terça-feira, abril 12, 2011

Tabuada do sete.






Havia alguns bons anos eu morava naquela alameda preguiçosa que subia, subia e não mais parava. Era só olharem e os visitantes, carregando ou não suas pesadas bagagens, sentiam imensa vontade de retornar para suas casas instaladas em ruas bem planejadas e, por que não, planas. Era caprichosamente ladrilhada de pedregulhos antigos, disformes, contornada por suntuosas árvores de tamarindo e, nos setembros mais chuvosos, a água, ao final do trajeto, passava rápida e encharcava os descuidados que caminhavam por perto; se não me falha a memória, foi meu tio quem a construiu - sozinho - usando seus braços fortes e sua marreta preferida, com a qual também ergueu muitas outras empresas. Talvez seu suor herculano ainda esteja lá para comprovar a façanha, quem sabe ?

Foi de um jeito veloz e inesperado, também, num abandono da ociosa e bem vivida infância, que comecei a frequentar uma escolinha no centro do município interiorano; não me recordo nitidamente da localização dela, se na rua da igreja ou atrás do bar, contudo um muro decorado com pinturas de alunos antigos circundava o lugar e tentava criar um ambiente harmônico sem muito sucesso, pois que a arquitetura de tijolos alaranjados e cheios de musgos passava uma imagem de descuido, de esquecimento, de horror. Não que eu detestasse absolutamente o lugar, ao contrário, todavia criticava aborrecido com minha mãe do porquê de não colocarem musgos também no muro, para ficar uniforme - ah, meu gosto por uniformidade !

Num dado período, seguindo um sistema confuso do magistério, as professoras titulares cediam lugar para substitutas estagiárias: era a oportunidade perfeita para que as formandas em pedagogia, voluntariamente, decretassem uma sentença perpétua de sofrimento, frustração e descontentamento. Eu, na última carteira ao fundo, ficava observando a tudo isso sem muito entender, porém era necessário recebermos a nova mestra com certa cortesia, isto é, sorrisos amarelos e arqueados ao máximo, embora os meus fossem defeituosos pela troca da dentição. Eu sorri, mas meus lábios tão logo desobedeceram e murcharam para não mais flexionarem. Satisfeita com a efusão generalizada, a moça alta e sardenta cumpria o roteiro a ela designado:

__ Classe, bom dia! Eu sou a Tia Michele e vim ocupar o lugar da Tia Antônia, porque ela vai descansar um pouquinho em casa mas volta no fim do bimestre com toda a certeza do mundo, tá ? - essa tal Tia Michele parecia lidar com um grupo de deficientes auditivos, pois que falou tão alta e pausadamente que parte da mensagem se perdeu quando uma outra era transmitida.

A turma, não muito empolgada com a nova integrante, se intimidou inicialmente, porém logo estava enviando maçãs, bilhetes, e se dedicando com afinco ao que era proposto em sala - bobos. Michele projetava seus dentes superiores à frente dos lábios e tentava uma dissonante, inocente e cativante gargalhada por longos quinze minutos; lá atrás eu me contorcia de pavor ao ver aquelas fendas entredentes mal escovadas...

__ Poemas ! Poesias ! Versinhos e mais versinhos ! Alguém aqui sabe o que são versinhos ? Douglas ? Rita ? - ela meneava entre os dois primeiros alunos meio delirante, extasiada; parecia dominada por algo de insano e apaixonado, como quando se traduz o prazer pela arte e inquieta-se por idéia promissora que quer esvair-se da memória - Ninguém, classe ? - e fez os olhos rebeldes saírem da órbita.

Eu conhecia os versos de minha mãe. Ela guardava muitos deles na estante do meu quarto; lia-os com suspense cinematográfico e remontava minhas caretas para reagir ao que Pessoa e Bandeira ousavam me revelar. Não tenho a pretensão de me vangloriar por isso; ora, eu nada entendia daquele linguajar adulto que, apesar de legível, era só uma nova maneira de comunistas trocarem informações secretas e garantir que o próximo ataque tivesse sucesso. Disso eu sabia, eu acho.

Meu desinteresse pelo discurso da senhorita era tamanho, que ergui, no prumo dos ombros de um magricela que me sucedia na fila, a recém comprada tabuada do sete. Apesar de impressa no verso de um papel fantasia cuja estampa parecia ter vindo do biquini da mamãe, me valeria o teste do bimestre e evitaria as tão ameaçadoras semanas sem gangorra. E foi aí que descobri o quão ruim era minha dramatização (e minhas intenções):

__ André, isso que você tem na mão são versinhos ? Leia para turma, vamos ! - Via os olhos dos coleguinhas se espremerem nas frestas, se metendo entre um e outro aluno inquieto para observarem a vermelhidão e o incêndio em minhas bochechas; também testemunhavam agitados a expectativa da professorinha se estender sobre mim como alguém numa espreguiçadeira em dias de verão.

Entre culpado e renitente, enchi o peito para acatar as ordens que de toda forma resultariam num berro de advertência:

__Sete vezes um é igual a sete, sete vezes dois é igual a quatorze, sete vezes vezes três é igual a vinte e um, sete vezes quatro é igual a vinte e oito... Sete vezes oito é igual a cinquenta e seis, sete vezes nove é igual a sessenta e três. Acabou.

Meu fôlego infantil era definitivamente limitado - eu bufava como um animal cansado - mas algo em mim alertava que o silêncio que se seguiu do fim traria, dali em diante, palmas de orgulho sincero, ovações e gritos emocionados. Eu estava quase certo. Quase.

Os pés da "Tia Michele" se fizeram pedra em segundos sobre o piso oco e carcomido pelos insetos; o sapateado na minha direção (ploc, ploc ploc), os olhos de terror desfocados, a saliência doentia das gengivas escurecidas, tudo isso me convencia de que eu não receberia as tão desejadas palmas para meu sucesso na memorização dos cálculos de nível 'difícil'. Um puxão, na verdade, dois ergueram-me violentamente da cadeira de madeirite - há muito moradia dos simpáticos cupins - e eu inspirei, inconsequentemente desarmado, o feromônio romano dos meus coleguinhas desejosos por ver meu castigo ali mesmo, na frente de todos, numa improvisada praça pública. Contudo, relembrando das minhas lições com a velha, digo, noiva cadáver, digo, excêntrica, digo, dona Zilene da Rua de Baixo e de um soneto que deixei repousar na manhã anterior sob da cigarreira da Mamãe, balbuciei, atropelando distraído o primeiro quarteto, a minha mais notável produção - inteiramente revisada por minha professorinha biruta e graciosamente umedecida pelas respeitosas lágrimas de progenitora orgulhosa. da Mamãe. Eu - cá entre nós - achava toda aquela parafernália uma breguice só: horrível. Porém vi-me livre quase que imediamente das mãos ossudas da 'substituta' nos três primeiros versos. Olhava-me perplexa, numa alternância indefinível de fúria e confusão que transmutou sua face deformada num risinho com um hálito insano e uma imagem bestial. Meu corpo vibrou com calafrios hiperativos e fez ranger a carteira onde ela me lançou sem muita violência. E lá fiquei, terminando o último terceto, com os olhos apertados, esperando o bofetão.

__ Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá !!! - abri os olhos meio desconfiado da cena que seguiria e vi, com descrença absoluta, Zilene com uma grinalda turquesa de quase três metros socando a mesa da Mariana e apoiando-se com a bengala no vão livre de onde seria instalada a porta do "Ciclo A Inicial". Usava um vestido de noiva num tom claro de bege com dezenas de penduricalhos de plástico em forma de gota; no seu rosto enrugado e triste, uma maquiagem magenta ou púrpura (eu não sei exatamente) reluzia impiedosa e fazia doer meus olhos e os de todos os presentes. Respirou fundo, fazendo um barulho que julguei ser o gemido do ar passando por milhares de obstáculos em função dos milhares de cigarros que consumia diariamente, como se concentrasse uma reflexão ensaiada a horas:

__ A entonação do último verso está completamente errada. Não é "Lírios e damas da noite para, enfim, lhe adornar" como se estivesse com constipação. - e interrompeu a fala, esperando de mim uma repetição.

A sala toda, como se aguardasse o momento a séculos, entoou uma gargalhada alta , infinita e ressonante, que ecoou por todo o bairro e me afugentou para o colo da minha heroína. O perfume barato de acetona e álcool que ela borrifava na roupa fazia-me espirrar , lacrimejar , e Zilene botou me no colo, descendo as perigosas escadas do colégio feito criança e espantando as pombas que pareciam zombar de nós com os arrulhos graves e incessantes. Eu chorava como nunca; e ela, quando olhei para o alto, botava um nariz de palhaço e sorria para a multidão que eu não conseguia ver com aquela imaginação limitada. Pedia para que ela me colocasse de volta no chão e Zilene abria meus braços para fazer-me avião, motoqueiro, dragão chinês e libélula.

Contudo ela não escondia a maquiagem que agora escoava para sua boca lamacenta e seguia o curso da lágrima mais triste e ao mesmo tempo mais feliz que alguém já se permitiu chorar. Zilene viu-se pela primeira vez; e eu a via também, linda e mais delicada que qualquer cisne ou lírio, que qualquer perfeição ou "belo".

5 comentários:

  1. Seu estilo me parece mais delineado, palpável. É bom vê-lo escrevendo mais depois de um tempo mais conturbado, né? Outro bom espécime, sobretudo o final!

    Keep writing.

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  2. Poxa, eu não sei se meu primeiro comentário apareceu, mas enfim, por via das dúvidas vou escrever novamente:

    É inspirador ler algo assim.

    Bravo =)

    Winona.

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  3. É um prazer ler textos envolventes como este.

    Arthur, talento você tem e muito! Divulgue mais os seus textos! Aproveite que a universidade é um lugar eclético, com espaço e público para todos. Além disso, o espaço cultural de nossa cidade está crescendo e a cada dia está dando mais espaço para novos talentos. Aproveite!

    Lembre-se sempre: "[...]o triunfo pertence a quem se atreve" (Charles Chaplin).


    Da sua veterana e mais nova seguidora,
    Hanaisa

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  4. O texto me pareceu confuso, pois muitos personagens aparecem do nada. A maioria eu tive que tirar da minha imaginação. Isso faz com que eu me identifique com a história. A tabuada dos sete decretou a sentença perpétua de sofrimento para a professora substituta. Em um contra ataque fulminante a professora castiga o poeta inocente que nem sabe a gravidade do que acaba de ler.
    Paulo

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  5. Nossa... adorei o texto! Foi muito bom lembrar daquele menino alegre e sensível,com seus dentinhos irregulares, subindo a ladeira a contemplar com seus olhos sonhadores a natureza que pra ele sempre foi inspiradora.

    Cidy.

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