Hoje faz exatos 4 anos desde que André e Custódia tomaram os rumos merecidos que o Deus justo lhes deu. Tirando os quatro cumpridos, eles ainda haverão de passar uns 15 bons anos naquelas celas infestadas das mais cruas moléstias que surgem em São Carlos - a prisão que inventaram na província do sul dedicada a abrigar os mais oprimidos e famintos de nosso país. Não sei você, mas vejo isso talvez como a grande ironia para a situação dos dois. Torço, e me contorço por dentro ansioso, para que o corpo dele - e também o dela, não me importo - já não seja mais um santuário da individualidade e do eu-íntimo que filósofos e psicanalistas sacramentam. André, eu sei, já provou da crueldade dos homens pelo que me disseram os guardas de seu pavilhão aos quais paguei duas cervejas e um torresmo. Desembucharam cada horror que não cabe aqui nessa confissão, forte demais; e Custódia, ah, essa sim eu fiz questão de visitar - com xale e lenço no rosto pra não me denunciar. Vi que sentiu nos ossos o rancor e o ódio que cada mulher encarcerada esconde por trás de boa pele e voz suave: eram animalescas no baixar do sol.
Não há como me solidarizar com o que eu tanto lutei pra reverter. Apartando, claro, Custódia, com quem jamais troquei palavra, passei uma vida inteira me fazendo espelho, quase gritando pra me fazer ouvir e André refletir minha imagem reta. E não é narcisismo, ora, todos em volta estão ainda vivos para confirmar minha estória. Eu, sim, era como papai nos seus tempos áureos de boa forma e muito trabalho, não ele, como mamãe bateu firme o pé e no peito pra dizer aos mais próximos. Parece até que eu via a família acabar em si desde então; antecipava cada mau momento e deslize de cada um que edificava - ironia bela que encontro agora - nossa própria ruína. Os dias iam frouxos no largo do tempo e minha mãe afundava densa e suave em sua depressão, deixando a inércia da mente ser parte integrante do horror que se tornava a casa: banheiros que se faziam baias de porcos, comida abrigando moscas e insetos inumeráveis visitando nossas roupas e trazendo todo tipo de peste para nosso "lar". A morbidez do lugar parecia estampada em cada centímetro dos móveis, roupas e jardim terroso. Perdíamos batalhas diárias para o álcool, a traição do papai e para o bom moço que aparecia a cada mês para dar um alô e deixar uma maçã daquelas bem vermelhas do mercado do Centro para a senhora amorfa esticada na cama vendo shows de televisão e as pupilas esgarçadas para o nada. Bastava, não é, filho da puta ? Um agrado catado em bons momentos pagava sua dívida com aquela que te deu do peito e pôs o universo pra puta que pariu pra te fazer homem... Que grande homem !
Hoje não tenho tantas notícias da mamãe. Depois que convidei-a, quase suplicando, que viesse comigo para Santana e ela devolveu logo um não seco junto de um tapa no rosto e um "covarde", percebi que André estava tão vivo em sua mente e coração que toda memória ligada a ele será um memória de esperança e ternura tão típicos de brasa e amor quanto pode ser o sentimento materno em sua manifestação mais instintiva... Nada lhe abria os olhos; nem mesmo um crime chulo e repugnante como aquele ao qual meu irmão se propôs por mera afirmação de seus limites. Contaram-me uns velhos conhecidos que ela está de vida nova, ajuntada com um velho da idade que papai teria e que tomou de volta agulha e tecido pra fazer sua renda. Perguntei onde estava a velha e disseram-me que ainda vive no nosso sobrado velho e, pelo que lembro, com um cheiro impossível de hibisco que só ela pra aguentar. Ela já era conhecida no nosso entorno e fazia quase que toda a roupa da vizinhança na época boa, antes de papai desviar. Depois largou. Virou lavadeira, as mãos descascando junto do vigor e meses depois teve de dar seu lugar e ficar de cama. Eu já fazia em torno de 110 palavras na firma, o que me permitia custear os remédios para o pulmão, o humor a base de comprimidos e o básico pra não morrermos de fome. André vinha aos sábados com a maçã quinzenal, para a qual ela exibia um largo sorriso e que praticamente devolvia sua plena saúde. Engraçado isso, é verdade, mas hoje já não fisga o peito como outrora me fez perder as forças.
Hoje não tenho tantas notícias da mamãe. Depois que convidei-a, quase suplicando, que viesse comigo para Santana e ela devolveu logo um não seco junto de um tapa no rosto e um "covarde", percebi que André estava tão vivo em sua mente e coração que toda memória ligada a ele será um memória de esperança e ternura tão típicos de brasa e amor quanto pode ser o sentimento materno em sua manifestação mais instintiva... Nada lhe abria os olhos; nem mesmo um crime chulo e repugnante como aquele ao qual meu irmão se propôs por mera afirmação de seus limites. Contaram-me uns velhos conhecidos que ela está de vida nova, ajuntada com um velho da idade que papai teria e que tomou de volta agulha e tecido pra fazer sua renda. Perguntei onde estava a velha e disseram-me que ainda vive no nosso sobrado velho e, pelo que lembro, com um cheiro impossível de hibisco que só ela pra aguentar. Ela já era conhecida no nosso entorno e fazia quase que toda a roupa da vizinhança na época boa, antes de papai desviar. Depois largou. Virou lavadeira, as mãos descascando junto do vigor e meses depois teve de dar seu lugar e ficar de cama. Eu já fazia em torno de 110 palavras na firma, o que me permitia custear os remédios para o pulmão, o humor a base de comprimidos e o básico pra não morrermos de fome. André vinha aos sábados com a maçã quinzenal, para a qual ela exibia um largo sorriso e que praticamente devolvia sua plena saúde. Engraçado isso, é verdade, mas hoje já não fisga o peito como outrora me fez perder as forças.
Santana fica mais perto da cadeia de São Carlos do que Monte Azul, onde morávamos todos antes dos incidentes e que é o extremo norte de nosso grande e pobre estado. Por isso, deduzo hoje que mamãe - analfabeta desde sempre - não tem qualquer notícia de seu preferido, justo porque a costura não lhe dá tempo nem rendimentos para viajar pra saber de seu Andrezinho ou lhe retribuir as maçãs que lhe curaram da tristeza indissolúvel que as andanças de papai lhe trouxeram. Dadas as circunstâncias, devo dizer que há males que vêm para o bem, pois sei que ela não suportaria ver seu caçula violado e espancado pelas mais vis criaturas que lá dividem comida, cama e chuveiro com seu protegido. E não aguentaria nem saber que ele estava sujeito à higiene mais inumana que qualquer lugar da Terra consegue igualar. Uma prisão é o ensaio para o inferno, uma preparação leal ao que descreve a bíblia e o vigário, certamente.
Faz mesmo muito tempo desde que deixei nossa casa pra me acomodar longe do sobrado onde tanta lembrança ruim retumba entre garrafas batidas de papai e esquinas desertas. Mas, paradoxo infeliz, meu sentimento de injustiça e ódio permaneçam os mesmos desde então. E por esses dias me veio um desejo incontido que me arrancou o sono infinitas vezes de dar a mamãe umas belas mentiras de presente de aniversário pra que seu coração repouse tranquilo a cada noite, pois seu travesseiro, tenho certeza, compartilha um medo e uma incerteza que, eu sei, são mais corrosivos que a própria perda... Mas não, decidi enviar a ela a própria reportagem destacada do jornal que guardo até hoje num fundo falso de uma gaveta: a verdade. Um ato vingativo, é claro, mas que destilaria múltiplas vezes toda a minha dor, misturada a ira e confusão que ainda visitam uns sonhos ruins. No dia em que saiu a sentença, Pedro Santo escreveu uma coluna apertada numa página perdida entre os classificados que falava da prisão de meu irmão; sem foto e com a palavra GOLPE bem negritada, pedi que a chamada tivesse a intenção de saltar aos olhos de um leitor distraído para ver do que um vizinho ou irmão é capaz de fazer. Planejei deixar o recorte colado a um papel qualquer, pra me poupar de ter que descrever e redigerir tudo no meu intestino moralmente saturado de todo aquele doloroso enfado: a última carta que eu terei de enviar, eu espero, mas jamais escrever...
Quando deixei a firma de Seu Calixto pra fazer minha vida bem longe daquela terra quente e banhada às formas de julgamento mais avessas da humanidade, o velho me deu de presente a máquina que usei durante o tempo em que lá fiquei, juntando pouco a pouco o que dava pra ir embora ou mesmo pagar um ônibus que me tirasse daquele inferno para algum vilarejo nos arredores. Pus na mala de minha partida apenas o que não me recordasse Monte Azul, mas senti-me impelido a fazer da máquina um amuleto da minha vitória e, enfim, soquei-a entre umas camisas velhas e a botina que usei na roça. Nunca tirei-a da mala. Também, nunca tive necessidade de me corresponder com ninguém nem mesmo agora que estou na minha escrivaninha debruçado sobre um envelope e o jornal do dia 12/04/65; hoje tenho meus filhos e uma vida muito bem arquitetada longe dos meus fantasmas, obrigado. E não era preciso cerimônia; era só colar e despachar para a Rua dos Santos, 118, meu presente mais que especial...
Antes fosse assim tão simples dentro do nosso universo ideal, rio-me. Pois parece que por força maior, puro azar ou provocação do destino não achei a goma na caixa de ferramentas. Sou terrivelmente metódico com a organização das minhas coisas, sobretudo com a caixa de ferramentas que deixo no alto, bem longe dos meninos, na garagem. E, no fundo eu sabia, que não achar significava falta mesmo. Acabou, tem de comprar mais. Fui tomado por um desespero tão quadrado e sufocante que saí disparado pela casa, uma vermelhidão e um calor na face insuportáveis. Perguntei a Ana se tinha visto a porcaria da cola e ela respondeu entre tossidos que não via a cola havia um tempo, que usou pra colar uma foto no álbum mas que voltara com ela pra caixa; corri ao quarto dos meninos, que provavelmente teriam por conta da escola, e nada - era férias de dezembro. Já era tarde também, nada de livraria aberta e eu sabia que amanhã minha coragem berrante agora seria um miado amanhã. Olhei a caneta em repouso na mesa da sala com uma dor nas têmporas que por um instante bloqueou minha audição. Um zunido se seguiu, a cabeça rodopiou e eu voltei meio torpe... Sabia que teria de ser tudo com minhas mãos e palavras, mas me acovardei e fui atrás da máquina; pois ela, sim, iria dizer o que foi dele pra ela pra que entendesse tudo logo e aliviasse a cabeça que certamente não andava bem.
Foi bem custoso retirar o entulho do meu passado. Aquela parafernália tosca e pesada a valer que talvez tivesse sido minha chibata se tivesse nascido preto; talvez a mais tola ideia que já tive na vida, porém segui com a ideia fixa. Minha malícia não reduziu por isso. Fui delineando cada passo do processo que seguiu por longos meses, as teclas em disparada e eu talvez digitando 120 pra mais num êxtase digno de estudo na academia. Não queria só contar da prisão, era pouco demais pro tempo que deixei quarando no sol do rancor e da impunidade aqueles fatos hoje ainda carne fresca na memória. E a cada avanço parecia que eu estava endereçando a carta ao próprio André, exaltando sua desfortuna nas mãos de quem ele jamais fez qualquer mal, e de como isso se parece vingança divina ou mesmo sentença de deus para os pecados que cometeu a tempos idos, ou de seu próprio merecimento... Ana me chamou pra deitar mas eu ainda estava falando da confissão de Custódia e dos olhos baixos de meu irmão frente aos parentes do falecido que babujavam ódio e disparavam olhos fervilhantes para o rebento mais honroso de minha mãe. Pedi pra Ana ir sem mim, que era uma urgência vinda de São Paulo e que amanhã logo cedo tinha de estar resolvida. Ela contrariada foi, não sem me inclinar um beijo na nuca, do qual quase como um reflexo eu desviei para não me atrapalhar na tarefa. Ouvi seu rugido ao fundo e com uma espiadela vi que vestia uma seda que lhe dei de presente num dos nossos aniversários de casamento, talvez mero capricho para me tirar daquele transe nitidamente doentio. Não fez efeito. Fui até o fim, contando da minha visita ao agora mórbido e derrotado André, com a barba por fazer, as costelas gritantes e os braços de graveto... Contei do cheiro da cela, do quão pernicioso era sobreviver por cinco minutos dentro daqueles saguões extensos, largos e ensurdecedores...
Podia dormir tranquilo, enfim. Passara um pouco a minha inquietação e aquela coceira no calcanhar que vem com a ansiedade. Já podia prever mais uma penca de cabelos brancos quando acordasse, mas foda-se pra essas vaidades. Selei o envelope com uma dobradura que aprendi quando jovem e pus as três folhas pautadas delicadamente dobradas no meu origami homicida pra mamãe e passei a chave na porta. Entrei no quarto com um copo d'água à mão, sedento, a boca seca... Não tinha me movido para comer ou beber desde que havia sentado na minha confortável cadeira da saleta que eu chamava de escritório. Vi o ombro descoberto de Ana mas não me veio nenhuma vontade de foder com ela, nem de acordá-la para um beijo de boa noite ou o carinho habituais. Queria o mínimo de distração pra que o dia amanhecesse rápido e eu terminasse o que comecei. Preguei as pálpebras com certa autoridade e comecei com um cochilo calorento até aprofundar num sonho confuso: era meu sucesso. Agora tinha de esperar pelo canto do galo, passar um café, pitar um cigarro e rumar até a casa do Eugênio, o carteiro responsável por encaminhar as correspondências do entorno de Santana. Ia passar logo...
A imagem foi gentilmente dedicada ao texto pelo artista Leonardo Vieira, que publica suas obras no seu blog: http://porleonardo.blogspot.com.br/
Não há satisfação mais imediata e inquestionavelmente eterna do que a dele.
ResponderExcluirIndescritível, fascinante ! Queremos mais =)
Uau! Depois de tanto tempo pesando sobre ele, finalmente ele pôde flutuar.
ResponderExcluirAdorei!
O conteúdo lembra um pouco de Cem Anos de Solidão (não a história, o jeito). Mas ainda preciso lembrar o dono do jeitinho estilístico de quem você é irmão :~~
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