava os pés delicados que dançavam sem querer dançar. As pontas dos pés marcavam o tempo de uma música mais sutil que meus ouvidos ansiosos poderiam ouvir. Embora seja esforço infrutífero, minha mente até agora tenta aprisionar uma ou outra lembrança das tuas palavras, mas esse enredo é daqueles vitorianos que não permitem reprise. Cada peça é um universo dentro de si, não haveria roteiro no mundo que fosse capaz de sustentar essa colisão de infindável energia. Tudo é somente uma memória monolítica sem direção. Vetor sem sentido, pulsão de vida e arte. 

Não nego que, para mim, escrever seja parte de um ato reminiscente. Um reflexo criativo de alegrias e tristezas, e, portanto, jamais ousaria tentar lhe explicar a natureza dessa história. Mas arrisco-me a dizer que nosso encontro foi como um microcosmo de amor num espaço de horas. A dança, o gozo, o riso, o banho e a ceia todos juntos no que os físicos chamariam de singularidade. Um mergulho profundo na dilatação relativística do tempo para ver nossas tantas possíveis vidas passarem diante dos nossos olhos como uma lição de deixar ir, deixar passar e se entregar a uma gratidão difícil de exercitar quando se há tanto e muito mais para viver. Ancorado ao teu horizonte de eventos, eu brigava com a possibilidade de entrar naquela unidade heterodoxa de tempo (e espaço) para encontrar-me em uma nova e talvez mais triste realidade - a minha própria sem você. Astro novo na vastidão do teu universo, eu tentava ensaiar a gravidade de outro par, gravitando para vencer satélites certamente mais antigos e certamente maiores do que eu, que iriam clamar-te de volta como um brinquedo infantil precisa voltar ao dono, uma boneca tão bela que me dói nas têmporas só de lembrar. História, apesar de tudo, pesa. Aventuras, nem tanto. São pedagógicas, sim, mas leves como penas ziguezagueando no ar. Passam longe das luas de Júpiter, são Perséiades esperançosas no céu de verão. Mágicas, como tu dissera, ainda recuperando o fôlego. Mas naturalmente fugazes. Cíclicas e de órbitas obtusas, quase excêntricas.

Foi difícil dormir naquela noite, e mais difícil ainda nas outras tantas que se seguiram. Embora eu seja econômico nos afetos, sei enxergar de onde brota no solo a nascente, o olho d'agua espiando a minha alma delicadamente vulnerável e desavisada. Em hora de despedida, em um bilhete escrito às pressas no encarte de um disco, a bailarina das sombras deixou um convite, um punhal espetado junto a um sorriso provocador, um giro pensativo dos dedos entre os cabelos me chamando para perto. Um desejo multissensorial de que uma vez mais — quem sabe no largo das incertezas — a grande maçã iria nos agraciar com uma mordida mais, um novo pecado, uma nova dança na sala de estar. Apesar das dezessete horas terem se esgotado como apressados grãos de areia na ampulheta, vivemos também dezessete vidas, dezessete motivos, cinco quintessenciais, doze um pouco mais impróprios do que eu poderia apontar no papel. 

Em tempo, fantasias são como faróis para um navegante. E navios são como promessas de vida para um náufrago como eu.

Até breve, 

A.