"Mas duas pessoas não se equilibram muito tempo lado a lado, cada qual com seu silêncio; um dos silêncios acaba sugando o outro, e foi quando me voltei para ela, que de mim não se apercebia. Segui observando seu silêncio, decerto mais profundo que o meu, e de algum modo mais silencioso. E assim permanecemos outra meia hora, ela dentro de si e eu imerso no silêncio dela."
— Budapeste (2003) por Chico Buarque de Hollanda (p. 61)
É curioso como te ver nos
meus sonhos me causa uma excitação tal qual aquela de quando as alças e amarras caem dos teus ombros, ou quando me empresta parte de ti cedida à luz
para uma fotografia: um olhar que vem de baixo, uma quase-súplica de desejo.
Nas minhas fantasias oníricas, sei da exata cor do teu vestido, da textura
linda dos teus cabelos castanhos cintilando loiro ao sol e do teu torto-incorrigível humor matutino...
Nessas horas, dispenso ajuda da minha memória para perfeitamente me pôr contigo
no teu quarto em um dia atípico e ouvir os teus sussurros no meu ouvido seguido
de um golpe da tua língua úmida no meu pescoço ainda distraído demais para
essas carícias.
Sabe, provável que você não
entenda – e talvez jamais entenderá – mas há poucos prazeres maiores do que
acordar ao teu lado, preparar teu café forte, falar sobre o que um dia sonhamos
ser, dos nossos mais sinceros desejos de um tempo já tão distante. Em nossas
conversas de travesseiro, dissertamos sobre a peça que o destino nos pregou
naquele dia meio esquecido de dezembro, da falha sem culpa dos destinos
cruzados e da minha impulsividade quase irresponsável
disfarçada de intuição. Nesse teatro adormecido, porém, teu brilho é
ligeiramente mais apagado do que me lembro (se é que me lembro), mas ainda
capturo bem os teus traços mais belos, teu cuidado com os outros, um sorriso
sincero, as mãos mais lindas que já pousaram sobre mim...
Hoje, quando já as costas
doem de carregar o peso de um par de tristezas, vejo que não sou assim tão
talhado para o amor comum como tu és. A vida não me esculpiu, como esculpiu a
ti, na plena condição de querê-lo, realizá-lo e partilhá-lo de pronto. E, perplexo,
confesso meu encanto de ver como a ti parece tão natural, tão instintivo e
simples esse sentimento. Como se manifesta leve e verdadeiro no teu despertar,
como é facilmente identificável, seguro e fluido no teu olhar e no de quem hoje
colhe teus sabores. É como se minha falta de traquejo tenha me feito somente
poeta de romances-mil, testemunha da tua existência, mas nunca “sentidor” de
fato do atordoante e transformador choque de carinho, desejo e propósito. Eu
sou brisa que passa, onda que leva. Tu és inabalável mourão, estaca invencível
no cais.
A caminho do trabalho ou nos
finais de semana à beira-mar, sento-me com meu livro nas mãos e, na passagem do
vento leve e das incontáveis páginas que viro sem muito entusiasmo, noto as
mais lindas e diversas formas de outros amores. Baixos, altos, brincalhões,
protetores, gentis, intensos, velhos e jovens, todos à sua maneira uma versão,
um ideal do que eu um dia quis ser e me convencia de que saberia conduzir no
ato, improviso de um sábio veterano, irreverência de uma alma tranquila... Mas
creio que meu papel aqui nesse tempo seja tão só de trovador, cronista de
histórias vividas, bardo de canções diversas, admirador do que nossa condição
humana busca até que parta de nós a força de despertar e ir à luta. Sou não a
prova viva, mas observador da sua manifestação em corações mais leves, mais
afeitos à sua chegada, sem esperar ou pedir licença. Como o teu.
Nesta estranha jornada, vivo
o fervor dos amores incompletos, separados por oceanos intransponíveis, paixões
fustigantes e assimétricas; são ensaios imperfeitos que preenchem uma lacuna tão
efêmera quanto o outrora narrado sorriso da moça. De modo que minhas ideações
estão somente no campo da memória, são as marcas das mãos contra a pele, ora
brutas ora amáveis, dos beijos que ficam e dos olhares denunciando perversões, mas que se
despedem cedo pela senda que leva a vida, pela determinística natureza que se impõe
generosa e imperativa. Assim, esperançoso e um tanto aflito, sacio
minha sede na liquidez que escorre pelas frestas das minhas mãos. Dedos que
passeavam serenos pelos teus cabelos, boca e pescoço e que agora cuidam de
escrever essa nota apressada.
Engraçado que hoje, depois
de acordar do meu mais recente sonho, me veio uma ideia, algo que sempre
acreditei existir, mas que agora tomou alguma forma e se traduziu em palavra.
Pensei haver uma espécie de misterioso oblívio na tua natureza feminina. Um dispositivo
que te impede de ver claramente o que há de mágico, insolúvel e oculto na tua existência. Um sagrado e inexplicável sentimento que eu tive o
privilégio de dividir, algo que ultrapassa a mera identidade, o mero jeito de
ser. São trilhões de qualias que nos afastam, tal qual água e vinho, algo impossível de explicar.
Eu falaria mais de veneração
aqui nesse escrito, mas já expus demais sobre esse tema antes. E veja que não
pretendo esconder toda a tensão que me traz imaginar como será o dia em que eu
vibrarei de novo ao som da tua voz. Secretamente, eu ensaio nossos passos e
tento achar em cada simulação alguma âncora para retornar sempre que eu quiser
– às vezes teu pijama, às vezes teu gosto a escorrer na minha boca ou uma
risada nervosa seguida de um suspiro. São dias difíceis aqueles em que passo
sem trocar palavra, sem saber do teu fim, pois ainda há aquele medo infantil de
um dia você não mais existir. E sonhar, sem dúvida, faz todo o cenário
mudar. Seja alimentando meu irremediável desejo de te ver mordiscando a língua
que toca teus lábios superiores ou de afastar o mundo real apertando meus olhos
para me manter alheio ao meu entorno um tanto vazio de sentido. São duas cenas
conjugadas: sendo a tua a mais linda tentando sobrepor a minha mais acinzentada e
esquecível.
Ainda que eu tenha a intenção de fazer com que veja essas cenas concretas se montando pra ti, eu entenderia se algo aqui não se encaixasse. Pois que para adicionar cada palavra, sou mais um falho e pragmático arquiteto parnasiano, escaramuçando entre defeitos e métricas, do que verdadeiro escritor ou cronista. Algo que uns chamam idealista; outros, romântico-démodé.
-A
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