terça-feira, janeiro 28, 2025

Série Fragmentos - VI

6. Gameleira

Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? 

—  Grande Sertão:Veredas (1956) por Guimarães Rosa (p. 43)


Tu eras grande como um abraço impossível. Ao tentar te envolver nos meus braços, quando muito, tomava talvez a quinta parte do teu tronco. Na casca, as gravuras marcavam sólidas a tua força, exibindo algumas dezenas de amores tatuados na pele como um tributo ao teu infinito secular e ao nosso perecer quase romântico de algumas décadas, talvez uns pares felizes, outros nem tanto. Em meu descanso de tardes vazias, entre os vincos das tuas raízes, quase podia ouvir as águas percolando pelas tuas veias, as folhas exsudando vapores, seivas retornando às raízes e o frescor da tua aura desafiando tremores de gente, máquina e trem. Da copa, era fácil ouvir os pássaros inquilinos cantando a chegada dos pequenos e sentir subir o arrepio da tua sombra se projetando serena sobre meu corpo já cansado e um tanto frio. O pôr do sol chegava mais cedo hoje — vias de inverno — e o cheiro de café passado já me convidava a entrar. Antes do chamado da minha senhora, porém, quis lhe contar, num suspiro em segredo, sobre meu medo de partir e de como eu te imaginava daqui a um tempo. Se lhe podariam as franjas, se lhe deixariam de pé, se lhe dariam o espaço necessário para que sua fundação se mantivesse ali, corajosa, profunda, intensa. Também dividi, numa dúvida aguda, se eu era o primeiro a te adotar assim como amiga, como irmã. Se, com você, minhas memórias também partiriam uma última vez...

Eu bem sei que plantas são criaturas imóveis, mudas. Não precisa doutor vir me contar do que a sabedoria do campo já satisfaz. Mas, pela falta de escolha, por natureza, não é certo se tua natural resiliência bastaria para atravessar a chegada dos tempos modernos. Sabe, talvez seja esse um exemplo barato demais aos homens. Se não podes escolher o espaço, o tempo, que seja então a força de permanecer vivo que opere os milagres, que possa nutrir essa sanha de viver apesar de tudo. Era um tanto assim que eu olhava meu povo ao redor, os esquecidos sem nome ou herança. Aqueles a que se referem como "os dali". Um acaso inconveniente no caminho do progresso...

Olhando assim para meus pequenos a correrem pelo quintal, eu via marcado em nossa pele, em nosso simples caminhar, algo de árvore antiga, algum parentesco distante com aquele pé de gameleira e com outros tantos que foram nos deixando pelo caminho. E não digo pelas rugas e a pele salgada pelo sol, mas por aquele jeito teimoso de encarar o dia, apesar da mais óbvia e essencial razão de não fazê-lo. Do verbo impeditivo, jamais imperativo, de desistir e não mais sonhar. De ceder à força acachapante da desesperança onde nem mesmo o otimismo ingênuo da religião ilumina e alcança. O que éramos e para onde iríamos? Seríamos então raízes procurando respostas ao invés de água? Seria a nossa subsistência a chance de espiar o que vem logo ali, no próximo dia, na próxima estação? Quem é que separa no leito do rio, bateia na mão, vida e morte, ainda que lentas?

Portanto, nas árvores vejo uma chance gratuita de guardar memórias, tão antigas quanto o tempo, tão imponentes como Deus. São parte da minha história e lembrança da minha passagem por aqui. Serão elas a contar aos meus netos quem eu fui, as músicas que cantei, as refeições que fiz ali, aconchegado em teus pés, uma ode à vida tão mais concreta, tão mais intensa e cheia de propósito que a minha. E, nesse intento, deixar uma pequena lição, que, por mais discreta, por mais elementar, talvez por sorte lhes dê um pouco mais de vida para seguir tentando.


-A

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