"I am all in a sea of
wonders. I doubt; I fear; I think strange things, which I dare not confess to
my own soul."
Drácula (1897) por Bram Stoker, Capítulo 2, p. 27.
Hoje te convidei a entrar, vampiro. Vi nos teus olhos o viço e o chamado de um cão sedento, provando o meu medo como se o sorvesse pelos poros da minha pele pálida em completa ebulição. Emanando do teu rosto, uma aura verde-esmeralda denunciava o veneno das palavras, cantarolando anedotas sobre o que foi e o que poderia ser. Era fascinante ver teu poder de me enredar, conduzir-me na tua valsa e distorcer a noção de tempo, memória e espaço. Se dissesse sim, eu concordaria; se dissesse não, eu negaria resoluta.
Da soleira da minha porta, tua sombra sem contorno se esticava pela sala até desaparecer pontiaguda, varrendo-me com um frio ártico, causando arrepios febris de medo e excitação. Sei que podias ver meus olhos em espirais cartunescas, procurando sentido no teu jogo, a cara de tola em meio ao estúpido movimento da maçaneta, perguntando obediente se querias um copo de café ou um chá. O espaço entre-lábios em minha boca, o som vindo das minhas cordas vocais já trêmulas, eram pistas óbvias do que há de mais involuntário e primitivo nos nossos corpos ainda separados e vestidos. Apesar de dominada, era cômico ver teu esforço ininterrupto para negar tua fome, tua vontade de rasgar o véu que te obriga a ser essa força coesa da natureza, ter de honrar esse contrato de sangue a todo instante em que existe. Um ser centrado, comedido, econômico nas palavras e nas intenções... Apesar de presa fácil, eu me compadeço com tua miséria, sei que existir no plano das ideias e ser somente um ideal de tantos e para tantos é corrosivo, sufocante. Mas por que resumir-se tão somente a esse mero folclore imaterial na imaginação do mundo? Por quê?
Por isso, talvez, você sempre procure a minha morada, o aconchego de um lar que te envolva com o valor de uma lareira e uma sopa quente depois de um dia exaustivo, o justo quinhão do tácito contrato de carne e osso que você assinou por impulso de sonhos de anos atrás. É como uma fuga terapêutica de um mundo que te consome no campo platônico e te usa como um mero fantoche num teatro de bonecos. Antes de existir para si, Sísifo-vampiro, você existe para todos os que te cercam, e só depois é que te autorizam a usufruir do que sobra da tua carne. Tal qual a hóstia de um deus repartido em milhões, trilhões, que todos os dias, em algum lugar da Terra, é afogado em vinho tinto para esconder o gosto amargo na boca. Será que ainda lembro teu gosto? Acho que não...
Sabe, ainda me pergunto por que escolheu ser esse nômade no intangível do mundo. Por que abandonou teu mais belo traço e o trocou por uma imagem que nem mesmo você enxerga nos espelhos e reflexos da vida? Ou, se puder, diga-me, vampiro: quem foi que te esculpiu assim em um dia desimportante? Quem foi que te fez vítima do que há de mais perverso no mundo? Ou será que fostes moldado, talhado até não viver mais nas amarras do tempo? Quem foi que te condenou?
Certa feita, em um desses almanaques baratos que o jornaleiro vira e mexe me empurra por dois tostões, li que nem mesmo o próprio reflexo vês. Mas não sei se por natural cegueira ou se já lhe turvaram tanto a vista que também se foi o sentido. E veja que não te digo isso por viés moral ou apego à tua carne que, paradoxalmente, já me alimentou, mas pela morte da poesia que eu supunha emanar de cada célula que te compõe e te sustenta de pé. Se hoje te alimento, talvez seja porque tua humanidade pristina outrora me saciara também. Tão só a tua revanche, um débito de outra vida que pago nessa.
Encarando-te assim na verve dos meus dias mais felizes, sem esperar visita, não sei decerto se te devo alguma parcela de gratidão ou se deveria nutrir culpa. Na dança e nos papéis que interpretamos no enredo dos outros, alguns vivem para se tornarem vilões, lembranças de um tempo calmo, ou ambos. Por isso, estico o pulso já exaurido de qualquer cuidado e evito qualquer troca de palavras. Na contracena de vida e morte, cumpro minha parte do trato, da peça. Descem as cortinas, saem os amores, entram os fantasmas. E de novo, de novo, até um novo e inalcançável cume.
Enquanto te passo o lenço para aparar os excessos que agora gotejam em meu tapete quase impecável, vejo tuas presas se enterrarem fundo em minha carne, já tão fina quanto uma folha de hortaliça. A tua respiração ofegante soprando em meu pulso um fluxo quase imperceptível de ar, acompanhado por um frio na espinha. Era como se a alegria e a ternura fossem deixando meu peito, drenadas com uma calma cirúrgica, sem ansiedades, sem receios, lentamente. Meus músculos cedem como se separados da minha própria razão. Meus olhos embotados encaram teu apetite inconsequente, abraçando a minha nulidade ao sequer fazer contato no olhar. Eram movimentos orquestrados de quem já estivera ali um milhão de vezes. E estivera. Para a minha tardia realização de que se te matei e exauri num tempo, há de fazê-lo comigo também n'outro.
Confesso que jamais imaginei que acabaria assim, sendo apenas um acessório no teu carrossel de desejos, o mais puro estado de matéria, já nem tão animada assim. Em meus últimos segundos, ainda pude ver-te limpar os lábios com os polegares curvados, formando com o sangue um estúpido e abstrato coração, irônicos lábios de amor e morte. Um ajuste na gravata, um pigarreio meio ensaiado e a delicadeza de pousar meu corpo frágil no sofá da sala, como se em um cochilo vespertino ou uma boneca de pano.
Ali, naquele instante, eu sabia que, como Sísifo, estávamos condenados a um ciclo eterno: morrer e renascer na fome imortal do desejo, empurrando a pedra do nosso tormento nas voltas de um tempo sem medida, oco, vazio.
-A
A estética vampiresca me encanta, se bem executada. E você alcançou isso de forma divina! Junto a isso, referenciou uma das mais incríveis narrativas míticas existentes, num ciclo infinito de condenação… absolutamente mind-blowing!
ResponderExcluirPara mim, um dos elementos-chave do vampirismo é a exploração da sexualidade, mas não de maneira simplória e óbvia. Você remonta elementos como a perfuração sensual da pele com presas, o jorro quente de sangue e toda uma descrição envolvente do cenário durante o desenvolvimento.
Ao mesmo tempo, consegue alcançar algo muito maior, que é a realização de uma existência infinita como também condenação, além da relação complexa entre as personas e a natureza dual entre seu desejo e o que há de obscuro naquela conexão - a sua metáfora do vampirismo foi perfeita aqui. No final, há de novo a fusão das figuras confrontando a ideia da eternidade, continuidade, repetição e a ausência de um desfecho.
Que texto atraente. Nos leva de maneira um tanto astuciosa e penetrante ao seu núcleo de dor, tédio, desejo, compreensão, dúvidas… um infinito, como o próprio título sugere.
Gracias pelas suas escritas sempre tão irresistíveis.