20/07/17 • 14:38
Usei a própria ponte que entrecortava teus vales como apoio para escrever esse bilhete. A letra miúda que agora transcrevo eu usei para economizar espaço no único papel que sobrou no bolso: um pequeno envelope miúdo, já envelhecido pelos oito anos que nos separam daquele dia. No verso, a fraca tinta azul denuncia meu medo de perfurar com a ponta da esferográfica minha chance de fotografar aquele momento com palavras, na falta de luz.
Lembro-me que foi como uma pintura suja nosso primeiro encontro. Como um pincel mergulhado em um indistinguível godê de aquarela, nem eu e nem você íamos muito bem. Tons escuros, águas túrbidas e desarmônicas. De ti, só conhecia os afluentes, vênulas e arteríolas, brejos e riachos, pequenos braços dispersos no globo, trechos que alimentam teu pulso, tua força majestosa que atravessa estados, nutre oceanos, talha caminhos. Nos meses que antecederam minha não solicitada visita, via-o pela TV, que, a bem da verdade, anestesiava o que acontecia na crueza da tua verdade. Era como se abafassem meus ouvidos com as mãos apertadas contras as têmporas, isolando-me no silêncio das vinte outras pessoas que me acompanhavam naquela jornada. Havia ali uma conversa telepática, um fragmento de luto pelo teu fluxo que, resistindo, ainda agoniza(va) calado a correnteza cor de lama. Em uma cicatriz diferente daquela que se fecha, pude ver o duro golpe que desferiu o progresso e seus intrincados e nefastos nós de morte. Portanto, meu caminhar naquela ponte era como um cortejo sobre o próprio caixão, uma dor que nem sei decerto descrever. Minha mágoa, por tradição, me pediu a caneta e eu só soube obedecer.
Enquanto eu procurava um cantinho discreto para esse registro, um casal de aves cruzou o céu, cantarolando alguma melodia para quem quer que as ouvisse, maritaquinhas alegres se amontoavam nas embaúbas e outras árvores mais corajosas que se prendiam à margem. Suas conversas familiares enchiam o ar com um paradoxo de beleza e dor. Parecia uma lição, um recado sutil para os ouvidos que - há muito convertidos - já não precisavam daquele sermão. Seu canto, seu apelo quiçá, eram como notas abafadas pelo vapor dos fornos, motores a combustão e explosões que separavam aquele santuário da realidade. Se eu pudesse, seria eu o teu maior eco para o mundo, para além da pequena bolha que se formava ali, o silêncio do grupo, as aves procurando respostas, os peixes buscando ar.
Saiba que não quero aqui achar muito prazer nas palavras. Não quero correr o risco do cinismo da dor. Apesar disso, eu sei que você vai encontrar tua cura, vai cicatrizar as feridas e de nós não guardará mágoa. Vai crescer nossos alimentos, cuidar da nossa gente e sorrir de novo um dia. Um tempo em que talvez eu não esteja aqui pra te ver renascido sob o cuidado de mamãe Oxum. Mas sei que virá. Por isso rogo para que teu leito se cubra de verde, que tua pressa de chegar no Atlântico seja tão grande quanto o cuidado com cada fragmento de vida que te habita, habitou e habitará. Cada minúscula célula que te chama de casa, cada grão que alimenta as nossas crianças, cada filhote e sua mãe matando a sede na ribeira.
Viva o Rio Doce e sua história milenar. Viva sua beleza imortal de uma pintura inabalável. Lamento cada gota imaculada que um dia pousou no teu leito e espero ansioso um dia poder me banhar nas tuas águas.
-A
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