5. Morte de Narciso, voo de Ícaro (ou Le temps détruit tout)
“Tendo me tornado — com o passar do tempo — o antropólogo da minha própria experiência, não sinto o menor impulso de depreciar essas almas obsessivas que recolhem cacos de cerâmica, artefatos e utensílios em terras distantes e os organizam a fim de expô-los a nós, para podermos entender melhor a vida dos outros e a nossa própria […].”
— O Museu da Inocência (2008) por Orhan Pamuk, Capítulo 9, p. 43.
Hoje pela manhã senti uma paz imensa ao me
olhar no espelho. Toquei o rosto com a ponta dos dedos, ainda dormentes pelo
frio, e, diferentemente de quando o tocam, não repeli. Deixei-me, pela primeira
vez em tempos, saber a textura de minha pele, a curvatura cartunesca do meu
nariz e do meu zigomático saltado, que me lembravam a descrição de um personagem
das telenovelas. Minhas ideias, no entanto, vagavam longe, na hipótese de que
provavelmente ninguém havia me visto verdadeiramente como um conjunto complexo
de ideias, concretude viva e pulsante de criatividade. De que eu existo em um plano à parte, sem
pudor, sem economias, comunicando ao mundo o que sou, o que sinto, sem meias
palavras, sem desvios de rotas, táticas de afeto ou fugas. Eu sou, e, portanto,
não me escondo nas esquinas de confidências, não colho de árvores inférteis,
infrutíferas, mas me alimento da mais pura potência do que queima e rejeita se
apagar, como o sol jovem e alegre das manhãs de Janeiro.
É curioso como somente depois de anos pude
contemplar essa crueza dos meus movimentos. Pude me envolver em um abraço
forte, sentindo a matéria densa que me compõe, convencendo-me de que eu não era
mais — como senti inúmeras vezes no passado — uma corda fina e quebrantável de
vida. Pude sentir a materialidade da minha criatura sem a terrível repulsa
kafkiana que outrora me fizera evitar os reflexos de espelhos e os consultórios
de análise. Vi-me detrás daquele vidro pequeno e retangular como um pêndulo, um
artista esperando a hora de entrar no palco, indo de lá para cá, mas com uma
paciência e um peso que eu jamais havia experimentado antes. Era natural e leve
existir ali, como se por um dia eu pertencesse a este universo e comungasse com
ele sem as demandas e medos do mundo. Sem as vergonhas, as inseguranças ou os
ódios à flor da pele. Sem as violências da palavra e da carne. Sem as múltiplas
paranoias do tédio enjaulado entre paredes tão finas que se escuta o adormecer
do vizinho, os amores da jovem ao lado e a fúria incontrolável dos bebês.
Em uma fração de segundos, eu entendi o que é o amor e me entendi enquanto força coesa de átomos e absoluta potência de agir, conatus. Naquela fotografia em movimento, ancorado às minhas bilhões de sinapses, vi-me um tanto nu, sem preconceitos, sem as tantas bússolas morais, axiomas e definições típicos de um cientista pragmático e cético com o rumo do mundo. Habitante de conchas calcárias das mais sólidas, eu sempre soube que viver era como uma máquina a vapor imperfeita, amarrada aos insolúveis nós da física clássica, mantendo-nos em xeque sobre qualquer sonho muito delirante ou impulso de querer ser mais, muito ou melhor. Mas eu, momentaneamente, rejeitei isso. Ali, sozinho e reflexivo, desafiei o pessimismo e quis me equilibrar por um instante na experiência de viver sem dores, sem temores e sem culpa. E sorri.
Porém, no mesmo instante em que essa ideia se formou no espaço liminar da minha distração, também o reducionismo e cinismo foram se dissipando no ar. E como num passe de mágica, recordei de que tão logo você se dá conta da própria história e do curso da vida, percebe que o progresso do tempo, a atividade autômata e quase ininterrupta dos nossos corpos vai nutrir alegrias, desejo, amor, mas também caos, confusão. E, nesse processo, nos aproximar da ebulição das dores, cuspindo o vapor intenso e vulcânico que há de um dia nos fazer parar, seja o coração, as pernas ou as milhares de nanoconexões que montam memórias. A nós, cabe apenas suplicar a Láquesis um pouquinho mais de tempo, um pouquinho mais de calma, que o fio da vida se estique o quanto puder se esticar; para nos oportunizar mais um abraço, mais um olhar e o gosto inviolável de olhares e corpos que se cruzam por mero acaso.
Viver é um tanto Ícaro, um tanto Narciso. Seja na tarefa árdua de mergulhar profundo no eu, de se afogar no terror de amar-se, ou de voar tão alto que lhe queimam as asas, as pestanas e as fantasias. A mim, contudo, seria honrosamente belo saber que vivi, voei, me afoguei e caí. Tão pesado quanto uma rocha, tão leve quanto uma pluma.
-A
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