Era absoluto castigo vê-la perfurar o vento com aquela marcha pesada, rápida e tensa. Mostrando a raiva contida nos dentes enrijecidos e no ar de moça desatenta para o dia que a observava e suplicava atenção, Rosa era a gravidade e o próprio centro de tudo: era plena. No hall sustentado por colunas de isopor reciclado - confeccionada pelo laborioso síndico artista plástico -, roía as unhas até sangrar a carne, aguardando que o elevador de trezentos e tantos anos descesse do décimo quarto e viesse buscá-la para chegar ao terceiro.
Blam ! Abriu a porta do apartamento e logo bateu-a trás de si - dando aquele efeito heróico de saloons dos filmes de faroeste; estava entreaberta. Esperou que as pupilas se acostumassem àquele breu característico dos primeiros andares e inspirou lentamente os odores da sua morada como que querendo detectar o invasor traiçoeiro e parasítico das suas intimidades: farejava Sandro, o homem exalando aquele perfume cetônico nojento que ela mesma dera de presente. Custara pouco, sim, a essência, coisa das lojas de quinze pesos - para menos -, mas que valera o jantar a pão francês, os tocos de vela de citronela e o gás que acabara enquanto pré-aqueciam o forno antes do parabéns.
Fora ali, no santuário desorganizado e de paredes leitosas, que construiu seu mundo, suas lembranças sonoras, sua carga mais torturante de corações partidos e boleros sem par. Prescrutou com os olhos imensos a sombra e a silhueta de seu domínio, deixando o vento vindo da janela sem grades borboletear os cabelos desgrenhados a fim de sustentar sua pose de desleixo caprichado, vaidoso, ou qualquer coisa que as mulheres fazem para ficarem mais bonitas 'sem querer'. Rosa não o vira lá senão seu cheiro pairando feito pequenas plumas, digo, feito pequenas bolhas de sabão no ar. Se saísse para tentar achá-lo, não seria surpresa dar com o moço, a garrafa de cerveja quente e um mundaréu de cigarros apagados em torno e pela metade na escada imunda. Era um contraste de pura desgraça o saco de ossos, o trapo ignóbil que se tornou seu amor de instantes, de quase nada, dos minutos fugazes de inconsciência e tédio. Seu amor luxurioso e sujo, mas amor. Amor que, agora quiescente, lhe fervia os lábios desnudos e ruborizava a face desgostosa com sua podridão de ser. O que antes lhe era uma perfeita terapia, um afago aos dias difíceis pelos quais passava quase que 367 dias ao ano, transmutou em pesadelo e a assombrava com as lamúrias da carteira vazia e dos beijos que não mais recebia. Ela ? Beijar aquela boca porca de botecos sem higiene ? Beijar aquelas putas baratas, infectadas com o terror das ruas frias, com o vírus da besta, com o toque da carne ? Jamais !
Nem sequer lhe lançaria palavra. Só o olhar, que sua mãe ensinara ser mais pesado. Também, dizer-lhe que sentia-se incompleta, decepcionada... quanto eufemismo ! Ao único que sabia da sua condição, um bichano magricela e de educação dubitável, sobrou-lhe um veneno na tigela de atum que o levou para o outro lado do véu em minutos. Morreu agonizando, miando perdão pelos crimes não cometidos; e Rosa, que não se deu sequer ao trabalho de enterrá-lo no terreno baldio ao lado da construção cinquentenária, enrolou-o num jornal qualquer da semana anterior e o lançou com toda a indelicadeza que cuidava esconder na caçamba amarela e enferrujada da rua Tristán. Mal sabia ela que enfrentaria por dias a fio o cheiro da carne putrefata e dos vermes asqueirosos roendo o bichano, transformando-o em mosca, em sapo, em cobra e de novo em verme. O lixeiro só passava às quartas, quando passava; e era manhã de sexta quando o bicho se despediu com o coquetel do kit de química que roubara da dispensa de sua mãe. Isso tudo se somava à fúria de encarar aquele Sandro-quase-cadáver cuja saliva turva escorria débil no canto da boca. Estava lá, naquele pouco resolvido corredor onde a poeira encontrava ambiente propício para se estabelecer, reproduzir e colonizar. Lá, onde os esquecidos e desmoralizados achavam seu refúgio. Lá, onde o homem da sua vida renunciou seu posto para adorar as muitas rainhas que ninguém coroou. Mas ela, que nunca fora aristocrata de coração algum, resistia pouco a pouco, petit a petit, a abrir a boca, ignorar os bons ensinamentos de sua mãe e libertar seus mais petulantes demônios. Vomitaria sua dor inteira ali mesmo, cuspiria sua alma até que contaminasse a última célula de Sandro com o rancor mais sádico que escondia naquele sorriso doente de boa menina adestrada a resignar-se a tudo. Deixaria-o saborear, em seus instantes de lucidez, que eram raros, a dor e seu gosto amargo. Porque as coisas - dizia ela aos desavisados - são rápidas, se desprendem fácil e logo morrem. Renascem da frustração, fecundam o arrependimento e voltam a apodrecer.
Seu peito farto inflou um pouco mais na penumbra e a indisposição do estômago ajudou-a a regurgitar as palavras mais severas que lhe passaram à cabeça:
__ Verme asqueiroso, medíocre, não me apareça mais aqui ou lhe expulso feito cão arruaceiro ! Seu parasita ! Aproveitador ! - o manancial de lágrimas de Rosa já secara há um tempo e, embora quisesse pôr um pouco de sentimento naqueles insultos carregados de sotaque portenho tão suaves, tão previsíveis, o que lhe saiu foi uma voz trêmula que se aproximou de um gaguejo até engraçado.
Sentimento não havia de fato, se quiseres saber. Morrera com o intemperismo, lixiviado pelas lágrimas que não conteve e pelas tantas garrafas baratas de bebidas irreconhecíveis. Se fosse conhaque, tinha gosto de melancolia; se fosse gim, tinha sabor de fracasso; ou os dois. E, dê por onde dê, não era dela o fardo maior - pois superara sua tolice sem saber como ou porquê - mas dele, a quem dedicou seu frasco de melhor perfume, o vestido reservado para a mais aguardada festa de mentira e a maquiagem mais demorada que cansou até mesmo a penteadeira, cuja luz enfrequecera no dito dia. Era dessas lembranças que vinha a reação latente do coração já frágil, que pulsava manso em seu esforço comedido, econômico.
Rosa, prostrada ali - olhando-o gargalhar zombeteiro da sua tentativa de trazê-lo de volta aos braços aprazíveis onde tanto o acalentou - deixou rolar o último fragmento líquido do amor que ela desconhecia a origem.
__ Que suma, então, mulher ! Que feche-me a porta ! Que se entregue a outros tanto patifes aos quais está acostumada ! - Sandro ralhou para ecoar nos quatorze ramos daquela árvore de concreto.
A moça soube que havia dito isso quando ele terminou o discurso soltando um pigarreio alto; e testemunhou, embora não distinguisse palavra-carnívora por palavra-presa, a despedida fria de Sandro, que ainda dava risinhos por dentro para não deixar cair o cigarro Camel light que sempre fumava pelos cantos.
Aquela era a parte em que ela daria as costas para o moço e seguiria para casa atrás de seu café gelado e um livro seboso de um autor qualquer. Porém Rosa esquecera-se lá: não virou-se de costas, não soltou a pesada porta de metal e sequer desviou o olhar. Estava praticando o que sua mãe tanto prestou a ensinar: fulminar o olhar denso, imutável, inerte até a tortura ser deveras insuportável. Tinha de queimar-lhe a carne, até que ele voltasse. Mas isso servia para os ideais de sentimento, para as coisas verdadeiras que constam nos livros de Kawabata:
__ Que feche-me a porta ! Que feche-me a p-- ! - Sandro fez ecoar novamente seus berros naquele organismo séssil, mas dessa vez o som não chegou ao alto da escada: a porta fechara com um seco 'click' e a penumbra anoiteceu, acompanhando o compasso da melodia dos pratos quebrando no andar de cima.
Maravilhoso, como sempre. Talvez ter fechado a porta com um seco click fosse mesmo o ato mais "parcimonioso" a ser feito, digo no sentido de poupar mais frustrações fecundas.
ResponderExcluirPaulo Biologia
ResponderExcluirO parasito do marido dela estava espalhando seu hálito de bêbado pela casa, templo onde ela guardava as coisas mais importantes pra ela. Seu hálito espalhava-se como bactérias se espalham pelo substrato, decompondo e corroendo tudo. A agonia dentro dela era tanta que ela preferiu matar seu gato, seu confidente, a contamina-lo com sua agonia que ela mesma não suportava. O cheiro de defunto do seu confidente já morto mistura-se com o cheiro do seu marido e ela decide mostrar o seu desprezo vomitando na frente do seu marido. Não entendí a parte dos pratos quebrando. Será que o marido dela estava tão entediado com a saída dela que resolveu quebrar os pratos? Ou será que no apartamento do outro andar outra mulher estava desmoronando?
Eu gostei da forma dela de se envaidecer usando seus cabelos e o vento. Pena ela ter recebido o bafo de um bêbado ao invés de um beijo.