sábado, agosto 12, 2023

Série Fragmentos - III

 


3. Uma manhã nas florestas em que meditei observando a despedida de uma raposa.


"(...) Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então, as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão (...)"

  As Intermitências da Morte por José Saramago (2005)
 

Deixo aqui de pronto, nua e crua, a triste curiosidade que me ocorreu ao ver partir tantos e tantos pequenos animais que encontro nas florestas onde caminho. Quando acometidos por alguma chaga, alguma dor, eles recolhem-se em ninhos de espinhos e arbustos a esperar sua hora de partida, sempre enroscados em arvoretas, sozinhos, miúdos, encolhidos, seguros... É uma cena sem choro, sem raiva, sem medo ou injúria, mas que eu, irredutivelmente humano, atribuía lamento e pesar.

Ainda é inconcebível para minha estreita e limitada inteligência imaginar que a natureza coube de selecionar para todos os seres, menos para nós, o não-luto, a não-despedida, pois que somos - dirá o leitor - esse vórtex de culpa que não vai e não deixa ir. Para nós, a memória é como o petróleo do tempo, o negrume turvo que afia as culpas e perece as belezas. E para além do não-luto somos vítimas de um perverso esquecimento, máquinas de desmemoriar, brutas rochas de instantes, de fluxos vazios e imprecisos de quilojoules tentando ordenar o caos, mas que cedem ao impermanente rio que corre e dilui o que foi, e até o que é agora, hoje, teu. Neurônios são por natureza engenhosos, sádicos e criativos. Centelhas que acendem sem motivos, desligam sem aviso, motores que nos dirigem como vagalumes numa noite sem luar. Figuras enlutadas em trânsito, propósitos buscando iguais.

Olhando a despedida de uma raposa, vi que a pureza dos animais mora na impossibilidade de interpretar a memória e dar sentido a ela. Não fazem velórios, não marcam datas... Vivem, protegem, reúnem-se e educam-se sem que isso seja um ritual, sem que seja uma norma, um grande evento. São impulsos de um sagrado misterioso e perpétuo... Distante da sua morada, ela protegia os seus, afastava os predadores dos pequenos e preservava seu miúdo corpo; sem sustos, sem arrependimentos, e em absoluta graça. Ainda que eu recebesse uma centena de vezes aquela mesma lição, não saberia dizer o que aqueles olhos serenos me contavam. O impulso de entender não superou a vontade de partir, de recuar.



-A


A imagem foi gentilmente dedicada ao texto por Hermano Zenaide, que publica desenhos em sua página no Twitter: https://twitter.com/hermanozenaide

2 comentários:

  1. Engraçado como em um texto é possível ler a memória sob um ponto de vista filosófico e, ao ler este, só consegui me emocionar, sentir, sentir e sentir.

    A maneira como você leva o leitor de um ponto a outro com tanta fluidez é extraordinária.

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    1. Olá, obrigado pelo comentário! Por mais que tenha um lado ficcional aqui, esse texto traz muitas memórias reais de um período em que fiquei em uma estação de pesquisa em uma floresta temperada de pinheiros. Essas cenas, em especial no período do inverno-primavera, eram bem recorrentes e me davam um aperto grande no peito ao mesmo tempo em que me ensinavam bastante sobre processos invisíveis que acontecem na natureza. É um privilégio, mas sempre carregado de pesares.

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