Essa história deveria ser escrita a quatro mãos, mas eu, teimoso que sou, terminei por antecipar sem saber se você iria um dia pousar suas penas para me ajudar a narrar essas belezas. Assim como nós, ela é um produto de dois, e será injusto se jamais soubermos o que teus olhos vêem.
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02 de outubro, 06:26
Mal o dia amanhecia e com os primeiros raios de sol suas íris jaboticaba já me espreitavam na beira da cama. Eram olhos curiosos e ansiosos como jamais vira antes, ferozes até. Não importava o dia da semana, circunstância ou data comemorativa para que ela procurasse meu vagaroso despertar antes que o alarme de cabeceira me chamasse para a realidade. Esticando-se na pontinha dos pés diminutos, Flora me achava imerso em algum sonho desimportante, entrecortando a respiração para não me alertar de súbito. Tão logo seu ar se esgotava nos pequeninos pulmões, ela juntava mais numa mistura de gargalhada e desespero brincalhão, seguidos do gesto mais puro de esconder o rosto nas mãos, como se desaparecesse da cena.
Com os mesmos frágeis pezinhos ela se esforçava para não fazer crepitarem as tábuas que revestiam o chão frio da casa, andando como os gatos dos desenhos animados ou, como ela gostava de dizer, Shere Khan, o tigre malvado do Mogli... tensa, ansiosa, calculista. Embora ela não soubesse, com o simples ranger da porta eu já espiava a sua invasão, achando graça das suas tranças que escorriam delicadas pelos ombros, a balançar de um lado para outro. Eu sempre me achava intrigado sobre como aqueles cabelos tão grandes se equilibravam naquele tamanho mínimo de gente – e me lembrava da garota de Gabo em “Do Amor e Outros Demônios” cujos cabelos não paravam de crescer. Eram negros como a parte mais escura da noite e o esmero das voltas que eles davam se traduziam em experiências engraçadas e metafísicas que só os pais céticos sentem com um quê de inação – eu incluso entre estes descrentes. Ver aquele ser me fazia perplexo, e às vezes sorrindo bobo para tamanha alegria e calma, duvidando em parte das possibilidades de essa pessoa ocupar esse lugar no tempo e no espaço junto a mim, sendo parte do que sou, do que eu sinto e do que eu penso, a depositar toda a sua confiança e admiração num par que se fez um para que ela existisse e que se colocava ali a amá-la e acalmá-la. Essa reflexão jamais a alcançaria, talvez somente quando tivesse os seus, talvez numa conversa mais difícil no futuro, ou quando se percebesse família.
Esses pensamentos rapidamente se dissolviam no meu estado sonolento, substituídos por um rosnado e um salto para assustá-la, ao qual ela retribuía correndo animada pela casa dizendo que o papai zumbi bonzinho tinha acordado para levá-la à padaria.
Quando “o papai zumbi bonzinho” não acordava – e não era raro -, chamava-me aos sussurros, fingindo ecos inexistentes no quarto, repetindo as palavras papai, zumbi e bonzinho em volume decrescente, que eram logo absorvidas pelos meus sonhos mais superficiais. Sua mãe não tinha a mesma sorte de ver aquela cena, dado que o sono pesado garantia 30 minutos preciosos de preguiça dominical - tempo suficiente para acontecerem as voltinhas do balé, as acrobacias em uma perna só e o progresso com o ensaio da dança de formatura. Eu não hesitava em abraçar Carola, mesmo que repousando ao meu lado em seu impecável robe, pois ela me mataria se a fizesse perder a pequena girando e cantando a convidá-la para a doce aventura pelos Reinos da Rua de Baixo. Apesar disso, ela rejeitou dessa vez o convite com uma manha serena, um beijo doce e um carinho nos meus pesados cabelos: “sua vez, você sabe” – ela dizia entredentes e de olhos fechados. Corrigia - perfeccionista que era - as tranças de Flora para não “impressionar” e também a minha franja. O recado estava dado e a missão de levar a princesa até o reino dos doces era só minha.
Então, em uma roupa qualquer, calcei os chinelos ao pé da cama (frios), talvez ainda meio tonto por levantar rápido demais. Isso ajudava na interpretação do papai zumbi bonzinho que acordava faminto por pães e chocolates, e também era o ritual favorito que Flora encontrava pela manhã.
No trajeto, acoalada em meus dedos ela contava e inventava histórias; contos que me faziam crer na possibilidade de haver dons hereditários de alguma forma. Os enredos eram tão democráticos que até a formiga que carregava um pequeno graveto até seu ninho ganhava contornos complexos: uma família, um terapeuta e uma aventura até o terrível império dos cupins para resgatar a rainha. As maritacas, que se amontoavam nas palmeiras da estreita rua, cantavam para ela que hoje o padeiro havia feito um bolinho de chuva especial. Do outro lado, o solitário gatinho esperava na porta da casa de rações pelo seu fiel dono, que sairia em poucos minutos para levá-lo ao parque de diversões dos felinos - um lugar secreto que somente os sacerdotes gatínicos conheciam. As histórias eram as mais diversas e muitas vezes eu tinha vontade de registrá-las em um caderno para contar-lhe depois de alguns anos. Ao lado de Flora, fiel e atento, o estimado amigo canino a ouvia sem se distrair, agitando a cauda a cada interpelação sem perder uma palavra sequer de seu monólogo. O pelo denso e caramelo do animal brilhava com o tímido sol primaveril enquanto ela o acariciava para não perdê-lo de vista. Os olhos da pequena sorriam junto de seus dentinhos que se intercalavam com banguelas, denunciando seu conforto ao receber a brisa e o cheiro de pãozinho quente.
Quando pisamos na soleira da padaria, seus olhos gigantes fotografaram cada vitrine, cada estufa e cada novo adorno do que ela chamava de santuário do apetite – eu adorava esse nome. Ainda grudada à minha mão direita, a miúda me seguia pelos corredores a sacudir as tranças e com um grau de animação sobrehumano. Os olhinhos brilhavam ao fitar bolos esculturais, tortas dos mais variados sabores até acertarem em cheio o balcão de guloseimas. Havia algo de místico sobre esse ritual, encantador até para quem passava por nós a ver o entusiasmo de Flora a contar cores, sabores e, hipnotizada, exibir suas janelinhas. Quando eu perguntava o que levar para a mamãe, ela se punha a pensar com uma dedicação invejável. Os dedos nervosos coçavam o topo da cabeça, mostrando o medo de errar a escolha, a indecisão e incerteza nas suas formas mais viscerais. Talvez ela pensasse que isso iria lhe custar os momentos de preguiça e cócegas que teria sob os pesados cobertores de Carola – e como eram bons estes cobertores. Estava frio naquele dia e o noticiário prometia chuviscos logo mais. Perfeito para café da manhã na cama, giz de cera e cabaninha a tarde toda comigo e Carola – que provavelmente passava um café distraída e se alongava para divertir a pequena. “O chocolate de gatinho!” – ela fez sua escolha – “A mamãe gosta dele, mas daquele mais forte... Eu acho, hihi.”. Ela havia acertado em cheio, e o rapaz do balcão já atirava dois deles na sua mão que mal conseguia coordenar a guia do cãozinho e os dois tabletes que a alcançavam. Eu então ficava com a parte mais trabalhosa de escolher os pães e um bolinho mais discreto para equilibrar os trocados. Missão cumprida.
Com medo de derreter as guloseimas, Flora passou-os a mim para que ficassem na sacola. Sua ansiedade estava mais em como ela imaginava o rosto de sua mãe a medir a surpresa por esse pequeno agrado do que qualquer outra coisa. Ela amava, assim como eu, presentear, ainda que não soubesse que era, ela mesma, um presente todo dia para nós, renovando-se e crescendo. Entrando de novo em casa, ela encontrou a mãe como eu imaginava que estivesse: um potinho de sorvete nas mãos e a expressão engraçada de ser pega fazendo algo errado. “Já voltaram?” – Carola sempre se surpreendia com nossas passadas largas por causa do chão de lava – “Tem café, seus bobos. Me flagraram assaltando a geladeira”. Essa frase era uma melodia aos ouvidos. Atravessei a sala antes de Flora, para estalar um beijo em Carola e arrumar a cesta de pães. Tímida, a pequena se aproximou faceira e fez a indagação: “Adivinha, adivinha, o que eu tenho na minha mãozinha?”. Carola se abaixou com as mãos correndo-lhe as tranças, já um pouco desfeitas, até que com as costas das mãos acariciou as bochechas de Flora, terminando no queixo que era um clone perfeito do seu. Ver as duas frente a frente me agoniava por tamanha semelhança. De mim, Flora guardava o nariz e a boca de coração (e talvez o amor pelos bichos e as flores), o restante era indubitavelmente a potência de Carola traduzida na sua mais bruta forma. Uma oportunidade de imaginá-la criança, coisa que poucas fotografias me mostravam. “Deixa ver... Um passarinho? Uma cartinha?” – Carola via, segurando o riso, a embalagem de chocolate que mal cabia na palma da mão daquele bichinho. “Não!” – Flora gargalhava de ansiedade - “É chocolate de gatinho pra você, ué.” Entregando para a mãe, devagarzinho ela voltava a esconder o rosto nas mãos, ao que Carola reagia com um beijo e um cheiro. Dois passinhos para trás na direção da mesa e Flora sentou-se esperando que nos juntássemos a ela. Olhei meio desconsertado para Carola, que mais uma vez segurava o riso, decodificando aquela situação junto comigo. Comportada e quietinha, Flora, quase como uma súplica para levarmos tudo pra cima, olhava para nós esperando a decisão. Eu sabia o que a miudeza esperava de nós. “Vamos lá para cima, Carola, está frio aqui!” – eu dizia, teatralmente esfregando as mãos, batendo os queixos e com o riso já solto. “Claaaaro, está muito frio, muito mesmo. Não tem lugar melhor que coberta e TV.” – Carola prosseguiu com a cômica dramaturgia.
Os olhos da pequena brilharam como se os pares de jaboticaba tivessem dentro de si uma luz própria, branca, intensa, solar... O sorriso alargou-se quase em câmera lenta; totalmente diferente da corrida até o quarto, mais rápido que o som da proposta de Carola. Antes que a alcançássemos, ouvimos vindo do quarto um grito-risada, como eu gostava de definir. Um grito que não se resolvia sobre ser risada ou apenas uma expressão de surpresa. Ela sabia fazer isso bem.
Quando eu espiei pela porta, antes de entrar no quarto, vi que Carola havia montado não uma cabaninha, mas uma verdadeira fortaleza. Eu jamais alcançaria tamanha perfeição arquitetônica usando apenas os móveis e as roupas de cama. Estava lindo, e não demoramos muito até cobrirmos Flora de beijos e cócegas naquele castelinho. Deitamos com ela sobre as almofadas gigantes e eu contei mais uma de minhas histórias inventadas; dessa vez sobre um valioso quadro renascentista que guardava um segredo milenar de um tesouro perdido no Caribe. Eu podia respirar seu amor ali, atmosférico, denso e puro. Lacrimejei, discretamente, lágrimas límpidas que foram secas rapidamente pelas mangas de Carola, que me viu tentar disfarçar e franziu o narizinho em reprovação logo depois de mastigar um pedaço do chocolate que ganhara momentos antes. Apostaria minha vida que ela também respirava o mesmo ar que eu naquele instante e que foi mais rápida em enxugar as suas ‘bandeiras’.
Não demorou muito até que Flora repousasse, imersa na minha história. Aquela fortaleza era nossa casa dentro de uma casa dentro de outra casa ainda menor (uma casca de noz), e não havia lugar mais seguro que aquele instante. Protegidas dos ruídos do mundo, das tristezas-belezas apagadas que adoecem a modernidade. Eu e Carola tentávamos desenrolar os braços da pequena, evitando qualquer barulho ou movimento brusco que a acordasse. Moleque como eu era, foi difícil não rir da carinha serena e a babinha que se formava no canto da boca daquele serzinho. As almofadas que sustentavam aquele corpo eram maiores que Flora, que parecia agora flutuar em nuvens de algodão.
Já fora da fortaleza de lençóis e móveis, estiquei-me na cama chamando Carola para um último cochilo até retomarmos o pique. Jogando-se na cama com o cuidado de um lince, ela deitou a cabeça no meu ombro a suspirar. Parecia calma e entregue ao presente, dedicada a sinestesicamente viver aquele dia, sem angústias e sem estranhos dilemas. Eu entendia bem dessas dualidades.
Imitando Flora com meus dedos no caminho da padaria, deixei que Carola porém acoalasse nos meus braços, pernas e corpo. Sinal de entrega e tranquilidade, votos de paz. Vibrei por dentro, respirando-a e sentindo a eletricidade correr sua pele. Um choque de galáxias inteiras, uma experiência cósmica dos nossos universos, como aquele pequeno planetinha que repousava ali em nossa órbita sem parar. Flora. Quasar de vida. Pulsar de sonho. Amor.
-A
Lágrimas em demasia, cheias de sentimentos; coração borbulhante... coisa comum a mim ao te ler. Publicado num dia um tanto quanto significativo também. Um belo presente pra minha alma. Que sensação boa, que beleza ter a dádiva de conhecer suas palavras há quase uma década. ♥️
ResponderExcluirFoi a segunda vez em que derramei lágrimas sobre um texto. A primeira vez tinha sido após um certo capítulo de A Corda Bamba da Lygia Bojunga. Agradeço muito pelo lirismo que me fez transbordar com o afeto sensível e profundo - muitas vezes inconsciente e ilusório - que merece habitar sempre cada uma de nós. Rogério
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