quarta-feira, maio 31, 2023

Série Fragmentos - I

1.  Me deixa em paz (ou O dia em que acordei pensando nas Minas Gerais)


"La soledad le había seleccionado los recuerdos, y había incinerado los entorpecedores montones de basura nostálgica que la vida había acumulado en su corazón, y había purificado, magnificado y eternizado los otros, los más amargos" 

Cien años de soledad por Gabriel García Márquez, 1967.


Evitar a dor, como Alaíde Costa advertia, é impossível. E nos embalos dessa poesia eu refletia sobre a dor que causam o tempo e a idade. Nem mesmo concluí meus 30 anos e já me palpita o coração pelo medo da potência dos minutos que me escorrem as mãos. Penso na minha vontade incontida de agarrá-lo pela gola da camisa e de pedir pra que ele pare. Pare pra que eu desfrute do sorriso de minha mãe, para que eu possa admirar mesmo de longe a força dos meus pais, para que eu me encante com a juventude dos meus irmãos e com o desejo inesgotável da minha menina... Pare para que eu não me dissolva no meu pequeno apartamento, arranhando as paredes de agonia, para que o relógio se sossegue manso, que enfim sustente-me no instante, na minha paz de um domingo preparando um bom almoço, acompanhado de uma cerveja e um bom som. Pare para que eu consiga um pulso de reflexão sobre meus dias, meu passado, presente e futuro, num breve silêncio contemplativo pra saber se eu aprendi algo, se cresci, se melhorei, se abandonei velhos hábitos e vivi. Não é o medo da partida, mas o desejo puro, como de respirar fundo um ar novo, talvez inédito. Medo de nunca experimentar esse não-tempo, de não poder participar do aterrorizante e lindo fenômeno no qual ele, o tempo, por uma breve distração, esqueça de passar. Medo de jamais poder olhá-lo em retrospectiva e entender-me sem que nesse processo eu o veja passar e o consuma como em outra tarefa qualquer. Medo de que o tempo seja uma força que nos impulsiona somente para frente, e que o que passou seja somente uma fantasia dos antigos e dos arrependidos.

Lembrar é, intrinsicamente, um ofício de quem está só, ou dos que temem viver assim.

- A


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos e opiniões em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

7 comentários:

  1. Parece que vc sente falta de alguém. E esse alguém já fez parte da sua vida e hj vc recente essa falta (digo isso até pelos textos anteriores). Acho q posso tá viajando… mas apesar de serem textos bonitos, a sensação que eu tenho é q de alguma maneira eles doem… dizem que da dor se extraem coisas belíssimas, mas espero q nada esteja doendo por aí pra q vc consiga continuar extraindo seu belo sem dor… até pq ninguém merece viver com dor pra sempre, ne?! Faz um mal danado pro coração e apaga o sorriso do rosto

    Já li ou ouvi em algum lugar q quem muito sorrir dorme melhor (comprovado cientificamente, ou pelas vozes da minha cabeça, mas tenho qse certeza q eh comprovado cientificamente 😊)

    Ps: fazer aniversário eh legal, sô! Legal demais!!!

    Ps1:Parabéns! 🥳

    Ps2: vc escreve bem!

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    1. Ressente* (voltei pra corrigir, haha)

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    2. Olá, muito obrigado pelo comentário! Acho que o que eu mais amo nesse hobby de escrever - e sobretudo nesse espaço público e vulnerável - é a infinidade de sensações diferentes que nós - leitores e autor - colocamos e interpretamos em cada história.

      Meus textos cobrem uma grande parte da minha vida, onde eu consegui até hoje falar de falta, de perda, de desejos, de ficção, de sonho, de infância, do que eu li, do que eu admiro e também do que me inspira. E acho que a dor faz parte desse mosaico, sabe? E também me vejo meio cínico no sentido em que penso que a condição humana e criativa pressupõe alguma inquietação, alguma dor, e aí a gente tem uma liberdade imensa pra decidir o que fazer com isso.

      Gostei do conselho dos sorrisos e espero que os cientistas estejam certos, no final, haha. Vou tentar isso para tentar sobreviver aos meus pesadelos acadêmicos.

      Por fim, não entendi os dois primeiros PSs, porque meu aniversário está longe ainda, mas agradeço pelo terceiro, haha! Fique bem e até a próxima!

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  2. Por vezes deixei livres meus pensamentos acerca da vida, histórias que contamos, memórias que guardamos e, quando dei por mim, senti medo de que um dia tudo se perdesse por qualquer motivo: morte, doença ou simples desatenção. Foi ao respirar calmamente que entendi que, mesmo estando em constante movimento, a cada microssegundo, nessa dimensão que chamamos de tempo, a vida é presente e é isso que a faz preciosa. E ela ganha significado exatamente através da consciência de nossa mortalidade e/ou efemeridade da vida. Apesar disso, é bonito o que podemos fazer diante desse fato.

    Ler esse texto me fez pensar na obra de Heidegger, "Ser e Tempo" (Sein und Zeit/Being and Time). Não sei se já leu, mas fica a sugestão. :)

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    1. Olá, obrigado pelo comentário! Eu ainda não consegui me desprender muito desses medos, sabe? Acho que é algo que vai me acompanhar por um tempo até eu treinar esse desprendimento e exercitar a impermanência budista, esse foco no tempo presente. A vipassana, por exemplo, me ajudou um pouco nisso, na época em que eu fiz um curso de 10 dias (!) de meditação, mas acho que eu não fui o aluno mais exemplar que passou por aquela turma.

      Eu vivo transitando nessa linha do tempo, mas muito mais no futuro do que no passado, embora eu não saiba se isso é um bom ou um mau sinal, haha. Nessas horas é que eu desejo ser um pouquinho mais ignorante para poder viver numa dimensão que lida menos com essas questões e está mais focada em assuntos mais mundanos. Menos fantasmas, mais prazeres.

      Sobre o livro que você indicou, não li. Em verdade, acho que não tive contato com a literatura do Heidegger, embora tenha amigos que conhecem bastante. Eu acho a literatura alemã, sobretudo esses autores renomados, bem intimidadora pra ler no material base, mas vou deixar anotado na minha lista pra conferir depois. Obrigado pela dica!

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  3. Que coincidência maluca você falar da vipassana… Fui convidada a conhecer um espaço em que trabalham com ela e estou bem curiosa! Aliás, bom saber que alguém não tenha se sentido um aluno exemplar, porque em caso de me sentir assim, não estarei só.

    Ainda sobre o tempo, viver na ignorância sempre parece uma boa opção, mas só parece :l

    Sobre Heidegger, é sim uma literatura intimidadora, bem como Deleuze e Guattari, que também estão presentes nos meus estudos últimos. No entanto, conto com o auxílio do meu orientador para uma compreensão mais realista destes e outros nomes… e aos poucos ela se torna sólida (ou será que é pedir demais?!)

    De toda forma esses autores me remetem muuuito à sua escrita e temáticas.

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    1. Foi uma experiência interessante, não vou mentir, mas bastante assustadora também. Durante os 10 dias eu achei que fosse enlouquecer. Acho que o nobre silêncio consome demais a mente, é quase uma neurocirurgia mesmo. Vi colegas de curso entrando em paranoias e desesperos surreais, mas não me arrependo nem um pouco.

      À época me ajudou muito, sobretudo porque um mês após o curso estávamos no olho do furacão da pandemia. Porém, depois de um tempo sem prática, percebi que meditação é uma atividade da mais nobre disciplina, então sem consistência não há progresso.

      Voltando à filosofia, eu imagino que ter um mentor deve ajudar demais nessas leituras difíceis. Eu às vezes sinto falta disso na minha área, porque há uma carência grande de mentoria, e quando você já avançou algumas casas na hierarquia acadêmica, as expectativas são de que você tenha tudo na ponta da língua. Menos perguntas e mais respostas.

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