Éramos eu, ela e deus naquele monstro
de 36 cômodos entre quartos, salas de estar e alcovas sem muita utilidade. Se
não fosse para sustentar as obscenidades de meus 23 mal selecionados empregados
(divididos entre motoristas, limpadeiras e técnicos em ócio), eu destramaria
aquelas saletas todas e faria de todas elas o santuário para Carola, meu sol.
Um só quarto, enfeitado com quadros oitocentistas e fragrâncias a gosto de seu
bem estar.
Do lado de fora, vejo mil metros
quadrados de uma grama desbotada que custou-me os olhos infectarem-se por um negrume fúngico
horrendo. Fiquei sabendo após algum tempo, através de um veterinário amigo da
família, que os vira-latas do jardineiro levaram tal praga para minhas
dependências e fizeram “esmeralda” virar “carvão". Era como na mente de
Carola, quando andaram os pensamentos vindos de estranhas e desafortunadas
companhias que, mal sabia ela, desviavam-na e reproduziam suas mágoas apenas
com uma roupagem mais bonita. Se visse
os tais fungos ela ia torcer-se de gastura e dar quatro voltas em seu nariz
arrebitado tamanho o desgosto. “Simão, quantas vezes eu falei que não quero
essas pestes na minha propriedade?”, eu não sabia se o nome era esse mas
prosseguia com o cenho franzido. “Mas seu César eles são coitados demais, ora
ora." Talvez fosse mesmo Simão, ou ele não queria me corrigir pra não ser
despedido precocemente, pois eu preservava a duras penas uma falsa fama de
patrão maquiavélico para evitar as pilhagens dos empregados de má índole. Eram
pequenas taças, óleos e até grampos de tamanha insignificância que até um
mendigo recusaria sem avaliar. Talvez trocassem por cachaça ou só colocassem na
estante pra contar vantagem sobre o marido que queimava as sobrancelhas nos
fornos das metalúrgicas, vai saber.
Assim eu perdia as estribeiras;
de toda forma iria borrifar um dos meus remedinhos mortais o quanto antes, pois
não queria fazer feio na cerimônia com aquela casa cheirando a mofo.
Na parte leste do meu castelo
estou eu, regando com aplicação meus dentes-de-leão recém-transplantados da
sacada de uma amiga. Não estavam lá essa maravilha, mas progrediam com os bons
produtos e húmus que os nutria. Eram de um amarelo vibrante que me doía o
coração pensar que em poucas semanas seriam devorados pelas tantas lagartinhas
que ali se aninhariam e tão logo empupariam para dar luz ao meu aguardado
presente. Pouco a pouco cada asinha delicada iria cobrir o vestido de Carola em
sua cinturinha de moça, escondendo as discretas anáguas e os sapatos que mandei
trazerem da magasin mais elegante de Paris.
Já me via titubear um pouco, e a
cada passo de Carola em minha direção meu estômago se encolheria de nervoso e
armaria uma explosão de choro misturado em riso. Foram difíceis nossos tempos,
atribulados e complexos, e por isso uma emoção de alívio e admiração crescia
dia após dia.
***
Lembro-me como se fosse ontem. Os
pais de Carola deixaram-na bem cedo. Não por doença, como deves pensar, ou
alguma fatalidade dessas difíceis de prever. Deixaram-na, por esquecimento e
descuido, à própria sorte. Eu, inocentemente, não sabia muito bem como aquilo
iria estilhaçar aos miúdos uma vidraça tão linda. De meu lado, restava-me
dedicar a ela minhas melhores histórias e sonhos tranquilos. Fazia-lhe a cama
para aquecer seus pés e a enrolava em meus longos braços para que se sentisse,
enfim, em casa. Chamava-lhe passarinho quando, sentada em meu colo, ela se
aninhava para um cochilo; e, discretamente, tentava como um menestrel lhe
distrair de dores e dilemas. Eram canções difíceis de compreender, confesso,
mas nelas havia versos que acredito serem impossíveis de recitar sem que agora
uma lágrima role a face desavisada. Lembro-me da minha indignação e da minha
luta com seus pais na varanda de minha casa, a tentar alertá-los dos erros e
dos perigos desse gesto – talvez alertando a mim mesmo do mal que faziam a ela.
Carola era já nesse tempo minha preciosidade, minha cor, e mesmo na minha
meninice eu confrontei com alguma maturidade (escassa!) o que eu mal podia
compreender. Os dois me olharam torto, julgavam-me petulante, talvez esperando
que eu fosse um resignado e tolo homem de sorrisos. Mas não era.
As engrenagens do tempo rolaram
pouco a pouco apesar das rusgas. E, de tão empenhada, aquela mocinha virtuosa
não se deixou derrubar. Juntou os caquinhos e foi assim correndo atrás de
pequenos sonhos. Sabia equilibrar pratos e rodar no eixo. Os dedos dos pés já
calejados e as ataduras firmes mantinham-na ali, de pé. Com algumas economias
conseguiu finalmente se dedicar às letras. Desejava ser professora, ensinar
como ninguém podia fazê-lo. De tão prodigiosa, aos seus pares causava certa
inveja, como se ofuscasse sem querer os privilégios de tantos tolos a competir
atenção.
Os ventos sopravam distintos depois
de seu início com as didáticas superiores. Tão logo ia progredindo com os
estudos, conseguiu uma chance de mostrar seu valor em um ginásio da capital.
Era um trabalho simples, como lhe prometeram no começo, mas que logo apareceram
alguns nós para repetir os roteiros desleais que eu também havia vivenciado em
minhas empreitadas por dinheiro. Eram novos ataques à vidraça, mesmo que
discretos. Já nesse período havia deixado para trás algumas belezas,
recrudescendo na dança e na caridade, talvez por não conseguir se olhar e se
achar nessa grande e temerosa bagunça de sentimentos.
Ainda que fosse difícil ela
resistia. Afinal, derrotas eram coisas muito raras, mesmo que ela insistisse em
dizer que pouco caminhara até ali. Curioso isso, pois eu via uma jornada
diferente, árdua sim, porém repleta de sucessos e de confrontações tão
complexas quanto uma partida profissional de xadrez. Ela era mais míope que eu
nesse tempo, e talvez por isso tenha se perdido um pouco nessa leitura. Logo
ela, tão boa com os livros!
A miopia levou-a a caminhos um
pouco espinhosos e que sacrificaram minhas canções e meu pouco espaço. Ainda
que de ballet eu entendesse muito pouco, tentava me equilibrar na habilidade
que tinha de esperar por dias melhores, sabendo respeitar suas estranhas, porém
legítimas escolhas e danças. No fundo, me entristeci, posto que não podia dar
as respostas prontas ou escolher por ela, por mais angustiante que fosse
assistir a tudo por uma crua e dolorosa lente. E, nessa dança, a música tocava
alta, mas sem compasso. Eu fazia o possível para acompanhar, mas não era fácil
me fazer diapasão ao mesmo tempo em que os dias engoliam as virtudes da minha
pequena. Eu rodava sem parar, tentando me manter no enquadramento. Como as
marés, indo e vindo.
Foi quando meu pouco recurso me
levou a ter ideias mais criativas. Lidar com a escassez ainda era uma vantagem
nos meus dias. Aliás, percebo que a abundância e a opulência, as cartas
marcadas, as bajulações e refeições artificiais só provam o quão vazio pode ser
um desejo e tão frágil uma verdade. História sem poesia, como que uma fórmula
copiada em outros tantos roteiros e amores, é mera distração. São como receitas
obtidas em um jornal de grande circulação, um manual sintético e frio que ela
talvez tenha se perdido por decerto não tê-los lido com os belos óculos que
vira e mexe perdia.
Meu primeiro presente fora um
livro, que dizia a ela sobre amor. Que cruel distinção.
À parte essa constatação,
lembro-me como travei uma batalha incessante para tirá-la daquele caos. Eu
corria contra o tempo atrás de um sobrado e uma carroça que nos levasse aos
pequenos paraísos que circundavam a capital. Era uma das poucas ambições que eu
tinha além de tentar conhecer o mundo e levar meu pouco mas valioso saber para
além das searas da nobreza. Eu sonhava desde o primeiro dia em vê-la da janela
da sala preparar um café preto sem açúcar e reclamar da falta do requeijão. Num
breve sorriso eu sairia porta afora no intento de achar a mercearia aberta,
para daí retornar e pegá-la em um profundo cochilo matinal no velho sofá.
Talvez em um golpe de sorte e de
certa insistência, consegui um trabalho numa venda próxima da casa de minha
mãe. Pagavam um salário honesto que logo cuidei de converter num cantinho
adorável com uma linda vista e um quintal. Escolhi quase instantaneamente, ao
julgar perfeito para Carola ali descansar suas tantas cicatrizes e pôr as
ideias em ordem. Se quisesse dançar, pintar, correr, morar ou amar, havia
espaço. Levei-a uma primeira vez, para que ela sentisse certa inspiração,
segurança, que confiasse em cada centímetro quadrado daquele humilde porém vivo
sossego. A casa tinha um coração que batia rápida e intensamente toda vez que
ela pisava aquele pezinho pálido de sabonete nos tacos quentes que mandei
colocarem. De começo ela olhou com certa desconfiança, tateou com cautela feito
um cervo na campina. Mas depois se acostumou ao cantinho, as antigas e novas
histórias chegando aos ouvidos, tornando-se uma música calma, baixa e familiar.
Por vezes, às fantasias, via-a se esticando no colchão, liberando as tensões de
um dia cansativo de trabalho, mas logo me jogando um sorriso e correndo até o
banheiro para um xixi, um arrepio e um banho quente. Digo arrepio, pois era
como sempre acontecia, e eu adorava olhá-la, sem graça, se envergonhando por
isso. Também a sentia tomando minhas roupas e vestindo-as como pijamas. Os
elásticos acompanhando suas lindas curvas e, de súbito, peça a peça, nenhuma se
emprestaria a mim novamente. Até mesmo as roupas a haviam escolhido, tamanho o
propósito daquele fragmento de tempo. E ela ainda me perguntaria o porquê de
minhas pupilas estarem tão grandes.
Carola teve roubado de si certo
brilho. E por isso se meteu em redemoinhos de pensamentos e sabotagens mil. Era
um resultado de uma vidraça que eu não conseguia proteger por inteiro, mas que
agora poderia tirar da vista de tantos vizinhos e cruéis almas para tratar com
paciência e cuidado. Ela pouco sabia dessa vontade, julgava-me louco. Mas eu
tinha nos dedos cada mínimo passo, cada mínimo gesto que arrancaria dela um
sorriso sem pesares e sem dúvidas. Não era um novo capítulo que precisávamos,
era uma música distinta e mais serena. Longe das coisas comuns e do cotidiano
vazio que tanto a consumia.
***
Agora, em nosso castelo, tento
retomar a concentração para regar as plantas e preparar o humilde presente. Decidi
fazer seu vestido porque faltava o ofício da rendeira às vésperas e porque
sabia que nenhuma saberia fazer o que eu pretendia até então. Pode parecer
cruel a ideia de borboletas compondo uma veste, mas aquela frágil vidraça
precisava de um reparo à altura. Nem mesmo ela percebia seus próprios passos e
os dava meio sem olhar. Por vezes jogando ao vento algumas luzes que a mantinham
acesa. As pequenas asinhas talvez lhe contassem uma história de metamorfose, de
cura. Estágios que passam, com o nascimento de uma nova criatura. Era claro que
ela se perdera desde o dia em que lhe faltou alguns pilares, e buscou em outros
cantos essa falta. As asas – e ela sabia disso – não eram para voar, mas para
rapidamente revisitar seus jardins, olhar para si e testemunhar sua própria força, seu valor e
sua transformação. Asas de borboleta, escamas que acumulam histórias e
dedicação, que a escondem, camuflam do mal que o mundo faz e das rotas
maquiadas de belezas que certamente ali não estão. Seriam os dias de dezembro a
trazerem-lhe a paz numa arriscada viagem para o mar, todos lhe abraçando as
dores e asas aos poucos sendo dispensadas, pois ela haveria de ter superado cada dor e
cada tristeza. Não seria em vão, restava saber quando notaria.
Distraída, ela entrou pela porta
do quarto, na direção da sacada onde eu me debruçava sobre as plantas. As
roupas ainda eram as minhas, um livro na mão cujo título falava exatamente
sobre consertar algo. Com um sorriso tímido, puxei-a pelas mãos e, à beira da
lareira, contei histórias novas e sobre como seria amanhã: uma caminhada pela
pequena mata, um esfumaçado gato a nos perseguir e um suspiro alto de calma e
amores. Mirei nela as tais lentes, um desenho lindo de um tempo em que ela
carregava menos medo e havia menos ruído. Hoje são muitas pessoas, muito barulho. Eu sabia as causas e tinha entre os
dedos as mais belas formas de um tempo feliz, agora cada vez mais iminente. Em
noites febris cheguei a amaldiçoar quem lhe fizera tanto mal, mas hoje em mim
somente a ternura me move em sua direção.
Carola olhou-me nos olhos e viu
minha alma, nua, exposta, verdadeira. E acreditou em cada palavra. Os lírios desabrochavam perto dali junto com uma esperança a cantar nossa história. Seríamos novas e lindas vidas. Vê?
Da realidade nua e crua, uma história carregada de beleza e amor incomparáveis. Um doce pedaço de ternura em uma vida que pouco se importa com as dores que causa.
ResponderExcluirSorte a de Carola pelo melhor de todos os presentes que poderia receber: um oceano com infindáveis cores, brilhos e amor, para que mergulhasse com toda a sua alma e mais sincero existir.
Que uma nova música toque (a).