terça-feira, novembro 12, 2024

Um Quarto de Mim

                Ilustração por Hermano Zenaide

“[...] rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira [...]”

—  Lavoura Arcaica (1975) por Raduan Nassar, Capítulo 9, p. 54.


Hoje chorei tua partida antes da hora. Só de me cruzar o pensamento o teu descanso, senti profundo o imenso vazio que deixaria tua passagem. Pude ouvir os ecos navegando pelos cômodos da casa, as tuas manias se despedindo dos detalhes, o jeito gentil de mexer os talheres, o impecável forro de mesa florido e a poeira acumulada sobre o móvel que sustentava a TV — raramente ligada aos quatro ventos, raramente necessária para preencher o silêncio pacífico da sala em penumbra. Nesse delírio, senti como se desaparecessem tuas vigorosas plantas, o caminhar sereno, desapressado, teu canto cada vez mais lindo em nossos encontros. Porém, no curso desta hipótese, culpei-me por perceber que talvez nunca tenha lhe contado sobre o amor e a luz que trazes ao mundo. Como ser um produto da tua existência me torna um fragmento das tuas verdades, um broto, um apêndice complexo da tua natureza — expandido no tempo, arremessado no espaço agora tão distante do teu solo, da tua companhia. E aqui, sozinho e em silêncio, imaginei também o teu medo de partir, como praguejara em segredo contra teu corpo decidindo ceder sem teu consentimento, o terror que estaria atravessado em cada movimento, desde o café da manhã até a última página lida do livro de cabeceira. Dividi contigo o infortúnio de saber que não teremos lido todos os livros que gostaríamos, dito ou escrito todas as palavras que cruzaram nosso pensamento, as pessoas e amores que deixamos para trás, nossas canções...

Sabe, admito que nunca te conheci tão bem, teu silêncio sempre foi uma porta fechada, um símbolo de quem viveu muito e sorriu pouco. Era uma felicidade cara, culpada e hereditária, uma melancolia que de alguma forma eu partilhava desde muito moço. Talvez por isso nunca ousei te confrontar sobre o passado, ou mesmo perguntar o que esperava do presente, sonhava para o futuro. Tu eras como um capítulo de uma história maior, o sustentáculo de uma árvore com ramos hoje tão longínquos, indomados, distantes das tuas lições e exemplos mais fundamentais. Hoje, senti como se tua hipotética partida levasse uma parte de mim, arrancada à força pela violência do tempo, tão rude, tão súbito. Era como se, junto de ti, eu soubesse que uma luz em mim também se apagaria, uma fonte de alegrias se secasse, uma nascente de esperança se esgotasse. Saiba, portanto, que tu és minha memória de pequeno, de inocência e de sonho. Me faz querer voltar a ser miúdo, pra caber nos teus braços, grudar nas tuas anáguas para me levar pra brincar entre as plantas, saber do canto dos pássaros, me ensinar a colher a couve, girá-la como só você era capaz, e cortar as folhas tão finas quanto fios de cabelo para então deixar cair numa vasilha tão antiga quanto teu avental desbotado. Eu sempre achei engraçado quando dizia que era fácil, mostrando com paciência o movimento das mãos calosas e paradoxalmente delicadas, como se teu ofício matriarcal te equipasse com todos esses saberes sem o menor esforço.

Tu és prova da minha meninice, me faz querer acordar-te bem cedo ao pé da cama, sussurrando para me alcançar a broa de milho na despensa. E você ia, paciente e lentamente, com os olhos baixos, me olhando correr pela casa em completa graça. Ainda que me doa lembrar disso, também me pego às gargalhadas, lembrando de nossas horas em frente à TV assistindo ao desimportante telejornal. Minha atenção incansável de vigiar teu sono e te ver dormir no sofá, tentando combater as pestanas pesadas de quem só precisava de um pouquinho de paz para cochilar e esperar o próximo dia. Coração sereno, abundante harmonia...

E se o dia seguinte fosse uma quinta-feira, eu sabia que seria a melhor das tardes. Os morangos, as tangerinas e hortaliças encheriam o ar com um frescor único que me faz lembrar da textura do teu vestido, a minha tentativa inócua de decifrar o mundo com o olhar curioso e desavisado de criança, tentando fazer sentido com as intangíveis dinâmicas do teu universo pacato e bucólico. Ainda olho para aqueles dias e tento lembrar de mim, entender você. Tento recordar de cada parte que nos constituía como par, como eram meus finos braços agarrados à tua mão, meu corpo frágil, meu cabelo denso, com o que sonhava, quem me encantava e do que falávamos, se éramos alegres, se éramos tristes... Mas ainda acho um tanto difícil perguntar-te daquele tempo, sobretudo como e por que nós, simplesmente, éramos nós... Eu bem sei que tudo isso não é menosprezo pelo sorriso, mas um obstáculo a mais para sentir, tocar e viver o que há lá fora, para além do que se passa em nossa cabeça. E, como a dualidade de uma maratona, sentir a delícia da chegada, mas a falta de genuíno sentido na atividade em si. Espero que não seja assim contigo.

Se eu pudesse, suplicaria para nunca ir, que fosses como as sequoias, os ciprestes que testemunharam tudo o que a humanidade pode recordar, as mentiras, as verdades, as guerras e as alianças. Que sustentasse tal qual Atlas toda a minha verdade e existência até que eu, com todo o meu egoísmo, também partisse com você. 

Não vá. Te seguro em meu abraço mais apertado, na nossa inversão de força e altura, hoje eu gigante, tu pequenina. Segura em minha mão e vamos à nossa ópera das sextas-feiras, à orquestra de quinta, ao café da tarde para aquecer o peito, caminhar pelo pomar. Só nunca vá, por favor.

Eu te amo.


-A

sábado, setembro 28, 2024

Série Fragmentos - V

                                                                                     Ilustração por Hermano Zenaide

5. Morte de Narciso, voo de Ícaro (ou Le temps détruit tout)


Tendo me tornado — com o passar do tempo — o antropólogo da minha própria experiência, não sinto o menor impulso de depreciar essas almas obsessivas que recolhem cacos de cerâmica, artefatos e utensílios em terras distantes e os organizam a fim de expô-los a nós, para podermos entender melhor a vida dos outros e a nossa própria […].

—  O Museu da Inocência (2008) por Orhan Pamuk, Capítulo 9, p. 43.

 

Hoje pela manhã senti uma paz imensa ao me olhar no espelho. Toquei o rosto com a ponta dos dedos, ainda dormentes pelo frio, e, diferentemente de quando o tocam, não repeli. Deixei-me, pela primeira vez em tempos, saber a textura de minha pele, a curvatura cartunesca do meu nariz e do meu zigomático saltado, que me lembravam a descrição de um personagem das telenovelas. Minhas ideias, no entanto, vagavam longe, na hipótese de que provavelmente ninguém havia me visto verdadeiramente como um conjunto complexo de ideias, concretude viva e pulsante de criatividade. De que eu existo em um plano à parte, sem pudor, sem economias, comunicando ao mundo o que sou, o que sinto, sem meias palavras, sem desvios de rotas, táticas de afeto ou fugas. Eu sou, e, portanto, não me escondo nas esquinas de confidências, não colho de árvores inférteis, infrutíferas, mas me alimento da mais pura potência do que queima e rejeita se apagar, como o sol jovem e alegre das manhãs de Janeiro.

É curioso como somente depois de anos pude contemplar essa crueza dos meus movimentos. Pude me envolver em um abraço forte, sentindo a matéria densa que me compõe, convencendo-me de que eu não era mais — como senti inúmeras vezes no passado — uma corda fina e quebrantável de vida. Pude sentir a materialidade da minha criatura sem a terrível repulsa kafkiana que outrora me fizera evitar os reflexos de espelhos e os consultórios de análise. Vi-me detrás daquele vidro pequeno e retangular como um pêndulo, um artista esperando a hora de entrar no palco, indo de lá para cá, mas com uma paciência e um peso que eu jamais havia experimentado antes. Era natural e leve existir ali, como se por um dia eu pertencesse a este universo e comungasse com ele sem as demandas e medos do mundo. Sem as vergonhas, as inseguranças ou os ódios à flor da pele. Sem as violências da palavra e da carne. Sem as múltiplas paranoias do tédio enjaulado entre paredes tão finas que se escuta o adormecer do vizinho, os amores da jovem ao lado e a fúria incontrolável dos bebês.

Em uma fração de segundos, eu entendi o que é o amor e me entendi enquanto força coesa de átomos e absoluta potência de agir, conatus. Naquela fotografia em movimento, ancorado às minhas bilhões de sinapses, vi-me um tanto nu, sem preconceitos, sem as tantas bússolas morais, axiomas e definições típicos de um cientista pragmático e cético com o rumo do mundo. Habitante de conchas calcárias das mais sólidas, eu sempre soube que viver era como uma máquina a vapor imperfeita, amarrada aos insolúveis nós da física clássica, mantendo-nos em xeque sobre qualquer sonho muito delirante ou impulso de querer ser mais, muito ou melhor. Mas eu, momentaneamente, rejeitei isso. Ali, sozinho e reflexivo, desafiei o pessimismo e quis me equilibrar por um instante na experiência de viver sem dores, sem temores e sem culpa. E sorri.

Porém, no mesmo instante em que essa ideia se formou no espaço liminar da minha distração, também o reducionismo e cinismo foram se dissipando no ar. E como num passe de mágica, recordei de que tão logo você se dá conta da própria história e do curso da vida, percebe que o progresso do tempo, a atividade autômata e quase ininterrupta dos nossos corpos vai nutrir alegrias, desejo, amor, mas também caos, confusão. E, nesse processo, nos aproximar da ebulição das dores, cuspindo o vapor intenso e vulcânico que há de um dia nos fazer parar, seja o coração, as pernas ou as milhares de nanoconexões que montam memórias. A nós, cabe apenas suplicar a Láquesis um pouquinho mais de tempo, um pouquinho mais de calma, que o fio da vida se estique o quanto puder se esticar; para nos oportunizar mais um abraço, mais um olhar e o gosto inviolável de olhares e corpos que se cruzam por mero acaso.

Viver é um tanto Ícaro, um tanto Narciso. Seja na tarefa árdua de mergulhar profundo no eu, de se afogar no terror de amar-se, ou de voar tão alto que lhe queimam as asas, as pestanas e as fantasias. A mim, contudo, seria honrosamente belo saber que vivi, voei, me afoguei e caí. Tão pesado quanto uma rocha, tão leve quanto uma pluma.


-A

segunda-feira, julho 29, 2024

Sísifo-Vampiro


                                                                                                                                      Ilustração por Hermano Zenaide

"I am all in a sea of wonders. I doubt; I fear; I think strange things, which I dare not confess to my own soul."

Drácula (1897) por Bram Stoker, Capítulo 2, p. 27.


Hoje te convidei a entrar, vampiro. Vi nos teus olhos o viço e o chamado de um cão sedento, provando o meu medo como se o sorvesse pelos poros da minha pele pálida em completa ebulição. Emanando do teu rosto, uma aura verde-esmeralda denunciava o veneno das palavras, cantarolando anedotas sobre o que foi e o que poderia ser. Era fascinante ver teu poder de me enredar, conduzir-me na tua valsa e distorcer a noção de tempo, memória e espaço. Se dissesse sim, eu concordaria; se dissesse não, eu negaria resoluta.

Da soleira da minha porta, tua sombra sem contorno se esticava pela sala até desaparecer pontiaguda, varrendo-me com um frio ártico, causando arrepios febris de medo e excitação. Sei que podias ver meus olhos em espirais cartunescas, procurando sentido no teu jogo, a cara de tola em meio ao estúpido movimento da maçaneta, perguntando obediente se querias um copo de café ou um chá. O espaço entre-lábios em minha boca, o som vindo das minhas cordas vocais já trêmulas, eram pistas óbvias do que há de mais involuntário e primitivo nos nossos corpos ainda separados e vestidos. Apesar de dominada, era cômico ver teu esforço ininterrupto para negar tua fome, tua vontade de rasgar o véu que te obriga a ser essa força coesa da natureza, ter de honrar esse contrato de sangue a todo instante em que existe. Um ser centrado, comedido, econômico nas palavras e nas intenções... Apesar de presa fácil, eu me compadeço com tua miséria, sei que existir no plano das ideias e ser somente um ideal de tantos e para tantos é corrosivo, sufocante. Mas por que resumir-se tão somente a esse mero folclore imaterial na imaginação do mundo? Por quê?

Por isso, talvez, você sempre procure a minha morada, o aconchego de um lar que te envolva com o valor de uma lareira e uma sopa quente depois de um dia exaustivo, o justo quinhão do tácito contrato de carne e osso que você assinou por impulso de sonhos de anos atrás. É como uma fuga terapêutica de um mundo que te consome no campo platônico e te usa como um mero fantoche num teatro de bonecos. Antes de existir para si, Sísifo-vampiro, você existe para todos os que te cercam, e só depois é que te autorizam a usufruir do que sobra da tua carne. Tal qual a hóstia de um deus repartido em milhões, trilhões, que todos os dias, em algum lugar da Terra, é afogado em vinho tinto para esconder o gosto amargo na boca. Será que ainda lembro teu gosto? Acho que não...

Sabe, ainda me pergunto por que escolheu ser esse nômade no intangível do mundo. Por que abandonou teu mais belo traço e o trocou por uma imagem que nem mesmo você enxerga nos espelhos e reflexos da vida? Ou, se puder, diga-me, vampiro: quem foi que te esculpiu assim em um dia desimportante? Quem foi que te fez vítima do que há de mais perverso no mundo? Ou será que fostes moldado, talhado até não viver mais nas amarras do tempo? Quem foi que te condenou?

Certa feita, em um desses almanaques baratos que o jornaleiro vira e mexe me empurra por dois tostões, li que nem mesmo o próprio reflexo vês. Mas não sei se por natural cegueira ou se já lhe turvaram tanto a vista que também se foi o sentido. E veja que não te digo isso por viés moral ou apego à tua carne que, paradoxalmente, já me alimentou, mas pela morte da poesia que eu supunha emanar de cada célula que te compõe e te sustenta de pé. Se hoje te alimento, talvez seja porque tua humanidade pristina outrora me saciara também. Tão só a tua revanche, um débito de outra vida que pago nessa.

Encarando-te assim na verve dos meus dias mais felizes, sem esperar visita, não sei decerto se te devo alguma parcela de gratidão ou se deveria nutrir culpa. Na dança e nos papéis que interpretamos no enredo dos outros, alguns vivem para se tornarem vilões, lembranças de um tempo calmo, ou ambos. Por isso, estico o pulso já exaurido de qualquer cuidado e evito qualquer troca de palavras. Na contracena de vida e morte, cumpro minha parte do trato, da peça. Descem as cortinas, saem os amores, entram os fantasmas. E de novo, de novo, até um novo e inalcançável cume.

Enquanto te passo o lenço para aparar os excessos que agora gotejam em meu tapete quase impecável, vejo tuas presas se enterrarem fundo em minha carne, já tão fina quanto uma folha de hortaliça. A tua respiração ofegante soprando em meu pulso um fluxo quase imperceptível de ar, acompanhado por um frio na espinha. Era como se a alegria e a ternura fossem deixando meu peito, drenadas com uma calma cirúrgica, sem ansiedades, sem receios, lentamente. Meus músculos cedem como se separados da minha própria razão. Meus olhos embotados encaram teu apetite inconsequente, abraçando a minha nulidade ao sequer fazer contato no olhar. Eram movimentos orquestrados de quem já estivera ali um milhão de vezes. E estivera. Para a minha tardia realização de que se te matei e exauri num tempo, há de fazê-lo comigo também n'outro.

Confesso que jamais imaginei que acabaria assim, sendo apenas um acessório no teu carrossel de desejos, o mais puro estado de matéria, já nem tão animada assim. Em meus últimos segundos, ainda pude ver-te limpar os lábios com os polegares curvados, formando com o sangue um estúpido e abstrato coração, irônicos lábios de amor e morte. Um ajuste na gravata, um pigarreio meio ensaiado e a delicadeza de pousar meu corpo frágil no sofá da sala, como se em um cochilo vespertino ou uma boneca de pano.

Ali, naquele instante, eu sabia que, como Sísifo, estávamos condenados a um ciclo eterno: morrer e renascer na fome imortal do desejo, empurrando a pedra do nosso tormento nas voltas de um tempo sem medida, oco, vazio.


-A