Ilustração por Hermano Zenaide
“[...] rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira [...]”
— Lavoura Arcaica (1975) por Raduan Nassar, Capítulo 9, p. 54.
Hoje chorei tua partida antes da hora. Só de me cruzar o pensamento o teu descanso, senti profundo o imenso vazio que deixaria tua passagem. Pude ouvir os ecos navegando pelos cômodos da casa, as tuas manias se despedindo dos detalhes, o jeito gentil de mexer os talheres, o impecável forro de mesa florido e a poeira acumulada sobre o móvel que sustentava a TV — raramente ligada aos quatro ventos, raramente necessária para preencher o silêncio pacífico da sala em penumbra. Nesse delírio, senti como se desaparecessem tuas vigorosas plantas, o caminhar sereno, desapressado, teu canto cada vez mais lindo em nossos encontros. Porém, no curso desta hipótese, culpei-me por perceber que talvez nunca tenha lhe contado sobre o amor e a luz que trazes ao mundo. Como ser um produto da tua existência me torna um fragmento das tuas verdades, um broto, um apêndice complexo da tua natureza — expandido no tempo, arremessado no espaço agora tão distante do teu solo, da tua companhia. E aqui, sozinho e em silêncio, imaginei também o teu medo de partir, como praguejara em segredo contra teu corpo decidindo ceder sem teu consentimento, o terror que estaria atravessado em cada movimento, desde o café da manhã até a última página lida do livro de cabeceira. Dividi contigo o infortúnio de saber que não teremos lido todos os livros que gostaríamos, dito ou escrito todas as palavras que cruzaram nosso pensamento, as pessoas e amores que deixamos para trás, nossas canções...
Sabe, admito que nunca te conheci tão bem, teu silêncio sempre foi uma porta fechada, um símbolo de quem viveu muito e sorriu pouco. Era uma felicidade cara, culpada e hereditária, uma melancolia que de alguma forma eu partilhava desde muito moço. Talvez por isso nunca ousei te confrontar sobre o passado, ou mesmo perguntar o que esperava do presente, sonhava para o futuro. Tu eras como um capítulo de uma história maior, o sustentáculo de uma árvore com ramos hoje tão longínquos, indomados, distantes das tuas lições e exemplos mais fundamentais. Hoje, senti como se tua hipotética partida levasse uma parte de mim, arrancada à força pela violência do tempo, tão rude, tão súbito. Era como se, junto de ti, eu soubesse que uma luz em mim também se apagaria, uma fonte de alegrias se secasse, uma nascente de esperança se esgotasse. Saiba, portanto, que tu és minha memória de pequeno, de inocência e de sonho. Me faz querer voltar a ser miúdo, pra caber nos teus braços, grudar nas tuas anáguas para me levar pra brincar entre as plantas, saber do canto dos pássaros, me ensinar a colher a couve, girá-la como só você era capaz, e cortar as folhas tão finas quanto fios de cabelo para então deixar cair numa vasilha tão antiga quanto teu avental desbotado. Eu sempre achei engraçado quando dizia que era fácil, mostrando com paciência o movimento das mãos calosas e paradoxalmente delicadas, como se teu ofício matriarcal te equipasse com todos esses saberes sem o menor esforço.
Tu és prova da minha meninice, me faz querer acordar-te bem cedo ao pé da cama, sussurrando para me alcançar a broa de milho na despensa. E você ia, paciente e lentamente, com os olhos baixos, me olhando correr pela casa em completa graça. Ainda que me doa lembrar disso, também me pego às gargalhadas, lembrando de nossas horas em frente à TV assistindo ao desimportante telejornal. Minha atenção incansável de vigiar teu sono e te ver dormir no sofá, tentando combater as pestanas pesadas de quem só precisava de um pouquinho de paz para cochilar e esperar o próximo dia. Coração sereno, abundante harmonia...
E se o dia seguinte fosse uma quinta-feira, eu sabia que seria a melhor das tardes. Os morangos, as tangerinas e hortaliças encheriam o ar com um frescor único que me faz lembrar da textura do teu vestido, a minha tentativa inócua de decifrar o mundo com o olhar curioso e desavisado de criança, tentando fazer sentido com as intangíveis dinâmicas do teu universo pacato e bucólico. Ainda olho para aqueles dias e tento lembrar de mim, entender você. Tento recordar de cada parte que nos constituía como par, como eram meus finos braços agarrados à tua mão, meu corpo frágil, meu cabelo denso, com o que sonhava, quem me encantava e do que falávamos, se éramos alegres, se éramos tristes... Mas ainda acho um tanto difícil perguntar-te daquele tempo, sobretudo como e por que nós, simplesmente, éramos nós... Eu bem sei que tudo isso não é menosprezo pelo sorriso, mas um obstáculo a mais para sentir, tocar e viver o que há lá fora, para além do que se passa em nossa cabeça. E, como a dualidade de uma maratona, sentir a delícia da chegada, mas a falta de genuíno sentido na atividade em si. Espero que não seja assim contigo.
Se eu pudesse, suplicaria para nunca ir, que fosses como as sequoias, os ciprestes que testemunharam tudo o que a humanidade pode recordar, as mentiras, as verdades, as guerras e as alianças. Que sustentasse tal qual Atlas toda a minha verdade e existência até que eu, com todo o meu egoísmo, também partisse com você.
Não vá. Te seguro em meu abraço mais apertado, na nossa inversão de força e altura, hoje eu gigante, tu pequenina. Segura em minha mão e vamos à nossa ópera das sextas-feiras, à orquestra de quinta, ao café da tarde para aquecer o peito, caminhar pelo pomar. Só nunca vá, por favor.
Eu te amo.
-A