"— Você deve ser a última pessoa no mundo que ainda diz essas coisas às mulheres. — Sorria, divertida, olhando-me como se fosse um bicho estranho. — Que breguices você diz, Ricardito!
— O pior não é dizer. O pior é que as sinto. São verdade. Você me transformou num personagem de telenovela. Eu nunca disse essas coisas a ninguém."
— Travessuras da Menina Má (2006) por Mario Vargas Llosa (p. 127)
Era madrugada — dessas desperdiçadas e toscas — quando bateu-me à porta a bailarina. Embora atravessada por amores múltiplos, escolheu-me em um sopro de sorte e acaso, fazendo-me o garoto que encontra o bilhete premiado ou o mítico palito de picolé. Jamais saberei decerto se era merecedor de todo aquele desejo ou se era apenas zombaria de mais um perverso capítulo da minha biografia. No choque de dois drinques, sofá de bares e batom, prendi-me em sua teia de Faraday em um misto de eletricidade e magnetismo, ora capturado, ora apunhalado pelos ferais olhos verdes que me mediam e atravessavam tal qual um predador calculando o momento certo de atacar a presa, ingenuamente sem saber que todos os momentos eram certos, avenidas inteiras de lábios, ombros e perfumes.
No cartaz
do teatro, seu rosto contrastava com a imaginária e pacífica Nova Iorque ao
fundo. As sombras — mímicas de corpos — delineavam a
coreografia que me impediu de saber quem era ela nas silhuetas-mil detrás das
cortinas. Dentro do meu peito, um leve terror vendo no escuro a sua vida de
pura potência. Mares croatas, Barcelona, arranha-céus e, no dedo, uma solitária
safira, signo de fidelidade e amor eterno. Na corda bamba da conversa, um voto
de confiança. Os dedos entrelaçados e os olhos em perfeita sincronia como se
mantidos por um fio invisível que não os deixavam desencontrar no desvio da
cena, sem ponto de fuga ou garçom no horizonte. "Veja-me — que te
vejo também". Porém tua dança era dança de sombras. Ainda que eu quisesse
saber mais e tudo de ti, nos palcos ou ao meu lado, eu teria apenas tênue
fragmento, pistas de um mistério insolúvel, crônica ao invés de novela, ensaio
ao invés de espetáculo, palavra ao invés de sinfonia.
No
entardecer, uma chuva fina de primavera nos molhou de mansinho. Na soleira de
casa, as roupas um pouco úmidas deixavam-na como um reflexo natural da chegada.
A colônia soprada pelo movimento de pendurar o casaco me lançou uma dica do
sabor da tua pele, que reclamava do frio e do ar ligeiro que sopravado teto.
"Deixa que eu te ajudo." De novo os olhos de lince me olhavam de
baixo para cima, lábios semiabertos, uma súplica para minhas inquietudes. O
caminhar cuidadoso e felino disfarçava os pés delicados que dançavam sem querer
dançar. As pontas dos pés marcavam o tempo de uma música mais sutil que meus
ouvidos ansiosos poderiam ouvir. Embora seja esforço infrutífero, minha mente até
agora tenta aprisionar uma ou outra lembrança das tuas palavras, mas esse
enredo é daqueles vitorianos que não permitem reprise. Cada peça é um universo
dentro de si, não haveria roteiro no mundo que fosse capaz de sustentar essa colisão
de infindável energia. Tudo é somente uma memória monolítica sem direção. Vetor
sem sentido, pulsão de vida e arte.
Não nego
que, para mim, escrever seja parte de um ato reminiscente. Um reflexo criativo
de alegrias e tristezas, e, portanto, jamais ousaria tentar lhe explicar a
natureza dessa história. Mas arrisco-me a dizer que nosso encontro foi como um
microcosmo de amor num espaço de horas. A dança, o gozo, o riso, o banho e a ceia
todos juntos no que os físicos chamariam de singularidade. Um mergulho profundo
na dilatação relativística do tempo para ver nossas tantas possíveis vidas
passarem diante dos nossos olhos como uma lição de deixar ir, deixar passar e
se entregar a uma gratidão difícil de exercitar quando se há tanto e muito mais
para viver. Ancorado ao teu horizonte de eventos, eu brigava com a
possibilidade de entrar naquela unidade heterodoxa de tempo (e espaço) para
encontrar-me em uma nova e talvez mais triste realidade - a minha própria sem você.
Astro novo na vastidão do teu universo, eu tentava ensaiar a gravidade de outro
par, gravitando para vencer satélites certamente mais antigos e certamente
maiores do que eu, que iriam clamar-te de volta como um brinquedo infantil
precisa voltar ao dono, uma boneca tão bela que me dói nas têmporas só de
lembrar. História, apesar de tudo, pesa. Aventuras, nem tanto. São pedagógicas,
sim, mas leves como penas ziguezagueando no ar. Passam longe das luas de
Júpiter, são Perséiades esperançosas no céu de verão. Mágicas, como tu dissera,
ainda recuperando o fôlego. Mas naturalmente fugazes. Cíclicas e de órbitas
obtusas, quase excêntricas.
Foi difícil
dormir naquela noite, e mais difícil ainda nas outras tantas que se seguiram.
Embora eu seja econômico nos afetos, sei enxergar de onde brota no solo a
nascente, o olho d'agua espiando a minha alma delicadamente vulnerável e
desavisada. Em hora de despedida, em um bilhete escrito às pressas no encarte
de um disco, a bailarina das sombras deixou um convite, um punhal espetado
junto a um sorriso provocador, um giro pensativo dos dedos entre os cabelos me
chamando para perto. Um desejo multissensorial de que uma vez mais — quem sabe
no largo das incertezas — a grande maçã iria nos agraciar com uma mordida mais,
um novo pecado, uma nova dança na sala de estar. Apesar das dezessete horas
terem se esgotado como apressados grãos de areia na ampulheta, vivemos também dezessete vidas,
dezessete motivos, cinco quintessenciais, doze um pouco mais impróprios do que
eu poderia apontar no papel.
Em tempo,
fantasias são como faróis para um navegante. E navios são como promessas de
vida para um náufrago como eu.
Até
breve,
A.