Dor imensa era de Ana e seus quinhentos
pimpolhos. Grudados como coalas em seu vestido bordado de flores e abacaxis,
uns choravam alto no bonde, urrando de fome e exibindo os narizes enlameados;
outros, nem desmamados, rolavam o chão imundo e aborreciam o sono dos poucos
passageiros de Fundo Céu que insistiam em usar a linha Viana para voltar do
centro. Ana teimava no bondinho - já às vias de ser desativado e transformado
em desimportantes museus. Era mais barato. Assim, poderia aplicar a diferença
no leite de vaca com gosto de hipoclorito que ainda reservavam aos fodidos das
redondezas nas vendinhas mal cheirosas do bairro do lado. O seu do peito, com
sustância invejável quando jovem, já sinalizava escassez quando fora alimentar
Giselda, a caçula, e agora temia perder as crianças para a bruaca da
assistência social depois da denúncia dos vizinhos bêbados de tanto moralismo e
boa conduta. A velha, com rugas marcantes e um humor ácido que amedrontava os
pequenos, entregou, só no último mês, três cartas que passavam deslidas e
desimportantes pelos olhos da mãe, que não dava parte para aquele teatro todo e
tampouco era letrada para decodificar aquelas ordens, desordens e despejos.
Claro que não era letrada, pois que trabalhava logo cedo juntando para seu
almoço um pouco do lixo e fazendo serviços meio bobos pelos quais os vizinhos
pagavam mais por pena que por necessidade. Ana sempre foi bem vista pelos
patrões e um bocado alergênica às patroas. Ainda que quisesse acreditar que era
bem reconhecida por rastelar bem os quintais a perder de vista e fazer os
jardins um brinco nas mansões belíssimas, no fundo ela tinha clara noção que a
fidelidade e seu pão vinham, é claro, do bom e velho sexo que aprendera com
estradeiros em sua peregrinação até a cidade. Ela saiu com o irmão, já
falecido, com seus oito anos, e para o interior nunca mais voltou. Seus pais
plantavam na terra seca de deus, mas os rendimentos nem mantinham a cabra que
ainda punha leite nas seis bocas da casa. Seu corpo dizia mais dessa história
que sua memória pode contar, mas Ana nunca teve que engolir seco e se sujeitar
a autopiedade e um choramingo de humilhação e infortúnio. Lá no seu sertãozinho
o pai já profetizava a maldade que o mundo lhe imporia e mais uma centena de
refúgios e bons pensamentos pra afastar a tristeza e a falta de força - só não
lhe contou tudo, pois se despedira cedo: chaguismo do coração.
Como se não bastasse as inúmeras
intempéries que arrastava em suas quarenta e oito primaveras, Sandro, o único
que não tinha ido com ela ao centro vender muambas que encontrou revirando os
rejeitos, - diziam os conhecidos malandros da cidade - estava mancomunado com
os garotos da quadrilha e trafegava com uma pistola 45 desembocada na calça que
comprara com os vencimentos da erva. Ana já o tomara antes pelo braço e fez
o que pôde para tirar da cabeça da criança a fissura pelo dinheiro; mas os
tempos difíceis no país compeliam até o mais honesto e reto entre os homens a
torrar os putos com qualquer merda analgésica que trouxesse primeiro esperança,
umas talagadas de rum e pusesse pão fresco na mesa empoeirada dos barracos -
era coisa rentável. O pai de Sandro fugiu quando soube de sua vinda ao mundo,
mas não era muito diferente da vida que leva agora seu herdeiro, e ainda
ajudava com uns trocados que seguravam volta e meia o vazio do lixo e os tempos
de frio. Traficava pesado com uns gringos que vinham pelo turismo até que sua
cabeça rolou numa armadilha tão bem montada que rendeu aos policiais envolvidos
na operação até medalha de honra ao mérito - e, mérito por mérito, cada um com
sua fatia do bolo, ninguém soube de Ana, nem de seus filhotes a exibir as amídalas
inchadas, chorosos, famintos e sem pai - nem filho, nem espírito santo. Era um
caminho sumarizado esse que o moleque tomaria: o pavor de toda mãe pobre,
solteira ou não, era o fato de só o encontro com o fim é que era capaz de
libertá-los do que apelidavam de "esquema". E Sandro, nos seus quinze
insignificantes anos, desenhara um bom plano, porém fora levado por ele e pela
correnteza dos corpos d'água fronteiriços com três ensangüentados rombos na
cachola, uma fagulha no peito e um bobo e nervoso sorriso de um lado só: traído
por seus iguais a mando de um chefão talvez ameaçado pelo jeito que tinha o
moleque para a 'coisa'. Foi achado tempos depois numa cidade vizinha, já
transformado em comida de peixe e átomos; e a mesma sapa velha que vinha volta
e meia tomar-lhe os pimpolhos veio também trazer a má notícia.
Se fosse uma tentativa abortada de ser
motivo de orgulho para sua quase-família, Ana interpretou como uma preocupação
a menos e preferiu não rolar uma lágrima sequer para aquele mulatozinho metido
à besta que quase abandonou perto da usina metalúrgica. Sandro seria seu sexto
"aborto" e não doía mais essa questão como foi nas primeiras (tanto
dor de sangue quanto do arrependimento), mas a imprevisível e humana piedade
deixou uma marca, um recado, e ele viveu. Quando a assistente chegou à sua
porta e disparou a notícia, Ana teve de fingir uma dor lancinante de uma bala
no peito para que seu perfil com a gorda enxerida e imprestável não fosse ainda
mais por água abaixo. Ela não queria se comprometer mais com aquele processo
que só sabia alimentar frustradas mães que não conseguiam dar um filho sequer a
seus maridos e tinham de subornar centros de adoção para roubar de umas e
condecorar outras com o pretexto de estarem "salvando vidas". E os
maridos, loucos e desnorteados com o tabu mais inquebrantável e vergonhoso da
humanidade, saíam à deriva para germiná-los nas barrigas de pobres e fedidas
moças que cuidavam dos jardins por pratos de comida e umas moedas. Fora assim
com três dos sete animaizinhos esfomeados dos quais cuidava hoje - frutos de
uma condição humilhante, mas, afinal, de subsistência, um ato de amor aos
antecessores, sucessores e a si mesma. Ana achou que a filha da puta também
quisesse "Sandrodefunto" para adoção. Ora bolas, se o jogo era assim
tão agressivo, não seria surpresa que uma falsa-mãe o adotasse apenas para
chorar no leito, comprando qualquer memória para saber como é. Mas o que ela
queria era só os papéis do pirralho, que, para o estado, jamais existira, seja
nessas burocracias de cartório, PSIU ou polícia; e foi enterrado com a
sepultura de "Menino - 12/03/88 e uma cruz raspada numa pedra fosca e
menor que um livro de bolso". Também, mesmo sem saber quando nasceu,
alguém iria mesmo visitá-lo e levar aquelas fétidas flores carregadas de culpa,
pesar e impotência ? Ana nem mesmo foi até lá... Soubera de um galpão
abandonado que com toda a sucata que reservava em seus vazios corredores iria
alimentar seus parasitas durante toda a semana. Esqueceu-se de Sandro. Passou.
A história de Sandro terminaria ou
começaria numa noite seca e congelante de uma quinta-feira mal chovida. Ana
decidira ir a um lado afastado da cidade e acabar com sua sina de parideira e
deixar Sandro para apodrecer junto dos rejeitos da mal cheirosa firma de abate;
o vento roçava seu ouvido com um gemido alto que só próximo ao mar conseguia-se
ouvir; a moça viu e entendeu logo que aquela semente que dormia numa calma
questionável para uma criança de poucos dias se misturaria às moelas, olhos e
outros caquinhos duros de aproveitar na mesa e fim de papo. Mas, apesar da
pouca educação formal, Ana sabia em que se transformavam as peças ossudas e
molengas mal vistas nas casas de família e recordou do fato de que embutidos
sempre estavam na mesa dos miseráveis pelo preço desprezível que tinham. E a
ideia de Sandro virar jantar revirou seu estômago e trouxe uma náusea
lancinante que a tombou sobre uma pilha de lixo e lá trouxe um pranto
artificial e instintivo que lhe regou as bochechas magras e negativas pela fome.
No entanto, aquela serenidade tão incomum do menino em vista dos que o
precederam trouxe certo alívio na tola e eufórica mãe. De certa maneira, ela se
confortou com a ideia de que o moleque havia congelado no frio cortante e que
suas mãos não se sujariam mais - embora estas também estivessem dormentes pela
falta de luvas e agasalho. Sandro seria mais uma vítima do tempo ruim, das
forças de cima; e, ademais, qual sua importância para o formigueiro que
passaria ali a trabalho e lazer ? Sandro combinava tão bem com aqueles sacos
plásticos inchados de rejeitos que iria compor um belo cenário em sua manta
escura harmonizada com a podridão que a cidade reunia naquele cantinho sem
porquê. Camuflado até o dia seguinte, longe das fotografias e das conversas de bar,
seria levado pelos fortes punhos dos homens do caminhão de lixo, que passariam
recolhendo o que a cidade jamais conseguirá sustentar ou conviver.
E, bem verdade, Sandro era exatamente
isso: um fardo pesado e desnecessário para qualquer cidadão carregar. Oh ! Bela
metáfora me ocorre: "Que cortem os lastros toscos desse balão e o deixem
voar." Mas também o eram sua mãe, seus irmãos e outros que ele nem
chegaria a conhecer. Sem testemunhas e escuro demais para intervenções divinas,
ela estava na situação perfeita para ter um pouco mais de chance de sobreviver
sem uma boca a mais para alimentar, porém seu coração amoleceu num gemido fino
e baixinho do seu fruto ao pé do ouvido, e qualquer hesitação nessas horas (ela
sabia por anteriores experiências) era suficiente para reprocessar as ideias e
voltar pra casa com cabeça baixa, filho no colo e o bucho retorcido. Engraçado
que, ao passo em que Ana descia as avenidas e os quarteirões às pressas, com
medo do que lhe aguardava e do troco de deus, ela viu na penumbra Antônia, Kátia
e Maria se dirigindo ao píer com embrulhos enrolados entre os braços empapados
e cara de pavor, bufando aquele vapor sinistro do nervosismo que Ana sabia que
também cuspira não uma vez, mas porque queria comer. De fato, era uma loucura voltar,
e hoje, já lúcida, nada tira da cabeça de Ana que os passos que se seguiram na
vida de Sandro até sua brincadeira de ser gente e tocar em dinheiro alto eram
caprichos que, ainda rebento, ele guardou nas vistas e cuidou de tratar quando
de mais idade. Ele teimou feito criança - mas para sua felicidade jamais soube
que fora um crasso erro.
Sandro estava, apesar de tudo, natimorto.
Só brincou de viver.
Confesso que encontro dificuldade em comentar esse texto. A tua ausência por aqui e o meu sentimento de saudades das tuas criações me deveria encher o peito, ou as pontas dos dedos, feito uma máquina de atirar de palavras para registrar aqui um comentário enorme revelando a minha (singela) opinião e segura admiração. Todavia, o meu arregalar de olhos ao me perguntar a origem da tua criatividade e entusiasmo para inventar essas histórias me engasga a garganta e me rouba as frases certas. Não sei o que mais o seu hiato-criativo lhe aprouve, mas decerto me presenteias em tuas linhas com uma madureza que não encontro em nenhum Graciliano.
ResponderExcluirQuando no meio de uma conversa você disse ter tido uma ideia pra um conto e que o escreveria naquela mesma noite eu admito que não esperava um texto como este, mesmo tendo certeza de que me surpreenderia com quaisquer que fossem as palavras e temas. Como foi bom deliciar-me com mais um de seus contos. Você deixa muita gente te esperando aqui, sweetheart !
ResponderExcluirUma narrativa forte e instigante... quando vi que estava para terminar torci pra que fosse só impressão. Uma pena ter que lidar com o final dos seus 'filhotes'. Não devo deixar de mencionar o quão bem você mescla o pesado e o leve, a simplicidade com a complexidade, o santo com o perverso. E isso fica bastante claro neste conto.
Mal sei me expressar diante de trabalhos tão impecáveis. Parabéns como sempre, ma lil prince. <3
Acho incrível a maturidade da sua escrita, que, ainda que tenha sido aprimorada ao longo dos anos, sempre foi um traço marcante em ti. Seus contos sao unicos, apesar de eu facilmente conseguir imaginá-los reunidos em um livro que faça parte da minha coleçao, haha. Confesso que determinados verbetes mais cientificos - hipoclorito, atomos - à primeira vista me pareceram estranhos, devido à intensidade do conto e à forma com a qual ele é escrito. Porem, acabei gostando da escolha: é como se víssemos, por uma fresta, o próprio autor abraçando o conto. :3
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