7. Desbeleza
"Esperança para mim era adiamento. Eu nunca havia deixado minha alma livre, e me havia organizado depressa em pessoa porque é arriscado demais perder-se a forma. Mas vejo agora o que na verdade me acontecia: eu tinha tão pouca fé que havia inventado apenas o futuro (...)"
— A Paixão Segundo G.H. (1964) por Clarice Lispector (p. 146)
Pequena treva me anuviou os pensamentos na ida à feira aquele dia. Como de hábito, olhei a moça de saia rodada e tentei um sorriso simpático pra dissolver o nervoso da energia paleolítica que me rodeava. Desconsertada, ela deu de volta o gesto, como que pra assegurar que meu olhar não roubasse dela a calma e a segurança, enquanto punha no cesto as frutas da banca do Baiano. Os sons e cheiros de ansiedade, pressa e calor saturavam o ar e me transportavam para a infância ociosa, preso ao vestido de minha avó, decifrando o mundo com o olhar curioso e desavisado. Naquele dia, porém, foi diferente. E, ao invés de nostalgia, algo de triste, diria, me afastou da ternura das minhas memórias e do quase-flerte sem sucesso. Quisera eu ter aquela aura de novidade, inspirar a curiosidade mesmo que à distância, quando já as circunstâncias desfavorecem um “oi”, ou talvez um “você vem?”. As próprias frutas eram talvez mais magnéticas que a minha tosca presença ali, diante de uns poucos transeuntes, e talvez, inocentemente, eu quisesse experimentar as tensões dessas cordas sociais, ora bambas, ora firmes, em que eu me equilibrava com certa ingenuidade.
Vê-la assim me trouxe à mente uma palavra nova, uma ideia que não sei decerto se existiu em outras literaturas ou debates mais elevados. Naquele dia, eu entendi o que era desbeleza: o desejo sem a profunda admiração; a própria possibilidade de vários quereres, vazia de boas novas, limitada à forma e tão rasa quanto a lâmina d’água de uma poça na calçada. Não saberia explicar esse conceito porque sou eu mesmo um pouco culpado por ter nutrido tanto desejo onde havia muita desbeleza — um impulso da natureza, um mero cacoete de moleque, o irresponsável e irresistível prazer de ter e não dominar. De olhar e não tocar. Saborear sem o puro gosto do objeto em si, mediado por uma interface estéril e moderna demais para o que eu de fato queria. A desbeleza é, propositalmente, uma forma de o mundo girar engrenagens e zombar da nossa pretensão de ser pura e simplesmente poesia. Pura e simplesmente coerência, gerência sobre os amores e as dores, ou domínio de um impulso consciente, estruturado. Assim, a desbeleza cresce, ganha a mente e impõe neblina sobre os pensamentos. É quase que obra do caos — um emaranhado de maus circuitos, tolos neurônios e vícios hedonistas.
Enquanto eu me perdia nessas ideias, tentando construir alguma tese imperfeita, perguntei-me se era eu capaz de romper esses ciclos, amar com ares platônicos, viver uma vida spinoziana sem me distrair com as dores que vêm das almas confusas e tristes que vagam no espaço entre minha consciência e minha saudade. Amar assim, sem desbelezas. Acordar cedinho, enrolar nos lençóis e ouvir, em silêncio, o cantar dos pássaros em mistura ao “bom dia”. Servir meu café preto e sorrir à bênção de, mais um dia, ter a força de sentir profundo o que é o sabor da vida, a fartura das verdades e das gargalhadas.
Apesar do medo e das vergonhas, nunca desisti desses pequenos sonhos ficcionais, desses pequenos fragmentos de conatus, dessa busca incansável de, um dia, reafirmar meu lugar aqui, entre vocês — parte de uma história, de uma verdade pulsante e de um legado incapaz de esperar, de morrer. Ainda que seja aterrorizante cada minuto aqui, eu sobrevivo à ida à feira, ao descompasso da rotina, ao desarranjo com o que há de mais concreto e estupidamente humano. Sobrevivo ao nascer e ao pôr do sol. Cultivo minhas pequenas e concretas plantas, cuido dos meus abstratos jardins. Visto minha melhor roupa, mas me sinto bem sem nenhuma também. Não planejo meus passos, mas sei que meus pés me levam ao abrigo onde a chuva não me queima a pele, e onde o tempo corre mais devagar, na linha dos belos sorrisos. Paixão é, senão, transbordar de desejo e solidão misturados no tacho mais ancestral que carregamos no peito.
Um dia, espero escrever a minha própria história em páginas tão alvas quanto a lua que reflete nas tuas íris e teu corpo — que, até tão pouco tempo, só sabia reagir ao meu toque. Mas são, enfim, tempos de desbeleza.
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