domingo, junho 26, 2011

Polígonos.


Não era definitivamente um bom dia. Se eu estava na loja de departamentos, debruçado sobre a estante de comédias românticas, logo após ter sido expulso da seção de brinquedos, algo estava indo muito mal; e era fato. Por efeito de registro, não me decidi sobre colocar a verdade absoluta, daquelas em carne viva, ou misturar qualquer mentira frouxa para me satisfazer o desejo de escrever sem pudores. Porém, pela atmosfera lúdica que nasce agora, valorizarei o mistério.


Tudo foi culpa da Giselda, pra variar, aquela doida. Dessa vez - e não que não seja hábito da moça - surpreendeu-me com um insulto novo e chamou-me "calhorda infantil". A vizinhança inteira de olhos arregalados ouviu; meio óbvio vindo daqueles enxeridos. Acontece que sempre fora do feitio de Giselda perder horas conversando com os burguesões de Fundo Céu para captar aqueles termos chulos e pomposos que só eles entendiam nas festas em que ela ousava comparecer sem convite e com o vestido decotado desviando atenções. Memorizava-os com maestria e guardava-os na ponta da língua para usar deliberadamente com qualquer um. Às vezes, até sem contexto usava-os, porém não fazia muita diferença quando falava comigo, já que não entendia muito bem senão pela agressividade no tom de voz. Mas, voltando a mim, como sempre trazia comigo na bolsa o pai dos burros (e isso eu não escondo ser), assim que ela forçou a porta nos meus pés relutantes em mantê-la sob meus cuidados, resgatei-o do fundo da bolsa daqueles tipos assim e li o tal termo suntuoso na cento e vinte e nove, coluna dois: "Cruzes, Gi, onde andou aprendendo essas coisas grosseiras?"Eu sabia de onde vinha, é claro, perguntei por etiqueta. Havia tempos eu a seguia depois do expediente para testemunhá-la dependurada no pescoço de Pedro Luís, o mulato de sotaque cubano, corpulento e charmoso sobre o qual, vez ou outra, ela criticava e lançava a língua venenosa. Era truque! Ele – centenas de vezes mais jovem e bem aparentado que eu - e seu terno que valia o meu salário a levavam para o esportivo que arranhava o motor para deleitarem da noite mais intensa de amor. Misturariam seus fluidos com a casualidade de uma torrada fria em cima da mesa e depois acabava para os dois e começava pra mim. Ela chorava, eu chorava e o ciclo reiniciaria com Pedro Juán, Vasquez e Andrei.



O infantil que ela pusera eu relevava, mas isso porque era tão comum ela me ver dessa forma, isto é, me ignorar como tal, que já não doía tanto quanto antes. Era tão incoerente aquela mulher que enjoava. Era tão petulante e altiva que desprezaria qualquer "bam-bam-bam" desses que aparecem de vez em sempre na porta dela atrás de você-sabe-o-quê. Era uma chatice descomunal ouvi-la tagarelar sobre os tantos namoricos que duravam três ou quatro dias. Eu fingia de desentendido, mas no fundo sabia que esse era o tempo exato para os idiotas conhecerem o que havia atrás daquele rostinho angelical, dissimulado e aquela boca desejosa. Linda, porém sádica – moralmente sádica! Eu, como bem dizem meus amigos da firma, não tenho lá o direito de relatar essa história. Não participo dela, como vê, ou pelo menos não no começo. Sou um coadjuvante que aspira figurar na mesa ao lado ou num erro irreparável de enquadramento. Sou a estrela dos esquecidos, o Nobel dos esperançosos e o gongo do perdedor. Mas sou alguma coisa, e isso já vale muito no universo de Giselda. Para ser sincero, tampouco sou eu quem está aqui escrevendo esse enxame de palavras difíceis. Para deixar tudo assim assim, chamei o Zé, que é letrado e fala bonito, porque a história que eu conto é coisa de gente mal amada que põe dor onde não tem.


Por fim, eu estava prestes a um desabamento. Minhas estruturas não mais suportavam a volubilidade recordista daquela mulher. Odiava-me na mesma proporção dos beijos que roubava quando me distraía. Lançava-me longe e depois laçava de volta para seu sofá antigo. Trocávamos carícias, deixava-me amá-la e depois arremessava a louça na minha direção, furiosa. No dia em que acertou de verdade e apaguei por um dia inteiro, as lagrimazinhas miúdas que me umedeciam as pestanas foram pouco a pouco me fazendo chorar também com as lágrimas dela. Foi uma graça vê-la pressionando a gaze encharcada contra minha testa que minava sangue: “Pablo, Pablito, meu amorzinho... volta ! E-eu não sei o que faria sem você comigo, benzinho.”


Voltei para ela. Mas desejei daí alguns meses que eu tivesse morrido ali mesmo. Um traumatismo qualquer que ferrasse meus miolos já ajudaria a atenuar o sofrimento que aquela maluca me causava. Perder-me, para ela, era ficar sem mimos; para mim, era a liberdade absoluta que eu negociava com meu coração a juros altíssimos em nossa infinita guerra cambial.


No dia em que tentei fugir, se não me falha a memória, dei com Giselda se enrolando com um garotinho de uns dezessete anos na rua da mamãe. Era um mocinho magro, de pele transparente e, de tão desajeitado, mal sabia o que fazer com aquele corpo interminável e farto. Doeram-me as vísceras quando passei do lado olhando-a gargalhar com os beijos da criança no pescoço. Ah! Isso fez-me lembrar dos tempos da escola secundarista quando a vi naquela multidão curiosa e tivemos nossa primeira conversa: um beijo sem saliva que fez brotar nos meus lábios seu batom arroxeado de menina rebelde. Linda e inadequada como mandava o protocolo. Fora ali meu primeiro passo errado, que decretei minha sentença, que decidi viver na ilicitude do amor moderno. Não preciso dizer que o trago de nostalgia concentrada arrebatou-me na manhã seguinte para seu colo impaciente. Afinal, vinte e dois anos de história não são para qualquer machão ou moleque que se vê em posição de querer alguma coisa com minha soberana. Tolos, todos eles. Merdas, todos eles e eu.


___ Pablo, eu não tenho o dia todo pra ficar acarinhando sua nuca e ouvindo mil soluços de criancinha! É bom crescer e pensar direitinho se vai voltar pra mamãezinha e me deixar nas mãos dos “trogloditas”. – eu os chamava assim mesmo sabendo que ela não sabia o que queria dizer, e me inquietava para poder soltar mais insultos que inauguravam mensalmente na firma. Era ótimo!


Todavia, a essa rotina de novos amantes eu me adaptava e moldava como podia, dava meus jeitos e também não ficava atrás. E foi com Clarice que acabei ressuscitando uma Giselda que julguei e condenei no quinto ano fundamental. Fui até ela numa segunda-feira de 36º tentar receber meu acerto, meus benefícios dos serviços de saúde e um “abono dor de cabeça”. O médico, até onde tinha conhecimento, era o cardiologista, mas fui saber mais tarde que esse era um tipo de doutor que não mexia com esses trambiques de amor, búzios ou voodoo – então me contentei com a aspirina.


Entrei no apartamento do mesmo jeito de sempre, esperando ouvir uma voz masculina seguida de uma risada que escondia as mais perversas intenções. Gargalhadas que sinalizavam todos os desejos secretos, que expunham o impronunciável da mulher: a linguagem do corpo, as inclinações, o golpe do cabelo e a histeria estratégica de fêmea resoluta. Me interpus à porta de correr e vi-a ainda de lingerie rendada passando o lápis de olho que dei de presente com uns trocados do ônibus e divisei um vestido escuro dependurado na cabeceira da cama onde tanto nos amamos, digo, eu a amei.



__ Chéri – ela olhou-me atentamente pelo reflexo do espelho como se já soubesse da seriedade da situação - eu vim dizer ‘tchau’.


Era simples assim o pedido, a concessão, e eu sequer ensaiei antes como praticava nas minhas inúmeras juras de amor que aos trinta ainda me embaraçavam o estômago e faziam suar.


__ Está bem. Pode ir assim como está, Pablo, mando suas coisas para a casa de sua mãe pela manhã. Agora estou atrasada para conversas longas e choramingos insuportáveis. – ela reunia suas coisas com uma velocidade inacreditável e ia empurrando tudo para uma bolsa que devia caber só o batom e os chicletes de menta. Quanta indiferença havia nela! Talvez pensasse ser mais uma das minhas pirraças em que coubesse o adjetivo imaturo ou infantil; que em dois dias ou menos eu voltaria como cão domado; que em instantes eu me entregaria de novo à minha senhora de escravos.


__ Não. Eu não estou indo para a casa da mamãe, Giselda. Estou indo ficar com a Clarice.


A sobrancelha de fera ferida ergueu-se em reação e vi seus olhos analisarem-me centímetro por centímetro, medindo talvez a proporção de verdade por volume de ser. Isso acelerou meu coração, que preparava a isquemia, o edema, o derrame ou o piripaque que minha cachola não soube fazer no dia da panela que ela arremessara em mim. “Vamos, camarada”, eu pensava, “é agora que você pára de funcionar e faz o trabalho sujo.” Nada. Estava lá, batendo num ritmo controlado e intenso. Giselda agora se enfiava no vestido, desajeitada, e arrumava o chapéu enorme no topo da cabeça. Toda de preto, como jamais a vi antes.


__ Haha – uma risada triste e pouco entusiamada foi ouvida – minha mãe se foi, Pablito. Estou sozinha agora.


Meu sorriso amarelo se fez quase que imediatamente. Uma cachoeira de sensações veio me cobrindo a razão e solubilizando a determinação que acumulei antes de deixar minha casa. Mas eu não amava a tal Clarice; era um capricho de macho insatisfeito, enciumado e vingativo. Quiçá uma invenção ! Encontrei-a no bar onde costumava chorar mágoas – o bar do Raul. Lá tocavam uns sambas dos anos 30 que eu gostava de escutar e a cachaça era barata. Vi-a sentada e, frustrado com Giselda, lancei-me na jogatina perigosa. Ela não me trouxe as poucas alegrias que Giselda só em pensamento cuidava de me presentear, e aquele choramingo cinematográfico, sem lágrima ou funguinho, embora fosse o que fosse não deixava de me estremecer a decisão. Sozinha ! Fiz-me sério, arquitetanto na mente o sermão que tanto esperei para externar. “Ora, sua...! Vê como me sinto agora? Sempre do seu lado, sem qualquer reconhecimento ! Sempre como um carrapato, sugando sua energia, sua paciência... Giselda vou me embora já e lhe desejo solidão! Quero que conheça as tantas torturas que ninguém ousou lhe apresentar. Torturas que eu suportei por um amor doentio!”


Não saiu-me nada além de um suspiro. Tudo foi rápido demais. A aba do chapéu imenso acertou minha cabeça e recebi em seguida um beijo no rosto que provavelmente manchou-me as bochechas. O salto alto da minha dona ia marcando os degraus da escada até nada mais se ouvir. A porta do saguão de entrada bateu forte, como esperado, e o ronco do motor de Pedro Juán ecoou em todo o bairro. Era minha rendição. Ela sabia que quando voltasse eu estaria lá, assistindo a um filme qualquer recém comprado, esparramado no sofá seboso com um bilhetinho na mão.


Sempre fora assim, e não tem por que mudar.

10 comentários:

  1. Simplesmente fascinante. A dúvida sobre a personagem Gisela é impressionante e me prendeu ao texto de uma maneira perfeita.
    Gostei muito Arthur xD

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  2. Nessas inúmeras linhas ou "enxame de palavras difíceis", que precisei ler com a atenção necessária para ler Silmarillion, vejo agora um novo tipo de complexidade relacionada ao amor, tal complexidade que fora anteriormente não percebida por mim - involuntariamente ou não. Procuro aqui falar de tal forma que não entregue minha personalidade, mas não deixo de parabenizar você, Arthur, por sua Genialidade.

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  3. não sei se você sabe, mas gostaria que ficasse, então, sabendo, que a coisa que você sempre receberá de mim, em releção aos seus textos, serão elogios e elogios. gosto muito mesmo das coisas que você escreve.
    o amor tem muitos ângulos, eu diria, ou pelo menos pode ser encarado por muitos deles, alguém disse que "os que amam e os que são felizes não são os mesmos", penso que, por acaso ou não este foi o ângulo que eu, e o Pablo da minha visão, aprendemos a enxergar - 'não tem por quê mudar'.

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  4. Uma característica de seus textos é a anelepse (flash back) e muito bem trabalhada. Você consegue um efeito de progressão narrativa muito bom. Consegue relativizar espaço e personagens, dando preferência àquele social, que constitui num mecanismo de determinação destas.
    Quanto a desenvolvimento das personagens, acho interessante a volta para a não catarse, a não libertação - o que já tenho visto em muitos textos. É a tentativa de sair de um demônio (como diz Gide) e quanto mais você se encontra fora, mais dentro dele você está.
    O jogo de narradores também é louvável. Vê-se níveis narrativos (embora o primeiro deles seja implícito) - se você fosse da época de Platão você seria expulso da cidade por fazer um simulacro.rsrs -. É um princípio de mise en abyme do Gide (também), um abismo que compõe o distanciamento da realidade possível do conto, pela interpretação de vários discursos de personagens.

    Eis um texto que gostei muito e mostra uma nova fase, mais madura daquilo que se forma a cada dia como o Arthur escritor.

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  5. giselda de tão solta se foi antes dele. os pregadores continuaram vazios...
    cidy lamounier.

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  6. Arthur,

    O texto é primoroso como tudo o que você já produziu. Além da qualidade técnica, fiquei fisgado por algumas frases-conteúdo. Particularmente tenho duas que faço questão de pontuar: a torrada fria e a histeria estratégica.

    Sobre a primeira, acho bacana pensar na intenção subliminar de dizer que era algo que "passou do ponto", que deve ser "comido" na hora, no momento certo, quente. Isso me lembra Hamlet e o adiamento eterno do que deve e precisa ser feito. Uma chave da psicologia masculina - postergação.

    Sobre a histeria estratégica, acho genial sua originalidade, porque muitas vezes a histeria é vista como o simples escândalo, ou uma forma "menor" de expressão, tipicamente feminina, mas que não é necessáriamente uma prerrogativa de gênero. Assim como a neurose obsessiva, a histeria é uma estrutura psíquica, capaz de inúmeras artimanhas - muitas vezes estratégicas - que falam muito do nosso instinto de sobrevivência e do desejo de perpetuação da espécie. Às vezes tudo isso está camuflado sob um véu de insanidade, mas na verdade expressa algo que é comum à nossa espécie e que está profundamente enraizado no (porque não dizer) DNA.

    Adoro pensar no tanto que o escritor expressa a ficção misturada com a experiência vivida.

    Você tem a verve do escritor e no que depender de mim, terá sempre seu público, por mais que às vezes seja difícil ou impossível tecer algum comentário, face ao envolvimento afetivo que eu sinto por você.

    De toda forma, fica meu singelo comentário, esperando que você produza cada vez mais e melhor.

    Beijocas

    Rogério

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  7. No início do texto eu achava que a doida sentia falta de que o garoto fosse maduro o suficiente para converssar com ela sobre os rapazes que ela amava. Mas conforme o texto foi passando, me pareceu que ela queria que ele a aceitasse como sua mulher, ou como sua amante, coisa que ele não estava disposto a fazer. Ele a aceitava de certa forma, tolerando carinhos estranhos que o machucavam às vezes, certa violência doméstica.

    Paulo, Biologia, seu veterano.

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  8. Olá, meu caro,
    Bom texto. Não tive tempo de ler tudo, mas voltarei para ler o restante.
    Eu cheguei aqui através de uma dica do Felipe, um colega seu. Gostei do blog e sigo.
    Você poderia seguir-me também? Aguardo ao menos sua visita, caso queira.
    Um grande abraço,
    Sucesso,
    Ana Pontes

    http://asoleneanapontes.blogspot.com/

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  9. Onde está o amor platônico e aquele filme do Coppola?

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  10. Está de volta com algumas mudanças ! Espero que gostem, já que a versão antiga recebeu críticas um tanto duvidosas...

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