sábado, março 22, 2025

Pétalas de Margarida

"Se eu disser que vi um pássaro 
Sobre o teu sexo, deverias crer? 
E se não for verdade, em nada mudará o Universo. 
Se eu disser que o desejo é Eternidade 
Porque o instante arde interminável 
Deverias crer? E se não for verdade 
Tantos o disseram que talvez possa ser.  
No desejo nos vêm sofomanias, adornos 
Impudência, pejo. E agora digo que há um pássaro 
Voando sobre o Tejo. Por que não posso 
Pontilhar de inocência e poesia 
Ossos, sangue, carne, o agora 
E tudo isso em nós que se fará disforme?" 

—  Do Desejo em Do Amor (1999) por Hilda Hilst (p. 66)


I

Vá, vá viver um grande amor.

Abra ferida nova de vida, clareira, e destino.

Rasgue no couro as velhas manias, papéis desbotados, antigos.

Vá, toma pela mão teu sonho.

Repita os mesmos passos, lance os mesmos dados.

E, relógio parado no tempo, acerte teus descompassos.

Vá, vá viver um grande amor.

Mas não tome por amor o desejo,

Que ao despertar vai olhar-te de volta o espelho,

E lhe faltará a pureza nos gestos,

A calma e a cama de alguém feliz.

II

Portanto, não viva um grande amor.

Apague a trilha detrás de ti,

Oculte teus passos, recolha as migalhas de pão.

Dissimule tua pequena morte, 

Ou, se puder, só morra assim pequena na mais pura solidão.

Vá, faça-te densa neblina matutina,

Mude de rota, entre em qualquer escura viela ou rua mais torta,

Mude de vida, de direção, e guarde-me no terço mais sereno do teu coração.

Não, não vá viver um grande amor.

E se viver, que seja tão somente estúpido, torpe, afã,

E que ao acordar não encontre sentido,

Nada além de um reflexo tosco e distorcido,

Um gesto, um gosto amargo, a ansiedade do infausto, do desafortunado.

III

Mas insisto que vá, vá viver um grande amor!

Lance no espaço indecifrável do mundo as tuas melodias,

Cante pra eles tuas novas, 

Floresça nova estação, a primavera dos teus dias.

Vá, remende minhas falas, repare minhas agruras,

Goze as nossas melhores noites e diga que são só tuas.

Refaça as viagens, leia meus livros, ouça meus discos,

E, atriz de teatro, encarne meu personagem no palco das ruas.

Vá, perca-me nas esquinas da velha cidade,

Encontre-me no limiar de um tempo sem memória,

Minta para si teus causos mais vulgares.

Vá, vá viver um grande amor.

Ame o próprio amor, faça-o fonte inesgotável de alegria,

E sustente o peso e a leveza de ser um em dois e dois em um.

IV

Mas se por um segundo hesitares, não vá viver um grande amor.

Confidencie pra mim a silenciosa ausência da dança,

Proteste, quiçá, a falta de gargalhadas, um fato novo.

Deixe que as margaridas no vaso não desabrochem, que murchem!

Peça à cigana que ponha as cartas,

Esconda-se nos búzios, nos arcanos do tarô,

Nos Enamorados, no Julgamento ou no próprio Louco e suas vicissitudes.

Esqueça minhas frases decoradas e tolos saberes,

Lamente a morte do desejo e abrace o desajuste dos tempos líquidos, impermanentes.

Não, não vá viver um grande amor.

Trema de medo, esqueça a forma, o tom, a nota, a história

Ceda por fraqueza ao peso dos afetos falhos

Da invencibilidade do adeus e da memória.

Vá, vá viver um grande amor. 

Vá. Não vá. Vá. Não vá. Vá. Não vá. Vá.


-A


sexta-feira, março 07, 2025

Rio Doce

20/07/17 • 14:38

Usei a própria ponte que entrecortava teus vales como apoio para escrever esse bilhete. A letra miúda que agora transcrevo eu usei para economizar espaço no único papel que sobrou no bolso: um pequeno envelope miúdo, já envelhecido pelos oito anos que nos separam daquele dia. No verso, a fraca tinta azul denuncia meu medo de perfurar com a ponta da esferográfica minha chance de fotografar aquele momento com palavras, na falta de luz.

Lembro-me que foi como uma pintura suja nosso primeiro encontro. Como um pincel mergulhado em um indistinguível godê de aquarela, nem eu e nem você íamos muito bem. Tons escuros, águas túrbidas e desarmônicas. De ti, só conhecia os afluentes, vênulas e arteríolas, brejos e riachos, pequenos braços dispersos no globo, trechos que alimentam teu pulso, tua força majestosa que atravessa estados, nutre oceanos, talha caminhos. Nos meses que antecederam minha não solicitada visita, via-o pela TV, que, a bem da verdade, anestesiava o que acontecia na crueza da tua verdade. Era como se abafassem meus ouvidos com as mãos apertadas contras as têmporas, isolando-me no silêncio das vinte outras pessoas que me acompanhavam naquela jornada. Havia ali uma conversa telepática, um fragmento de luto pelo teu fluxo que, resistindo, ainda agoniza(va) calado a correnteza cor de lama. Em uma cicatriz diferente daquela que se fecha, pude ver o duro golpe que desferiu o progresso e seus intrincados e nefastos nós de morte. Portanto, meu caminhar naquela ponte era como um cortejo sobre o próprio caixão, uma dor que nem sei decerto descrever. Minha mágoa, por tradição, me pediu a caneta e eu só soube obedecer.

Enquanto eu procurava um cantinho discreto para esse registro, um casal de aves cruzou o céu, cantarolando alguma melodia para quem quer que as ouvisse, maritaquinhas alegres se amontoavam nas embaúbas e outras árvores mais corajosas que se prendiam à margem. Suas conversas familiares enchiam o ar com um paradoxo de beleza e dor. Parecia uma lição, um recado sutil para os ouvidos que - há muito convertidos - já não precisavam daquele sermão. Seu canto, seu apelo quiçá, eram como notas abafadas pelo vapor dos fornos, motores a combustão e explosões que separavam aquele santuário da realidade. Se eu pudesse, seria eu o teu maior eco para o mundo, para além da pequena bolha que se formava ali, o silêncio do grupo, as aves procurando respostas, os peixes buscando ar.

Saiba que não quero aqui achar muito prazer nas palavras. Não quero correr o risco do cinismo da dor. Apesar disso, eu sei que você vai encontrar tua cura, vai cicatrizar as feridas e de nós não guardará mágoa. Vai crescer nossos alimentos, cuidar da nossa gente e sorrir de novo um dia. Um tempo em que talvez eu não esteja aqui pra te ver renascido sob o cuidado de mamãe Oxum. Mas sei que virá. Por isso rogo para que teu leito se cubra de verde, que tua pressa de chegar no Atlântico seja tão grande quanto o cuidado com cada fragmento de vida que te habita, habitou e habitará. Cada minúscula célula que te chama de casa, cada grão que alimenta as nossas crianças, cada filhote e sua mãe matando a sede na ribeira.

Viva o Rio Doce e sua história milenar. Viva sua beleza imortal de uma pintura inabalável. Lamento cada gota imaculada que um dia pousou no teu leito e espero ansioso um dia poder me banhar nas tuas águas.

 

-A